ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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CAMPISMO, VERÃO DE 1965

Lena Arroz

No Verão de 1965 a Lagoa foi um local de férias de alunos do ERO . No grupo que se formou não havia ainda aventuras com namorados. Nem havia namorados...

Essas aventuras com quase todos nós passaram-se mais tarde, depois de termos deixado as Caldas e o ERO. Os locais em que vieram a ocorrer podem eventualmente ter sido a Lagoa, o mar da Foz e a Aberta, com a sua areia grossa a cheirar a maresia e o Gronho, imponente, ao fundo a definir a linha do horizonte… mas não nesse Verão.

Se calhar, por não haver namoros, é que os nossos pais nos deixaram fazer o acampamento sozinhos.

Para além disso estavam lá os pais de uma das “campistas” cuja tenda, na primeira fila, tinha vista directa para a Lagoa.

Havia mais duas tendas, a minha, onde dormíamos três ou quatro raparigas e uma outra, montada em frente onde dormiam os rapazes, não me lembro se três ou quatro.

Os pais revezavam-se para nos levarem os almoços e os jantares. Comíamos juntos e os rapazes ajudavam a lavar a loiça e a arrumar o sítio.

De manhã não faltávamos à cerimónia da chegada da camioneta das dez para vermos que colegas vinham ter connosco em cada dia. Vinha sempre alguém.

De bicicleta vinham também quase sempre dois ou três rapazes.

Durante 15 dias tivemos mais um companheiro cujos pais passaram férias na FNAT.
Quando o grupo estava completo íamos todos até à Aberta para tomar banho de sol e de mar. Voltávamos às tendas para as refeições.

Depois do jantar fazíamos um passeio a pé, com aquele ventinho marítimo oestino a fustigar-nos a cara. Umas vezes íamos ao Hotel do Facho, onde se tomava café ou jogava cartas, e onde se viam turistas, geralmente estrangeiros. Outras vezes, o passeio era uma subida à FNAT onde se jogava pingue-pongue ou se ouvia música.
Naquele improvisado parque de campismo não havia sanitários e por isso usávamos a casa de banho do Félix e tomávamos duche de mangueira, o que era muito divertido!

De vez em quando passeávamos de barco e apanhávamos berbigão.

Nestas férias que duraram um mês inteiro e de onde voltámos completamente pretos e mais amigos, os nossos pais confiaram em nós. Fomos bastante livres e estivemos aliviados daquela sensação de sermos o alvo de uma permanente observação crítica, por parte da sociedade caldense.
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Lena Arroz
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C O M E N T Á R I O S
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JoãoRamos Franco disse:
"Fomos bastante livres e estivemos aliviados daquela sensação de sermos o alvo de uma permanente observação crítica, por parte da sociedade caldense."
Ao ler estas palavras, sinto algo que também era extensivo a nós, rapazes. O teu sentir também era o nosso, nos anos 1958/59, e a parte da “permanente observação crítica, por parte da sociedade caldense” estava sempre presente e não olhava ao feminino ou masculino.
Eu, o Samagaio, o José Saudade e Silva o Chico Castro e mais alguns, que não me recordo, acampávamos no Gronho. Só o estarmos ali, longe de tudo, era como que um grito de independência.
João Ramos Franco
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Jorge disse:
Estou a ver que a velha coscuvilhice caldense afectou mais as pessoas do que eu julgava! eram só umas senhoras de idade que não tinham nada que fazer, a Helena e o Ramos Franco (de que não me lembro) exageram.
Esta recordação do antigo parque de campismo está muito gira, e as relações rapazes/raparigas eram assim mesmo muito inocentes, hoje ninguém acredita!jorge
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João Jales disse:
Esta recordação da Lena do acampamento de 1965 é mais um texto em que, de uma forma simples e eficaz, nos surge toda uma época de uma forma muito clara.
Há uma claro sentimento de "claustrofobia" em relação à sociedade caldense da altura, que o João Ramos Franco corrobora e o Jorge (mais novo) contesta um pouco. Um sinal de que as rápidas mudanças da década de sessenta, até nas Caldas se faziam sentir?
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Luis disse...
Escrito de uma maneira que parece simples mas não é , esta história da Lena ( que só conheci de vista porque era mais novo) mostra o que eu senti quando acampei, no mesmo sítio anos mais tarde. E também sem namoradas, não era um namoradeiro como o Jales ... Que saudades!!!

FOZ DO ARELHO E ALGARVE (Fernando Santos)

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A primeira fotografia não é uma foto de férias porque em 1955, embora já trabalhasse, não tinha direito a essas mordomias.
Foi tirada num fim de semana na estrada da Foz, próximo ao cruzamento do Penedo Furado. Ao meu lado esquerdo está a minha irmã Adelina, e à direita, a Lizete (já falecida) que foi a minha primeira namorada a sério.
Se o Carlos João da Paulinha Pardal é a pessoa que penso, deve lembrar-se dela, pois coabitámos o prédio que o avô dele possuía na Rua Bordalo Pinheiro.












A segunda e a terceira já são de férias. Estávamos em 1967 e, como possuía um Fiat 600 comprado no ano anterior, dava-me ao luxo de passar 15 dias no Parque de Campismo de Monte Gordo.
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Naquele tempo, atravessar o Alentejo e a Serra do Caldeirão era uma aventura, mas não havia outra alternativa.

Boas férias para todos.

Fernando Santos.
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COMENTÁRIOS
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São Caixinha disse:
Quero ainda agradecer ao Fernando o ter partilhado as interessantes fotografias das férias...e do tempo livre... da sua juventude. Não sei realmente quanto grande seria a aventura de uma viagem para o Algarve nesse tempo...(naquelas estradas e naqueles automóveis...) mas lembro-me que em criança era já aventura que chegasse ir visitar os meus avós a Porto de Mós... que naquele tempo só me conheciam pálida e enjoada...!!! Bjs São X
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Anónimo disse:
É giro como já havia tanta gente a visitar o Algarve nesta altura! tinha a ideia que só nos anos 80 tinha sido a grande invasão, mas pelos vistos os caldenses adiantaram-se.
Não me lembro do Fernando, mas pelas fotos é mais velho do que eu.
boas férias.
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João Jales disse:
Fui pela primeira vez ao Algarve em 68 ou 69, não posso precisar, mas sei que a estrada era péssima e demorámos 7 ou 8 horas a chegar a Portimão, trajecto que hoje faço em menos de 3 horas.
O Fernando, como aqui já foi dito várias vezes, não foi aluno do E.R.O. e, embora sejamos hoje todos da mesma idade, ele é um pouco menos do que os outros... Mas tem sido um colaborador empenhado, escreve com facilidade e tem material que nos ajuda na nossa tarefa de retratar uma época, como é mais uma vez o caso.
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José Luis Reboleira Alexandre disse:
O Fernando Santos não foi aluno do ERO nem da Bordalo Pinheiro mas as ligações às Caldas são tantas que é presença agradável nos dois blogs, mais naquele do que neste. Ao ver a foto do campismo de Monte Gordo, vieram-me recordações da minha segunda viagem ao Algarve, penso que em 1977, aqui já com direito a uma barraquinha para dormir, e à viagem num FIAT 127 alugado, pois o meu carro da altura, um glorioso FIAT 850 Coupé Sport, com motor atrás, tipo Porsche, comprado em segunda mão em Turquel por 15 contos, e re-vendido pouco tempo depois, não teria sobrevivido aos calores do Alentejo. O pobre que até para vencer a subida dos moinhos do Chão da Parada sofria não teria certamente chegado a Beja.
Era na altura em que na Volta a Portugal havia a equipa da Caloi que falava brasileiro, e a minha priminha de Manaus, de cada vez que encontrávamos a Volta queria por força tirar uma fotografia ao lado dos ciclistas.

Quer queiramos quer não, a nossa vida de hoje é cada vez mais as nossas boas recordações de ontem, e há que guardá-las e mantê-las bem vivas.
Abraço
J.L. Reboleira Alexandre
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João Ramos Franco disse:
Tenho lido atentamente a tua colaboração no Blog e sinceramente tenho gostado. Deves ser 6 ou 7 anos mais velho que eu porque, no que escreves, citas amizades tuas que têm mais ou menos essa diferença de mim.
Escrever sobre os locais que nos foram comuns mas em épocas diferentes às vezes é difícil, mas não é este o caso, as coisas no nosso tempo não andavam tão depressa. A Foz do Arelho de 1955, recordo-me deste cruzamento assim, quanto ao Algarve os mesmos locais que mostras nas fotografias também eram iguais em 1963.
Se saiste de Caldas só por volta de 1960 é bem provável que me conheças, só que eu não me recordo de ti, precisava de mais pistas.
Um abraço
João Ramos Franco
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Vasco disse:
informação - A primeira fotografia foi tirado no posto de abastecimento de combustiveis, conhecido como o Patricio, e do qual recordo a bomba manual que servia para abastecer autos, barcos etc.Tinha um dispositivo que permitia misturar óleo na gasolina, quando fosse o caso. A casa do lado esquerdo ainda lá está. devidamente recuperada (Casa Branca) onde no verão se juntavam muitos amigos que faziam o mesmo que todos os outros , na altura : pesca, ski, remo, praia, jogos e, á noite, caçar gambuzinos. Tudo isto na 2ª metade da decada de 60.
VB

VERÃO DE HÁ TRINTA E CINCO ANOS

João Bonifácio Serra


O melhor do Verão era o futebol jogado no imenso areal da Foz do Arelho. Quando mais novos e ineptos, entusiasmávamo-nos com os nossos, incitando-os e aplaudindo-os. Espreitávamos a nossa hipótese de suplentes, o atraso de um titular, a indisposição ou cansaço de outro. Chegado o nosso tempo, entregávamo-nos com alegria e entusiasmo àquele jogo magnífico, suando, esfolando os joelhos no areão grosso, manchando de vermelho o peito do pé ao descarregar a bola com mais força contra o vento norte.

O melhor do Verão era o nevoeiro que cobria as manhãs da praia da Foz de Arelho, por vezes tão húmido que trespassava os camisolões impostos pelo zelo maternal. Por detrás dele, esperando pacientemente, estavam as coisas do mar: a espuma das ondas, os barcos de pesca, os veleiros na linha do horizonte, as gaivotas aparentemente perdidas, as ilhas de aventura. Na costa, libertando-se pouco a pouco dos fantasmas de bruma, vigiando cada um o seu espaço próprio de areia e água, o palacete Almeida Araújo e o Hotel do Facho.


O melhor do Verão eram as ondas altas e vigorosas da praia da Foz do Arelho, às quais fazíamos frente com determinação e com respeito. O melhor do Verão eram as pequenas praias de rocha e areia húmida que a baixa mar por vezes descobria, a seguir ao Facho. Em alternativa, o melhor do Verão podia ser a corrente, serpenteando lenta, antes de virar rápida e traiçoeira, da Lagoa, onde aprendíamos a nadar, e a sua praia preguiçosa onde se podia ficar até ao pôr do sol.




O melhor do Verão eram os picnics na praia da Foz do Arelho, as bolas de Berlim e os bolos de arroz, as sandes de carne assada ou de presunto, os ovos cozidos, as frutas que as nossas mães insistiam em descascar, os sumos trazidos de casa, as laranjadas Canadá Dry.




O melhor do Verão eram as noites da Foz do Arelho: no café Caravela, com aqueles que tinham casa alugada, onde se lia e comentava o Cavaleiro Andante e se combinavam os pontos de encontro para o dia seguinte, depois de contar e recontar até a saciedade os episódios fantásticos do dia que passara; ou nas varandas e salões de convívio da FNAT, com os que vinham passar o turno de 20 dias na colónia de férias, onde se lia e comentava o Cavaleiro Andante e se combinavam os pontos de encontro para o dia seguinte, depois de contar e recontar até a saciedade os episódios fantásticos do dia que passara.





O melhor do Verão eram os amores de Verão na Foz do Arelho, consumados ou não, imaginados ou não, mas sempre presentes, nos olhares que percorriam os corpos, nas palavras que convidavam, nos passeios de descoberta e no desejo que, por tentativa e erro, aprendíamos a expressar.




O melhor do Verão era evidentemente a Foz do Arelho.
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Este texto foi originalmente publicado na Gazeta das Caldas e faz parte da recolha de crónicas do autor, "CONTINUAÇÃO", editada por esse jornal em 2000. O João fez notar que, dez anos depois de escrito, o título deveria ser "Verão de Há Quarenta e Cinco Anos", mas acabei por manter o original.

O João Serra pode ser "visitado" em http://www.cidadeimaginaria.org/
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COMENTÁRIOS




Ramos Franco disse:
Alguns anos atrás perguntei a um Prof. (do curso de Informática), qual o melhor Sistema Operativo e obtive a resposta “é aquele que estás habituado a utilizar”.
A Foz do Arelho é a melhor para ele, faz parte de uma imagem da sua juventude, que estará presente na sua memória, penso que para sempre.
Pode não ser o melhor para todos, mas para ele “O melhor do Verão era evidentemente a Foz do Arelho”.
Talvez esta frase se aplique ás memórias que a Foz do Arelho deixaram nele e que, depois de ter conhecido muitas praias ,volta sempre lá.
"A partir de um certo ponto em diante já não há nenhuma volta atrás. Esse é o ponto que deve ser atingido"
Franz Kafka .
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João Jales disse:
O melhor da Foz do Arelho é a nossa memória do Verão lá... Será verdade ou será o texto do João que me faz pensar que nada poderá ser novamente tão bom como ele aqui descreve?
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Vasco Batista disse:
é mesmo assim, a Foz é a Foz de sempre e hoje continua igual a si mesma com espaço para tudo o que queiramos imaginar. Está nortada? é a Foz; está o mar bravo? é a Foz, a àgua está fria pois está, mas de outra forma não seria a Foz. Fotografias tenho e vou mandar, mas só depois de abalar da Foz. VB
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Manuela Gama Vieira disse:
Da Foz, boas recordações, apesar de, confesso, aquele nevoeiro, a nortada(?) marítima, a água do mar gelada, brrrrr....
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Luis António disse:
Trinta e cinco ou quarenta e cinco anos? Cinquenta e cinco ou vinte e cinco ...Quinze ou cinco anos, a Foz é sempre assim... os miúdos que lá andam é que já não somos nós!!!
Esse livro que tem essas crónicas ainda está à venda, oh JJ?
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Isabel Caixinha disse:
Gostei muito de ler o Verào de há trinta e cinco anos, escrito pelo Bonifácio. Tal e qual como ele descreve, e que prazer de leitura , o melhor do Verão é mesmo a Foz do Arelho.
Não sei bem como isto acontece, mas estes Mágicos Verões voltam a acontecer cada ano. Até a música parece que foi escrita com a Foz do Arelho em mente... "Sealed With A Kiss"!

ANNA KARENINA (Férias de 1969)

por João Jales



- Sim, a Anna Karenina suicida-se no fim do livro, mas eu penso que mais por causa das críticas da sociedade do que por remorsos…

Foi com esta ideia, e estas palavras, que iniciei um provavelmente pretensioso resumo do famoso livro de Tolstoi, que um preguiçoso Julho de 1969 me tinha permitido ler. O Agosto estava mais preenchido e prometedor, como mostravam os luminosos olhos da Lucha, que me analisavam, enquanto ela ouvia as minhas impressões sobre o livro.

Conhecera-a na véspera. Como a sua família tinha casa na Foz há já alguns anos, tinha-me cruzado várias vezes com ela ao longo dos anos sem a ver; mas aos quinze anos as garotas crescem dez anos entre dois verões, e este ano eu tinha-a visto… Na véspera a Ana, amiga comum, tinha-nos deixado à beira-mar a conversar e hoje já estávamos aqui os dois, perto da bandeira, representando um para o outro os dois adultos intelectuais que ambos fantasiávamos ser.


- Tens que me emprestar esse livro, só trouxe de Tomar umas revistas – respondeu a Lucha, “pendurada” nas minhas palavras sobre os amores adúlteros de Anna.


Eu tinha desistido da habitual futebolada junto à aberta para ficar aqui, hipnotizado por aqueles difusos olhos azuis… verdes… ou cinzentos… a minha falta de visão deixava-me na dúvida e obrigava-me a uma aproximação talvez exagerada da minha interlocutora, que ela parecia não estranhar nem recear.


Sou muito míope desde os dez anos, idade em que comecei a usar sempre óculos. Mas não na praia, onde esses incómodos adereços deixam brancas marcas indeléveis no carregado bronzeado da Foz do Arelho (dizia-se na altura que esse intenso “bronze” era da praia ter muito iodo, sabemos hoje que eram a névoa e o vento que nos permitiam estar horas sem fim ao Sol sem uma rápida sensação de desconforto). De qualquer forma a ausência dos óculos transformava a realidade circundante, melhorando-a, não me permitindo ver as imperfeições e obstáculos (eu pisava invariavelmente a nafta que ficava na linha da maré alta, chegando sempre a casa com os pés “alcatroados”) ou obrigando-me, como era o caso, a ter o nariz em cima do que queria ver bem. Ainda hoje tenho esse hábito, não usar óculos na praia, e estranho muito quando, com eles postos e no pleno uso das minhas faculdades visuais, visito as praias que frequento habitualmente, descobrindo sujidade na areia, horríveis construções nas arribas, atentados arquitectónicos variados e a celulite da maior parte das veraneantes que se passeiam em trajes reduzidos. O mundo é muito mais belo visto através do manto diáfano da miopia, acreditem.


Continuámos a falar dos clássicos russos, com que o meu Pai este ano me enchera a estante do quarto, embora eu ainda só tivesse lido A Mãe de Gorky e algum Tolstoi. Dostoievsky (Os Irmãos Karamazov, Crime e Castigo) aguardava a sua vez, talvez lá mais para o Outono.


Entretanto era quase meio-dia, decididamente hora de ir ao mar, mas a zona de banho estava invadida pelo Dr. Calheiros Viegas, orientando com um apito as matronas caldenses no seu banho terapêutico, que incluía mergulhos, gargarejos e inalações. O habitual bando de garotos rodeava-o, divertindo-se a aliviar disfarçadamente as bexigas na água em que ele realizava estas manobras em prol da saúde orofaríngica.

Algumas amigas da minha irmâ dirigiam-se para o banho como se preparassem uma travessia Foz do Arelho-Berlengas. Com as toucas postas, constituíam um espectáculo inolvidável!

Os “futebolistas” tinham entretanto terminado o derby e mergulhavam ruidosa e espalhafatosamente nas ondas, brancas com a espuma da rebentação (quem não gosta de ondas vai para S. Martinho, o ”bidé das marquesas”, como é aqui conhecida a baía). As raparigas que, pressentindo a sua chegada, se tinham entretanto também aproximado da beira-mar, fingiam-se indignadas com os salpicos de água fria ou por serem levadas ao colo para dentro de água. A escolha das vítimas destes actos não era inocente, e configurava verdadeiros rituais de acasalamento dos adolescentes envolvidos, o desenrolar do Verão iria mostrá-lo.
A combinação da turma de ginástica aquática com as previsíveis “bocas” a que iria ser sujeito por parte dos meus amigos, ao ir ao banho com uma nova companhia, fizeram-me olhar para as rochas. Do lado oposto à “aberta”, a maré baixa, como era o caso hoje, deixa até seis pequenas praias consecutivas, em que a ondulação é quebrada por anéis de rochedos circundantes, proporcionando pequenas baías naturais que quase parecem piscinas. Normalmente duas ou três estão acessíveis, só nas marés vivas é possível chegar à sexta.

-Queres ir às rochas tomar banho? – perguntei

-A maré está a encher ou a vazar? Temos que ver se dá para passar – respondeu ela.
E lá se deixou convencer, sem grande esforço, a acompanhar-me nessa excursão, fingindo até algumas pequenas surpresas com anémonas, polvos e peixes que lhe fui mostrando e que ela, como veraneante habitual, deveria conhecer perfeitamente. Teve até dificuldades (in)esperadas para ultrapassar alguns obstáculos, obrigando-me a auxiliá-la, enquanto explorávamos a verdadeira maravilha que são, efectivamente, “as rochas”.

Algumas colegas do ERO, um pouco mais mais velhas que eu, posavam para uma fotografia enquanto aproveitavam, como nós, os prazeres do local. Ficámos um pouco a olhar para elas, mas não nos ligaram qualquer importância, aparentemente mais interessadas, quais sereias, em encantar a fotografia (ou o fotógrafo, não sei).



Depois do banho e uns poucos minutos ao sol voltámos, a maré subia e podia tornar efectivamente perigoso o regresso.



As “bocas” habituais nestas circunstâncias, que tinha evitado indo tomar banho longe dos meus amigos, tinham sido apenas adiadas, já que o regresso ao nosso poiso habitual foi seguido por vinte ou trinta pares de olhos e igual número de línguas afiadas, que nos esperavam no local habitual, junto à bandeira e à bóia do ISN. Não pareceu nada intimidada a Lucha, que ficou entre eles, enquanto eu fui negociar à barraca familiar a permanência na Foz até ao final do dia, em vez do regresso com eles para almoçar nas Caldas. Apesar da praia ser grande, as pessoas são poucas e a bisbilhotice muita, pelo que o meu pedido foi recebido com largos sorrisos…


-Então não ias jogar ténis hoje?


-Amizades novas?


-Não te vi no banho…


Ignorei, claro. Concordei que, se perdesse a última camioneta, às seis e meia, deveria telefonar do Hotel do Facho para o meu Pai me vir buscar. E regressei ao grupo, entretanto reduzido, a maioria tinha ido almoçar a casa. Os “donativos” da família, amigos e vizinhos de barraca, tinham-me garantido várias sandes, fruta e sumos, que fomos comendo durante a tarde, sempre em pequenas quantidades, para poder ir tomando sempre banho.


O gravador/leitor de cassetes portátil da minha irmã, uma novidade na altura, tocava incessantemente baladas românticas que eu gravara para ouvir nas férias: “Hello How Are You”, dos Easybeats, “Melody Fair” dos Bee Gees…
...ainda me lembro do conteúdo da fita. Que, nessa altura, era monofónica e com pouca qualidade. Só dois anos depois, em 1971, os aparelhos de cassetes estereo revolucionariam definitivamente a nossa forma de ouvir música.


- Não sei onde pus as uvas…


-Espera, parece-me que estão aqui.


Uma desajeitada oferta de fruta acabou num entrelaçar de dedos, e depois mãos, supostamente com discrição sob a toalha de praia, mas realmente motivo de atenção e galhofa entre todo o grupo presente. O Verão é muito curto, todas as cerimónias da corte têm que ser abreviadas e as reservas, normalmente femininas, devidamente atenuadas, não temos nesta altura longos meses de Inverno pela frente…


E o Verão é mesmo muito curto! Os dias na Foz eram passados em intermináveis conversas sobre a chegada da Apollo 10 à Lua (tinha sido em Julho, incredulamente encarada por alguns) mas também sobre os últimos discos dos Beatles ("Get Back", "Ballad Of John And Yoko"),especulações sobre se o lançamento do single "Give Peace A Chance" por John Lennon no princípio de Julho prenunciava o fim dos Fab Four (prenunciava mesmo). "Mais populares que Jesus Cristo" os Beatles eram um assunto importante, nunca antes ou depois um grupo musical teve tal influência na forma de viver, pensar, vestir e agir da juventude. Eu esperava ansiosamente a saída do LP "Abbey Road", anunciada para Setembro.

Tenho uma ideia de tentar perceber, das conversas dos mais velhos, o que significavam as demissões de De Gaulle em França e Dubcek na Checoslováquia, amplamente relatadas na imprensa nacional, sempre empenhada em mostrar a "agitação" que se vivia no estrangeiro por contraste com a "paz e ordem" nacionais. A RTP tinha dedicado um "Títulos de Caixa Alta" precisamente à Checoslováquia, onde pela primeira vez ouvi o "Hino a Jan Pallach", uma canção da ultra-direita portuguesa (normalmente pouco dada às artes musicais...). Tudo isto era tema de conversa no círculo dos meus pais, mas eu era novo de mais para compreender o que se passava.

Soube, com espanto, que a minha Mãe tinha simpatias monárquicas quando a ouvi, nesse Verão, aplaudir a nomeação, por Franco, de Juan Carlos para seu sucessor. Para mim, isso dos reis era coisa do passado. Para o meu Pai também, pelo que fiquei a conhecer "ao vivo e em estereo" os diversos argumentos da polémica monarquia/república.

A falta de mais encontros, apenas a dois, entre mim e a Lucha era substituída por longos olhares, mudos mas supostamente significativos (que eu imitava dos filmes do Omar Sharif, muito em em voga na altura), mas havia sempre alguns momentos de ternura roubados ao convívio do grupo (que reagia sempre mal e de forma ciumenta aos namoros externos, que lhe roubavamm unidade e estabilidade).

À festa de anos da Lucha desse ano foram alguns dos meus amigos, aumentando uma lista já muito sobrecarregada de convidados. Mas isso não pareceu perturbar a sua família, cosmopolita e habituada a receber, que se mostrou até agradada com o acréscimo de animação que nós levámos à festa e ao baile, para o qual contribuí, como habitualmente com a minha colecção de singles e EPs (os LPs, os poucos que tinha, não os levava a festas, em resultado do que ainda hoje os posso ouvir).

Houve ainda algumas, poucas, noites em conjunto no Casino. Mas tudo acabou no final de Agosto.

Em Setembro fui para Mondim de Basto, em Trás-os-Montes, e só regressei às Caldas uns dias antes do reinício das aulas. Três semanas a banhos no Tâmega e a tentar ler “clássicos”, que abandonava um após outro. Com o coração destroçado, como só é possível aos quinze anos, só a sugestão da minha tia Teresa para ler Pitigrilli me tirou desse bloqueio. Não sei com que prazer leria hoje “A Decadência do Paradoxo”, mas esse livro salvou a minha vida em Setembro de mil novecentos e sessenta e nove! Juntamente com as cassetes que levei para mostrar aos meus primos as novas músicas que me apaixonavam: Beatles, Jimi Hendrix, Cream, Jefferson Airplane, Byrds, Bob Dylan , Leonard Cohen … sempre Cohen, que ainda hoje ouço, e leio, em todos os momentos de solidão ( With Annie gone / Whose eyes to compare / With the morning sun / Not that I did compare / But I do compare / Now that she’s gone ).

Uma longa carta para o meu amor de Verão não tinha recebido qualquer resposta, mas ao regressar às Caldas obtive um número de telefone que me permitiu saber que a sua família passava este final de férias em S. Pedro de Moel.

O meu Pai, que só reabria o consultório em Outubro, condoído pelo meu sofrimento (ou farto de aturar um adolescente insuportável), ofereceu-se para passar um dia nas famosas piscinas de S. Pedro. Acompanhados pelo meu amigo Tó Zé Hipólito, lá fomos os três no Citroen DS, mania e orgulho do meu Pai, que teve sempre carros desses enquanto conduziu. E que muito satisfeito ficou com os elogios do Tó Zé, eterno amante de automóveis, à excelente suspensão do Citroen, que nos permitia circular no péssimo piso da florestal do Pinhal de Leiria como se estivéssemos numa auto-estrada.

Havia pouca gente na piscina, nessa manhã já de Outono, e da Lucha nem sinal. Almoçámos no restaurante do complexo e deixámos o meu Pai a ler o seu “Primeiro de Janeiro” (hábito de homem do Norte), enquanto fomos ao Bambi, um café existente no parque, onde nos tinham dito que "toda a gente" ia tomar café depois de almoço. Mas também aí não tivemos sorte e regressámos para dar um último mergulho. Subitamente o Hipólito puxou-me o braço:

-Olha a Luxa, ali sentada naquela espreguiçadeira!

Eu olhei e vi-a, até me pareceu que lia o “Anna Karenina” que eu lhe emprestara! Com o coração aos saltos, descalcei-me e despi-me, ficando apenas com o fato de banho, entreguei a trouxa ao meu amigo e corri para a Luxa. Lá chegado disse:

-Ainda não acabaste o Tolstoi ? Que é que tens andado a fazer?

Mesmo sem óculos, mal ela levantou a cabeça, percebi que aqueles olhos negros não eram os da Lucha (e o livro era da Pearl Buck, muito popular na época, como vi mais tarde). Sem saber bem o que dizer, embrenhei-me numa titubeante desculpa em que referia o empréstimo de “Anna Karenina” a uma amiga. A Teresa, soube entretanto o seu nome, conhecia a obra e sabia até haver um filme, que terminava em suicídio da heroína por causa dos seus sentimentos de culpa. Subitamente interessado, sentei-me na cadeira ao lado e, mergulhando lentamente naqueles olhos negros, comecei a contar-lhe:

- Sim, a Anna Karenina suicida-se no fim do livro, mas eu penso que mais por causa das críticas da sociedade do que por remorsos…
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João Jales
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Pode ler a 2ª parte em : ANNA KARENINA 2 ( Regresso às aulas)
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EU CONFESSO (comentário do Tó Zé Hipólito a ANNA KARENINA)

António José Hipólito


Eu confesso que não tencionava fazer comentários, pois sempre fui pouco dado a escrita, mas o JJ insistiu, principalmente agora por ser referido no “Anna Karenina“, e também num episódio com uns pastéis de nata quentinhos (recordo-me das mesmas corridas no intervalo grande para a Floresta, onde se jogava dois jogos de matrecos e voltava-se ladeira acima para não chegar tarde as aulas. Só de pensar nisto já estou cansado).

Eu confesso que a estória narrada pelo JJ se passou conforme a narrativa, mas eu não era tão míope como ele e portanto distinguia perfeitamente, a 50 metros, se uma rapariga era loura ou morena, se bem que fisicamente até existissem semelhanças. No entanto depois de um dia de espera desesperada para encontrar a Lucha e ele já com o lábio inferior a parecer-se com beicinho, resolvi picá-lo, para ver se lhe passava a telha. E não é que resultou, se bem que não me lembro se houve continuidade de relações com a dita Teresa, nem tinha que saber.
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Eu confesso que essa ida as piscinas de S. Pedro de Moel me agradou bastante, tendo lá voltado várias vezes em verões posteriores, quando já tinha um glorioso 2CV, sempre com mais gente do que a lotação permitia ( hoje seria impossível).

Eu confesso que as minhas preferências literárias abarcavam outros “clássicos”, como o Jules Verne, Conan Doyle, toda a colecção Emílio Salgari, Marabout e até, depois de ter passado o então 5º ano e por já não estar sujeito a obrigatoriedade, os Lusiadas, que me deram um gozo nunca experimentado nos anos de tortura do Português. Também os nossos autores Camilo, Eça, Alex. Herculano, Ant. Sérgio, Júlio Dinis, enfim o que havia lá em casa. De notar que li o livro “Despertar dos Mágicos”, que com 15 anos achei uma maravilha. Até me recordo da banda desenhada do Hugo Pratt, onde o autor refere os conflitos existentes nos Balcãs, Turquia, Grécia e zonas adjacentes e que ainda hoje não tiveram solução, passado um século.

Eu confesso a minha total concordância com o Xico Cera nas suas saudades das Caldas doutras eras, pois toda a Vida que, principalmente no verão, aqui existia, e se centrava na zona histórica da cidade, Hospital Termal, Parque (onde se realizaram as melhores feiras da fruta e da cerâmica), Casino, Lisbonense e Praça da Fruta, desapareceu. É que hoje as Caldas morreram, são um mero jardim para construtores civis plantarem dormitórios. Paz a sua alma.

Eu confesso mais uma vez, e não é por ter sido aluno do ERO e este ser do patriarcado, pois nunca me confessei e nem a 1ª comunhão fiz (façanha rara!) , sendo a única actividade + ou – religiosa por mim praticada a ida ao santo sacrifício da saída da missa de domingo, antes da 1 hora e por razões óbvias: Não tenho realmente veia para escrita, definitivamente sou mais como aquele brinquedo espanhol que dizia “habla comigo”.

Peço desculpa ao senhor francês que começava todas as frases do seu panfleto com “J´accuse“, mas não resisti a copiar a ideia.

A. H.


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COMENTÁRIOS
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JJ disse:
O Hipólito não é uma testemunha mas sim um cúmplice activo de tudo quanto vivemos nesses anos, daí o facto de tentar trazer as suas memórias para o Blog. Essa da "veia", que eu nem sei o que é, não serve de desculpa, esperamos mais confissões.
Quanto à questão da Teresa, que o Tó Zé, a Luisa e a Isabel Caixinha levantaram, terão a resposta em devido tempo...
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Isabel Caixinha disse:
Li o artigo do Hipólito que me deixou intrigada. Esta "falta de vista" comum aos cavalheiros da época, intrigou-me. Dei comigo a analisar, com lupa, os meus conhecidos ou possiveis "amores" de então, tentando reconhecer estes sintomas na distância que nos separaria...Huummm...Curioso, como nunca me ocorreu antes...
Gostei muito da forma directa como o Tó Zé escreve também. E mais livros...desta vez "O Despertar dos Mágicos". Bom livro. O mais curioso é que eu lia ao mesmo tempo "As Aventuras dos Cinco", com o mesmo interesse!
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Manuela Gama Vieira disse:
O(s) matar(es) de saudades às Caldas...levam-me a concordar em absoluto com o Hipólito: a beleza do centro das Caldas desapareceu! Que tristeza me deu olhar a degradação da "praça da fruta" e zona circundante. Mudam-se os tempos... infelizmente,nem sempre para melhor! É o caso!!!
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António disse :
Caros colegas:
As Caldas têm--se realmente apagado e desaparecido debaixo das horrorosas construções com que destruíram a avenida da estação, a antiga quinta dos canários (é um atentado), as novas construções na Foz, onde era a Pensão Portugal (lembram-se?), parecem ser um caso de polícia, aquilo não pode ser legal. Ninguém faz nada, ninguém diz nada?
Gostei da história do Jales, mesmo sem a confirmação do Hipólito dava para ver que eram memórias verdadeiras. O Jales já sabia que era escritor, o Hipólito foi uma surpresa.
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Fátima Vieira disse:
Sou visita habitual do Blog.
Vivo com encanto, alegria e algum saudosimo cada história cada cantinho, as canções ,as nossas memórias.
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João respondeu:
Fáfá:
Fico satisfeito com o teu "aparecimento" ... Vai-te mantendo em contacto. Demasiados leitores mantém uma atitude passiva, gostaria de ver mais a comentar o que aqui se publica, como tu fizeste.
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J.Carlos Abegão.
Gostei do artigo do Tó-Zé Hipólito, sobre as nossas Caldas, está lá toda a verdade.
Cumprimentos. JCAbegão

COMENTÁRIOS / CONTRAPONTO

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João Serra disse:
Verão de 1969
(Contraponto ao Verão de João Jales)
A 27 de Abril de 1969, Alberto Martins, Presidente da Associação Académica de Coimbra interpelou o Presidente Américo Tomás no anfiteatro das Matemáticas. As consequências deste gesto projectaram-se até ao final desse ano lectivo. Os movimentos estudantis estavam de novo no centro da vida política, contestando o regime não democrático e suscitando a repressão das autoridades. Marcelo Caetano sucedera a Salazar e prometera alguma abertura política. Os estudantes punham à prova tais intenções.
Em Agosto de 1969, com 20 anos, concluido o 2º ano do Curso de História na Faculdade de Letras de Lisboa, as inquietações que partilhava com os meus amigos mais próximos giravam em torno de três questões: a Guerra, a União Soviética e o comunismo em geral, as eleições de Outubro. Estavamos ou não dispostos a cumprir o serviço militar e consequentemente a combater em África contra os movimentos africanos? – eram os termos do debate sobre a primeira questão. A segunda tinha que ver com a eclosão do conflito sino-soviético, com a invasão da Checoslováquia pelas tropas russas, com os novos temas lançados pela extrema esquerda francesa em Maio do ano anterior. O debate era aqui muito mais complexo e menos tolerante. As posições antagónicas originavam frequentes rupturas pessoais e políticas. A terceira questão, que também era atravessada pelas clivagens ideológicas presentes no debate da segunda, procurava resposta para a seguinte pergunta: devemos, apesar de sabermos que as eleições são viciadas, aproveitar a oportunidade para divulgar os nossos pontos de vista, ou, ao contrário, é mais eficaz denunciar a fraude, recusando esse jogo desleal?
Tentando vencer incertezas e dúvidas, lá fui optando: permanecer em Portugal, manter o não alinhamento com facções políticas pró-soviéticas ou pró-chinesas, colaborar na campanha eleitoral da CDE, no distrito de Leiria.
De modo que, em Setembro e Outubro (as eleições realizaram-se a 21 deste mês) estive presente, primeiro a convite e ao lado de Alberto Costa, mais tarde com Jorge Silvestre, em diversas reuniões para elaborar o programa eleitoral e sessões de esclarecimento. Alberto Costa, que eu conhecia desde os 17 anos, era natural de Alcobaça, tal como Jorge Silvestre. Em Lisboa, na Faculdade de Direito, que frequentei durante o primeiro ano, cimentara-se entre nós uma boa amizade. A Polícia Política deu uma informação negativa à candidatura do Alberto, pelo que à ultima hora teve de ser substituido nas listas do distrito. Jorge Silvestre frequentava o Instituto Superior de Agronomia, tal como José António Ribeiro Lopes, que nos apresentou.
Um dos tópicos vincados nas memórias do João Jales é a música. Também aqui, os 5 anos de diferença de idades são significativos, embora raramente sejam objecto de análise. Isso deve-se ao facto de ao longo destes últimos quarenta anos termos contruído um património comum de referências. Mas de facto, julgo que a segunda metade da década de 60 trouxe uma forte mudança: Paris e a França, com os seus “maitres à penser” e os seus autores/cantores de temas políticos e de crítica social foram substituídos por Londres e a Inglaterra (e a seguir os Estados Unidos) e a cultura hippie, onde a militância política era claramente secundarizada. Mário Vargas Llosa neste seu romance recentemente editado em Portugal (Travessuras da Menina Má) escreve: “Na segunda metade dos anos 60, Londres destronou Paris como cidade das modas que, partindo da Europa, se espalhavam pelo mundo. A música substituiu os livros e as ideias como centro de atracção dos jovens, sobretudo a partir dos Beatles, mas também de Cliff Richard, dos Shadows, dos Rolling Stones com Mick Jagger e outros grupos e cantores ingleses, e dos hippies e da revolução psicadélica dos flower children”. Estou basicamente de acordo com esta observação. Curiosamente, eu próprio tomei partido, em 1963 e 1964, no Diário de Lisboa e na Gazeta das Caldas, ao lado dos que julgavam possível impedir essa mudança cultural. Estava evidentemente enganado. Essa mudança era muito mais profunda do que eu na altura supunha. Podia voltar a citar Vargas Llosa, mas este comentário já vai longo e temo que a citação pudesse ser mal interpretada.
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JJ disse:
Nada mais gratificante para quem escreve do que ver (ler,ouvir) a reacção de quem lê.
Em relação ao comentário do João Serra só acrescentaria que a substituição da música francesa de intervenção pelo Rock (já não o Rock’n’Roll) da segunda metade da década de 60 corresponde aos anseios dos jovens consumidores, não a uma mera questão de modas. E discordo da militância política ser, nesta música, secundarizada: a rejeição da guerra do Vietname, a defesa dos direitos das mulheres, dos negros e dos jovens, a recusa radical de um modelo económico e social de desenvolvimento são muito mais subversivos e revolucionários do que a defesa dos valores de uma esquerda presa ao esgotado modelo soviético como era feita pelos engagés francófonos. Woodie Guthrie, Pete Seeger, Bob Dylan, Phil Ochs, Country Joe McDonald, J Airplane, MC5 , Tom Paxton, Joan Baez, Marvin Gaye, Jimi Hendrix, são bons exemplos, mas há muitos mais. Os próprios Beatles foram declarados persona non grata por Nixon, que tentou várias vezes expular Lennon dos USA. Mas essa conversa pode ficar para outra vez, já que este é apenas um pequeno pormenor num comentário que muito me satisfez suscitar.
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Manuela Gama Vieira disse:
Gostei muito do "Contraponto" escrito por João Serra.
Recordo o ano de 1969,o da crise académica de Coimbra, com particular acuidade. Daí em diante, nunca mais nada foi igual.
Costumo dizer que me orgulho de pertencer a uma geração riquíssima.
A geração que teve o atrevimento de se ATREVER!!!
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João Ramos Franco disse:
Caro João Jales
O 2º comentário do Serra sobre 1969 é ele (estudante) a viver a “Primavera Caetanista”, com toda carga ideológica da sua geração.
Que poderei eu acrescentar, mais velho, que em1961 tive conhecimento da prisão de estudantes na Universidade de Lisboa, sendo alguns deles amigos e ex-alunos do ERO. A minha opinião sobre a música e a canção está mais perto da dele, apesar de modo nenhum desvalorizar a tua. Penso que cada geração tem determinados valores que se apoiam em variados modos expressão e um deles é precisamente esse.
Um abraço
João Ramos Franco
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Luís António disse:
Não sei se era o que pretendias ao referir a Checoslováquia em 1968, mas é óbvio que esse foi um ponto a partir do qual não era mais possível defender o lado de lá… Mas só soubemos isso depois, lembro-me de discutir isso, mas já em Lisboa, em 73, 74,75… e , se bem me lembro, também não chegaste a passar pelo PC, pois não? Mas a geração do Bonifácio Serra sim, quase todos os que fizeram política.
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Isabel Knaff disse:
Li LOGO a Ana Karenina que adorei...Tchhhhh Meu Deus, o que ali vai...nem sei por onde começar... são os tão familiares autores e os inúmeros livros que eu devorava, que saudades do entusiasmo e sede com que eu os lia , a música que entoava o que nos ia na alma , a Foz daquele tempo com, incrivelmente, todos os promenores que lhe estarão sempre associados (até as uvas!). O começo de inocentes namoros de adolescentes...o imitar dos olhares do Omar Shariff (escolha perfeita!)...tudo, mesmo tudo!
A honestidade com que o fazes é adorável.Como descreves e trazes toda a calma e ao mesmo tempo todo o movimento próprio da Foz nesta descricão é genial...até se sente a maresia.
E esta Teresa de olhos negros ...tem mais episódios..??? Junto-me ao "grupo" aguardando por mais encontros.
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Isabel Silva disse:
Atrasadíssima! É como eu estou no que se refere a leituras de Verão.
Mas hoje voltei, vitoriosa de uma guerra com a Cabovisão que me impediu de manter a "escrita em dia" durante alguns dias.
Comecei pela Anna Karenina e devo dizer-te João, que por uns minutos me embrenhei neste magnífico conto. Para além do prazer que a tua escrita desperta, foi óptimo recordar os dias de Verão na Foz do Arelho, naquela inolvidável época: as idas às rochas, os banhos comandados pelo Calheiros Viegas, as idas ao colo para dentro de água... Mas o que me encantou mesmo foi a forma como relembras os amores da adolescência, fase da vida tão "gira" e bela, mas bem mais míope do que tu…
Um beijo. Belão
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São Caixinha disse:
(....) Muito aconteceu no blog durante estas 4 semanas e entretanto já me parece despropositado enviar comentários! Creio até que pouco teria a acrescentar ao muito que já foi dito...contudo não posso deixar de dizer que a tua ANNA KARENINA me deixou impressionada! Na minha opinião a melhor das tuas estórias até agora... límpida doce e completa, a fartar-nos os sentidos como compete à verdadeira arte!
(....) Ohhh...quase que me esquecia! Não me lembro mesmo de nenhuma Lucha...ou era Tucha? Quem seria essa menina ?!...
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Paulinha Pardal dsse:
Adorei a tua história, devias pensar em começar a escrever um livro, essa tua cabeça sempre foi muito boa a inventar...
Eu estou cada vez mais loira, será dos gargarejos no Hospital Termal? Não, isso é para a sinusite …ai meu deus que mal me estão a fazer os cabelos!!!! Queixas-te da tua miopia? Vê lá tu que fui comprar uns óculos novos, dos de ver ao pé, porque com os outros via muito mal tinha que aumentar a graduação, principalmente dum olho, cheguei à loja mostraram-me vários óculos mais graduados dos que eu trazia e eu pus e tirei ,pus e tirei, e digo:
-Ah realmente com estes mais graduados vejo muito melhor, os velhos, apesar da diferença não ser muita, via um pouco mal, principalmente com o olho direito.
Diz a empregada:
- A senhora desculpe mas por acaso já reparou que não tem uma lente?
Ah! Risos e mais risos...olha que isto foi verdade, não estou a inventar, é só para veres o estado em que está esta tua amiga, calhando esqueço-me de ir ao próximo almoço!
Bjs PP
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Manuela Gama Vieira disse:
João,parabéns porque é belo:
-Não teres esquecido as "belíssimas"férias que descreves
-Os nossos Pais falavam de "coisas"de que, naquele tempo,nada pareciam dizer-nos...mas afinal de alguma "coisa"nos serviu
-O enlevo com que descreves o "romantismo" que envolveu o teu conto.
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Margarida Araújo disse:
Parece que existe aqui um escritor merecedor de ser publicado: tu.
Bom conto a relembrar um amor de verão. Acompanhado com uma música que há tanto tempo não ouvia. Não foi música de um filme????
Bem, da fotografia que enviei posso dizer que são:
Paula Crespo
Ana Buceta
Eu (Margarida/Guidó)
Natércia Carvalho (Nami)
Essa de irmos até às Berlengas, é boa. Foi assim para a Paula e Nami, por via das barbatanas, eu e a Ana fomos dar ao Baleal e já cansadas apanhámos o burro das 13h30m e chegámos pelas 19h às Caldas da Rainha. No outro dia fomos esperar as duas amigas ao Cabo Avelar Pessoa, em Peniche (barco que fez e ainda faz as ligações marítimas à ilha).
Faço dois reparos: a minha ousadia citadina em relação ao recato das caldenses e as toucas, com farripas, acolchoadas ou em forma de bicho, do melhor.
Boas férias a todos (ah! a fotógrafa foi a minha mãe (Mila Marques ex-aluna do Ramalho Ortigão). M.
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João Ramos Franco disse:
Os amores de um adolescente...
Uma historieta de Verão, mas muito bem contada. Consegues ao transportar-nos nos amores de um adolescente, (quem não os teve), fazer-nos passar por uma Foz do Arelho, (que recordo tal tu a contas), colocar-nos perante a literatura e os seus escritores (a influencia de aquilo que lemos tem em nós) e levar-nos até preferências musicais.
As conversas dos mais velhos (que citas), são uma fonte onde sem nos apercebermos, bebemos os valores que ainda hoje fazem parte de nós.
- Estes amores da adolescência, doíam muito e eram difíceis de passar… Mas naturalmente encontraste remédio, em S. Pedro de Muel…
João R F
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Jorge disse:
continuamos a ler isto em folhetins, para quando a versão completa? Já pedi ( e não fui só eu!!!) várias vezes que escrevas um romance ou umas memórias sobre estes tempos… desta vez gostei mais do texto e da literatura que da música! jorge
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João B Serra disse:
Esta história funciona como uma espécie de tratado sobre a visão. O autor inicia-nos nos segredos da miopia, para depois nos mostrar as armas mais subtis e eficientes que os portadores da dita desenvolvem. O que não descortinam ao longe observam bem de perto, do que confundem tiram imediatamente partido, o que não podem visualizar em pormenor percebem na globalidade. Enfim, o que não vêem ou julgam não ver, tocam, ouvem e por vezes imaginam.
JJ é um grande contador de histórias. Já o sabíamos. Confirmamo-lo agora nesta bela história de sedução que acrescenta a este summerblog novas geografias (a Foz do Arelho das praias intermitentes, S. Pedro de Muel, Mondim das terras de Basto) e novas cronologias (depois de 1957 e 1973, o ano viragem de 1969).
J. Serra
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José Luis Reboleira Alexandre disse:
Ler estas férias do João é um pouco recordar as de muitos de nós da mesma altura com algumas «nuances», claro. A DS (continuo a usar o feminino desde esse ano de 69) no meu caso era o carro do pai da Martine que frequentou São Martinho em Agosto desse ano. O meu gosto pela bela lingua francesa vem talvez dessa altura. Hoje é a que mais se fala cá em casa.
A música já nessa altura era muito, mas muito mesmo, através das palavras do, hoje meu conterrâneo Montrealense, Leonard Cohen. Mesmo os escritores do realismo russo eram os mesmos.
O Give Peace a Chance foi para mim uma descoberta recente, por isso junto um link de um jornal local que irá acrescentar, estou certo, à cultura musical do JJ.
http://www.canoe.com/divertissement/musique/nouvelles/2008/07/11/6128166-jdm.html
O Ralph, jovem amigo que acompanhou Gail na aventura, não entra nesta história, e é pena, pois a versão dele é bem diferente.
4 anos mais tarde, foi do outro lado da baia na duna de Salir, que, ainda em francês, com salpiques da lingua de Camões, fiz «o tal encontro» que ainda hoje perdura.
Um abraço grande para o JJ pelo magnifico trabalho que é a manutenção do blog, e para todos os que aparecem por aqui. J. L. Reboleira Alexandre
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Laura Morgado disse:
João os meus parabéns!!!!Consegues descrever com toda a clareza o ambiente vivido na Foz naquela época.Nada falha, desde a música aos comentários das notícias.Reportas-te aos teus 15 anos, mas com os de 20 o cenário era igual.Como já não é novidade para ti, gosto muito da tua escrita! Laura
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Luisa disse:
(.....) Sabes que é que eu queria saber mesmo MESMO???? Saber o que é que aconteceu depois com a Teresa em São Pedro!!! Vou perguntar ao Tózé, ele deve saber.... Já disse vezes suficientes que gosto muito destes teu diários. L
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Fernando Santos disse:
Penso que a estória seja verídica, mas quem sou eu para acrescentar qualquer comentário além do que já disseram João Ramos Franco, João B. Serra ou Reboleira Alexandre?
Apenas me surpreende o facto do Dr. Jales oferecer ao filho de 15 anos, clássicos de Tolstoi, Dostoievsky e Gorky. Os dois primeiros encontrava-os nas bibliotecas públicas que eu frequentava, agora a Mãe, de Gorky? Só o devo ter lido em 63 ou 64 e foi-me emprestado por um amigo, no maior secretismo.
Fernando Santos
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JJ disse:
1-Esqueci-me de agradecer à Margarida Araújo e à Anabela Miguel as fotografias incluídas. Não as legendei na esperança de que alguma das retratadas o faça aqui nos comentários.
2-Agradeço todos os comentários, contactos e elogios. Aproveito para responder definitivamente a uma pergunta insistente: não há qualquer outro nome para a Lucha, esse é mesmo o nome do personagem, não tem outro.
3-Vou confirmar, logo que possível, o ano de edição do meu Gorki mas estou convicto de que é seguramente anterior a 1969. O Fernando escreveu um segundo comentário sobre este assunto, que julgo muito interessante, e que podem ler a seguir.
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Fernano Santos respondeu:
Olá J.J.
Para mim não está em causa o ano da edição de " A Mãe" mas sim o facto de na época ser um livro proibido pela PIDE.
No início dos anos 60, eu e outro colega criámos uma pequena biblioteca na empresa onde trabalhámos, e isso foi suficiente para ser vigiado por informadores daquela organização. Posso até dizer-lhe que possuía alguns livros considerados perigosos, e com receio de ser apanhado, dei uma volta pelo campo e deitei-os fora.Mais tarde arrependi-me de ter cometido tal acto de estupidez, mas o mal já estava feito.
Alguns livros de Jorge Amado, Ferreira de Castro, Aquilino, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes e muitos outros, como sabe, eram apreendidos logo à saída das editoras. Lembro-me, que até a "Ciociara" de Morávia, me foi emprestado sub-repticiamente pela funcionária da biblioteca que eu frequentava, porque não tinha ordem de o colocar nas estantes.
Um abraço.
Fernando Santos.

AS FÉRIAS DA GUIDÓ NAS CALDAS (3º episódio) )



Postais das Caldas III

Olá amigos

Este ano estive muito mandriona e só agora no fim das férias vos digo o que tenho feito.
Banhocas na Foz, às vezes na Lagoa, passeios ao Bom Sucesso (do outro lado da Lagoa) para piquenicar e trazer sempre lindas hortenses, Parque à tarde com os meus pais, o meu tio, ou os meus avós, brincadeiras com amigos. Damos de vez em quando passeios na região, como por exemplo este que fizemos a Paredes de Vitória, Pataias. O grupo da minha mãe é bem divertido. Da parte da manhã: praia. Com banhos e brincadeiras como esta. Este é o meu amigo Rogério Matias, o pai do Geroca que já conheces. Tem este sorriso maroto. Pegou na Nami (é a que está à direita), pegou na Paula Crespo (a que está à esquerda) e em mim, que não tenho medo das alturas, no pescoço. Depois rodava, rodava, com se fosse os carrosséis da Feira do 15 de Agosto ou da Feira Popular, em Lisboa.

Vou comer uma bola de Berlim e uma laranjada fresquinha.

Até breve

Guidó
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(Paredes de Vitória, Setembro de 1961)
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C O M E N T Á R I O S
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Manuela Gama Vieira disse:
Parabéns!Felizes "memórias de infância"!
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João Jales disse:
Estas imagens da Guidó são deliciosas e revelam de quem ela herdou o gosto pela fotografia, da sua Mãe .
Para quem queira ver o que ela faz do outro lado da máquina fotográfica, pode visitar:
-
João Ramos Franco disse:
Procurei no Blog da Margarida Araújo (Guidó),100SentidoComSentido, encontrar um elo de ligação com a sua infância, que retrata nas Férias. Do Blog lá tirei o "Limpo Palavras" , penso seja a melhor forma de quem recorda a sua infância tentar escrever sobre a dos outros, dando valor aos retratos que vê. Em 1961 já tinha 19 anos, agora a diferença já não se nota.
João Ramos Franco


"Limpo Palavras"
Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,outras simplesmente gastas,
estafadas,dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.

A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papeis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.

No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.

ÁLVARO MAGALHÃES
O Limpa-Palavras e Outros Poemas

AS ÚLTIMAS FÉRIAS DO E.R.O. ( Junho de 1974)

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Chão da Parada , Junho de 1974


"O último dia de aulas do Ciclo Preparatório foi vivido normalmente, mas, ao terminar, lembrei-me de convidar alguns alunos para um breve passeio até junto de um moinho, no Chão da Parada, de que é testemunho uma fotografia que tive o cuidado de tirar sem que revelasse a ninguém as minhas intenções. Só pouco antes do ano escolar seguinte é que convoquei os encarregados de educação para lhes dar contar da decisão de fechar o Ciclo. Todos deploraram a situação ...."


PADRE MANUEL AUGUSTO NAIA DA SILVA


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Este é um excerto de um importante, e muito interessante, texto inédito do Sr. Padre Naia sobre o final do ERO como estabelecimento de ensino Liceal. Decidimos adiar a sua publicação integral para Setembro devido à sua relevância, não o incluindo numa altura em que as FÉRIAS! ocupam o espírito de todos.
Mas queria desde já dar conta da sua existência e da sua próxima aparição neste Blog.

JJ
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Padre Renato com uma das últimas alunas (não identificada) do Externato Ramalho Ortigão,

no início das Férias de 1974, último ano de funcionamento do Colégio.


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COMENTÁRIOS
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Manuela Gama Vieira disse:
Que saudades me deixou o P.e Renato!!! As suas inesquecíveis aulas de Latim,a sua sabedoria,o seu humor muito especial e inteligente! Quantas vezes me tenho lembrado dele! Claro que as aulas eram animadas pelo Zé Carlos Sanches!!!!
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Fáfá disse:
Não esquecendo o "Desenho à Vista", "Canto Coral" e o "Orfeon" excepcional.Recordo que numa aula do 1º Tempo da tarde nos contar que tinha tocado orgão numa Igreja em Óbidos, a convite de um grupo de japoneses.Este grupo esteve a realizar um documentário sobre Óbidos e convidaram o nosso Mestre, de quem ainda hoje guardo as mensagens e admiro o saber e a Arte. Genial .

ALGARVE 1973 (Zé Luis R Alexandre)


Depois de ter visto as fotos do JJ dum «Allgarve» actual, porque não outras dum Algarve em que a noite era passada embrulhado numa manta na borda da praia, com o ruído das ondas como som de fundo e sem risco de se fazer assaltar por desconhecidos nem sempre bem intencionados. Também não haveria grande coisa para levar, além de uma parte dos 500 Escudos com os quais passei na altura as férias que me deixaram até hoje, melhores recordações, apesar de trabalhar em turismo, com as múltiplas viagens que isso implica em 29 anos de vida activa.

A foto foi o culminar de uma viagem de moto (não numa Harley mas numa Casal de 50 cc e o meu colega na famosa V5 da época), que se iniciou no Chão da Parada, seguimos para passar a primeira noite no aquartelamento de Santa Margarida, graças à cunha de um amigo militar. Ainda no passado mês de Maio falámos disto em amena cavaqueira na praia do Salgado. Aqui comemos a única refeição digna desse nome durante a viagem. Seguimos pelo interior sempre dormindo ao relento, até ao Sul, e voltámos pelo litoral com a visita e pernoita nas diversas praias da costa alentejana.

Como tudo era belo e selvagem naquele tempo , mas Omnia mutantur , nos et mutamur in illis (Todas as coisas mudam e nós mudamos com elas).

Quanto aos presentes na foto, na esquerda, de pé, estou eu. Na extrema direita, 3 súbditos de sua majestade britânica (já por lá andavam), depois com a guitarra, que penso nem trabalhava, o meu amigo da minha aldeia, de quem perdi o contacto. Penso que vive em São Martinho. Ao lado de pé, um viajante solitário de Santarém. Os 2 à frente de joelhos eram do Porto e o que tem a guitarra, deliciava-nos com melodias maravilhosas. Uma dizia assim: « Era sempre, a mesma melodia, Salazar e a sua democracia; com Caetano é a mesma porcaria, tudo muda só a m....não varia». O autor do original tornou-se num dos meus favoritos da época e dá por nome de Luis Cilia. Andava na altura pela cidade Luz.

Recordações maravilhosas, de um periodo maravilhoso da vida. O terminar de uma época de irresponsabilidade, e de pequenos erros sem consequências de maior, e o entrar num outro em que tudo tem de ser pensado e repensado. O findar da adolescência e o inicio da vida de adulto.

José Luis Reboleira Alexandre
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COMENTÁRIOS
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JBSerra disse:
Que mundo de evocações nos traz José Luís Alexandre, desde o Chão da Parada até ao Algarve: as motos Casal e V5, o quartel de Santa Margarida, noites dormidas (?) nas praias, a presença da guitarra, o Luís Cília das canções de protesto. Também eu rumei ao Algarve nesses anos. Em 1972, fiz 5000 quilómetros (de Honda 360), entre Vila Real e Sagres, ainda no princípio da invenção inglesa do actual Allgarve.
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João Jales disse:
Escrevi na mensagem que enviei ao Zé Luis: "As tuas colaborações são sempre bem vindas porque sempre muito a propósito, dentro do espirito das séries"! Mais uma vez temos uma fotografia , um texto e uma memória nessas circunstâncias.
Conheci o Algarve, mas não de moto, no virar da década ( 60/70) onde conheci uma Praia da Rocha que era uma língua de areia que "desaparecia" na maré alta.Onde as estradas para as praias à volta de Portimão e Lagos eram de terra batida. Onde encontrávamos meia dúia de estrangeiros onde hoje não há onde estender uma toalha. Onde não encontrávamos um bar onde hoje estão colmeias de apartamentos. Onde ainda não existia Allgarve, enfim...
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João Ramos Franco disse:
Recordações maravilhosas, de um período maravilhoso da vida. Que bom poder ler as tuas palavras alegres desse teu tempo. Dez anos antes (1963-serviço militar) tiram-me essa alegria de viver, no Algarve.João Ramos Franco
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Luisa disse:
Gostei de ler este ""Easy Ryder"" à portuguesa (como disse o Jales no artgo da São)!!!Só conheci o Algarve muito depois, já com construção desordenada. Mas a costa alentejana ainda tem locais bem preservados.Não me lembro do Zé Luis mas daqui lhe mando um abraço e o desejo de Boas Férias! L
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Ana Carvalho disse:
Belos tempos, ainda se podia dormir na praia e andar à vontade sem olhar por cima do ombro com desconfiança, hoje nem dormir de dia na praia se pode.
A viagem era também uma aventura, uma emoção, saíamos de madrugada e chegávamos muitas horas depois estafados, a morrer de calor. É certo que de mota era mais arejado mas devia demorar ainda mais tempo...
Não me lembro do José Luis mas espero vir a comhecer numa próxima reunião dos ex alunos. Bjs PP

Noite extraordinária







João Bonifácio Serra





Foi arrancado ao sono por um chamado insistente. Tinha o sono pesado, próprio de um rapazito de 8 anos, e certamente levara algum tempo até despertar por completo. Agora estava sentado na cama, um pouco inquieto, quando ouviu de novo a voz que lhe pareceu da mãe. O chamado era entrecortado, como se ela respirasse com dificuldade. Abriu a porta e entrou no corredor. Viu luz no quarto dos Pais e disse: estou aqui, Mãe. A porta estava encostada mas ele não chegou a empurrá-la porque a Mãe lhe ordenou: não entres aqui, vai depressa chamar a tua Avó.

Nem um momento duvidou de que a situação era grave. Qualquer coisa naquela ordem da Mãe lhe dizia que não havia tempo a perder. Mas o problema aí estava: como ir sozinho de noite a casa dos Avós? A distância não era grande, percorrida de dia, mas àquela hora parecia-lhe impossível de vencer.

Calçou os chinelos e foi até à cozinha. Abriu a porta da rua e perscrutou a noite. Depois de jantar dera uma volta com os Pais no caminho em frente da casa. Estava uma noite quente, era Agosto, de luar cheio e luminoso. Mas, entretanto, a lua tinha-se deixado ocultar e tudo lhe pareceu impenetravelmente escuro. Desceu as escadas e tomou o caminho até às adegas e abegoarias. Ia devagar, para não sair do centro do caminho e dar tempo a que os olhos se habituassem à escuridão. Ia atento aos mínimos ruídos. Entre as abegoarias, havia um serra da estrela, preso, cuja corrente corria ao longo do pátio. Chamou-o: Tejo, sou eu, bom cão, sou eu, com medo que o animal o não reconhecesse. O Tejo surgiu de repente e deu-lhe um encontrão amigável, mas ele estremeceu de susto, antes de respirar de alívio. Havia, a seguir, uns galinheiros semi-abandonados que lhe pareceram particularmente ameaçadores. Vinha depois uma ponte, que atravessou ansioso sabendo que, ultrapassado aquele ultimo obstáculo, poderia embalar a correr na descida só parando em casa dos avós. Quando chegou aqui estava ofegante, mas recuperara a confiança. Tinha ainda de vencer um último obstáculo: ser ouvido por alguém da casa. Bateu à porta e chamou. Bateu também nos vidros e chamou.

Foi o avô, de sono mais leve, que o ouviu. Veio pela marquise, com um candeeiro a petróleo na mão, tentando ver através dos vidros quem é que estaria a chamar àquela hora. És tu, rapaz. Dize lá o que se passa (o avô era beirão e não perdera o sotaque apesar das várias dezenas de anos de aculturação estremenha). É a minha mãe, disse o rapazito. Pediu para chamar a Avó.

A Tia, solteira ainda, levantara-se também e vestira um roupão para vir à marquise. Vieste sozinho? perguntou. Rapaz corajoso, deves estar cansado. Vou-te fazer um chá de tília. Em casa daqueles avós bebia-se chá de tília a seguir às refeições e em todos os momentos em que era justificado disponibilizar algum conforto. Enquanto esperava o chá, o miúdo viu a Avó, já vestida, reunindo panos, um alguidar, diversos utensílios, antes de sair para a noite na companhia do Avô.

Agora vens comigo, ordenou a Tia. Ele sentiu-se, finalmente em sossego, naquela cama relativamente estreita com a Tia ao lado, velando pelo seu sono. Adormeceu.

Foi despertado pela vozearia no corredor. A Avó estava de regresso e sorria para ele da porta do quarto. A minha mãe? perguntou. Está bem, respondeu. E já lá tens uma irmãzita.

JBSerra
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C O M E N T Á R I O S
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Margarida Aaújo disse:
Ainda cheguei a tempo de dar os parabéns à irmãzita. Um conto real cheio de afecto de uma vida.Bj João . Guidó
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João Ramos Fanco disse:
Existem nas tuas palavras a realidade, a sensibilidade e beleza descritiva, com que relatas esta “Noite extraordinária”, no seu sentido humano.
Para ti escolhi um pensamento de Gabriel García Márquez : "Daría valor a las cosas, no por lo que valen, sino por lo que significan."
João Ramos Franco
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Jorge disse:
a história é muito bonita e bem contada... eu leio com prazer em qalquer altura, mas este dava era um bom post para o natal, não te parece? jorge
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Anabela disse:
Noite Extraordinária – mais uma vez a escrita de João Bonifácio Serra a deliciar-nos.
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Luisa disse:
É sempre um prazer ler os textos do João Serra. Parece sempre que ele tenta ser muito cuidadoso com o que escreve mas mostra sempre emoção. Este é mesmo o nascimento da irmã dele? Luisa
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João Jales disse:
Tem razão a Luisa, há sempre nos textos do Serra um "receio" de exposição pessoal que os caracteriza mas que faz parte do prazer que dá lê-los. Como se ele os esculpisse a partir de um enorme bloco de palavras até as reduzir ao mínimo essencial. Vale a pena dizer que são sempre muito bons?
Vou revelar um segredo, mas não divulguem! Há mais de onde este veio, para publicar até ao final do Verão. João Jales
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Manuela Gama Vieira disse:
Este belo conto tocou-me em especial!
Também eu, na minha adolescência, fui "tocada" pelo nascimento de um irmão!
Curiosamente,meu irmão nasceu no Montepio, nas Caldas, no dia 25 de Abril de 1966,uma segunda feira.
Mais curioso ainda, eu e mais sete colegas do ERO, nesse dia, estávamos a cumprir um dia de suspensão-ISSO MESMO-castigo aplicado pelo Director, Pe Albino, pelo facto de nos ter "apanhado"sentadas na relva, no dia 23, sábado!
Alguém se lembra dessa "exemplar" punição?
Despropocionada, parece-me, relativamente ao infringido; absolutamente "a calhar" para mim, disponível para ir ver meu irmão acabado de nascer
!!!
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Luis António disse:
( .....) Este conto também está no tal livro que te pedi? É muito bonito e está muito bem escrito.
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São Caixinha disse:
(....) As mesmas qualidades, limpidez, doçura, perfeição, a fartar-nos os sentidos, tem NOITE EXTRAORDINÁRIA do João Serra!! Admirável...e tudo isto ainda enriquecido por interessantes comentários e deliciosas fotografias! Estou aqui para ficar!! São Cx