Tentei descobrir a história que estaria por trás daquele xaile, daquela boneca e por trás daquelas vidraças misteriosas. A família, conceituada, tinha tentado apagar todos os rastos…
Filha única, menina prendada, prometida a um absurdo casamento. Engravidou. Não se sabe de quem e não se sabem as circunstâncias. Engravidou e o drama começou a desenhar-se por entre os espasmos familiares. Fecharam-na durante nove meses. No parto roubaram-lhe a criança e ela então endoideceu. Agarrou-se àquela boneca que passeia pelo quarto durante as vinte e quatro horas existenciais. Como se fosse de carne, a carne da sua carne. E passa, sorrateiramente, pelas vidraças da Praça.
Sucederam-se os anos até que o fogo eclodiu. Numa noite povoada de gritos e correrias, de sinos tocando a rebate e de chamas descomunais. E ela junto às vidraças, serpenteavam labaredas pelas pontas entrelaçadas daquele xaile carmesim. Beijou, desesperadamente a boneca e quando os vidros explodiram atirou-a da varanda. Morreu com a certeza que tinha salvo a sua menina.
Alguém levou e guardou a sobrevivente do drama. A tal filha verdadeira, transvertida de boneca, na prateleira dos livros. Triste, só e esbotenada, ao lado de bugigangas.
Há quem murmure, baixinho, que um xaile em labaredas vasculha os cantos da Praça em noites de escuridão.
PS – Há tempos perdi a vergonha e pedi que me deixassem ver a tal prateleira dos livros. Convidaram-me a entrar, apesar da boneca ter desaparecido sem concreta explicação: - “Talvez os netos na brincadeira…”.
Cheirava tanto a queimado que eu iria jurar que o fogo estivera ali.
Suzel Almeida
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- mariaclara disse...
- EU ANDEI LÁ NESSA ALTURA! Mas não te reconheço, eu era sobrinha da D. Dora, lembras-te ? .
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- Ani Braga disse...
- Gostei muito do texto do Luís. Bem escrito e comovente, tanto mais que sabemos serem reais estas histórias e não tão distantes no passado - algumas datam dos tempos das nossas avós, quando as famílias preferiam "matar" a alma e o corpo de uma jovem apaixonada, ou mudarem-lhe inexoravelmente o destino, a morrerem eles próprios de uma vergonha tacanha e mesquinha. A história é triste e fez-me lembrar os romances ingleses do século XIX. Agradeço também ao João Jales ter-me dado oportunidade de conhecer o primo, através da sua escrita tão sensível. Ani Braga .
- Alice Ventura Frequentei o E.R.O a partir de 1960, mas não me lembro deste colega.Contudo,dou lhe os meus parabéns pelotexto. Comovente..

Uma estória muito bem construída sobre um arrepiante drama humano numa sociedade de hipocrisia...!Parabéns ao Autor.
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