No dia em que o meu pai completa 91 anos, de boa saúde e
óptima disposição, embora sofrendo de alguns achaques próprios de quem já
percorreu um caminho tão longo, achei que seria interessante recordar e
festejar esta data no blog do ERO, com um texto cheio de humor, que ele
publicou no desaparecido Diário Popular, algures entre 1980 e 1986, período em
que colaborou regularmente com aquele vespertino, escrevendo uma crónica
semanal.
Descansa em Paz
Aqui há tempos, certo amigo mandou-me a fotocópia das páginas
onde vem a minha nota bio bibliográfica no Pequeno
Dicionário de Literatura Portuguesa que a Editora Cultrix publicou, em
1981, na brasileira cidade de S. Paulo. A princípio, ainda supus que fosse uma
simples brincadeira, mas, depois de a ter lido, fiquei na dúvida: existo ou não
existo? Não serei já apenas um desses hectoplasmas dos espíritas? Eis como
principiava o artigo, tal qual, até com a azarenta cruzinha da praxe: «BRAGA,
Mário Augusto de Almeida (14/7/1921; †Coimbra, 1970), Licenciado em Ciências
Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras de Coimbra, exerceu o magistério
secundário e morreu como editor da revista Vértice,
cargo que ocupava desde 1947…» E, após tão dicionária certidão de óbito que,
não sei se por acaso, até coincide com o «falecimento» de algumas amizades e
convicções, lá se segue, mais ou menos certinha, a resenha das minhas terrenas
obras literárias. O curioso, porém, a dar-se crédito ao necrológico, é que
algumas delas são duplamente póstumas, uma vez que, não só as devo ter
publicado já depois de falecido, como as escrevi muito tempo após me haver
ausentado deste vale de lágrimas. Como? Mistérios do Além!
O certo é que, embora eu, até essa altura, nunca tivesse
desconfiado da minha realidade física, as dúvidas, a partir daí, começaram a
acometer-me. Ainda tentei tranquilizar-me repetindo com Descartes: «Cogito,
ergo sum!» Mas, recordando-me de que, não só os solipsistas, mas também Platão,
Berkley e Leibniz, entre muitos outros, negaram a existência da matéria,
garantindo que tudo é espírito, voltou a assaltar-me a angustiante indecisão:
«Apesar do Dicionário me ter dado por morto, de facto continuo vivo? Os
sentidos dizem-me que sim, no entanto… Talvez eu não passe disso a que os
nominalistas chamavam flatus voci…
«Mas logo um aguerrido coro, soando do lado oposto do Parlamento Filosófico, no
qual se distinguiam Empédocles, Locke e Karl Marx, me gritou: «Não te deixes
ludibriar por esses malditos idealistas! Eles querem mas é assassinar-te! Não
há alma, não há ideias inatas, não há espírito, não há Deus! Só tens corpo,
portanto, se comes e bebes, existes!»
Farto dessa erudita chinfrineira, fui espairecer para o
Rossio, não apenas as minhas metafísicas dúvidas, mas também o «ferro» que
sentia cá dentro por ter dado aquele antecipado gostinho aos meus colegas
literários. Via-os já a esfregar as mãos de contentes, enquanto diziam lá
consigo: «Menos um para nos fazer concorrência!»
Eis senão quando me sinto abraçado por uma espécie de urso
humano que, depois de quase me ter esmagado contra o peito, afastando-se um
passo, me berrou num vozeirão cordial:
- Eh, pá! Estás na mesma! – Ao aperceber-me, porém, de que eu
não o reconhecia, trovejou, abespinhado: - Então não sabes quem eu sou!? Parece
impossível, caramba! Eh, pá! Sou o …
E, com atónita surpresa, ouvi-o atirar-me à cara com o nome
de um colega do liceu que não via desde os meus vinte e tal anos. Tínhamos sido
inseparáveis enquanto condiscípulos, sobretudo nas estroinices. Ele, péssimo
aluno e grande amigo da borga, mas sempre sem vintém, passava a vida a cravar
os colegas, principalmente a mim, que era o mias lorpa e íntimo. Até que a vida
nos separou. Eu, depois de conquistado o «canudo», deixei-me ficar em Coimbra,
feito escritor e manga-de-alpaca; ele. Com o sétimo incompleto, foi obrigado
pela família a ir trabalhar para Angola.
Nunca mais lhe pus a vista em cima, nem a ele nem ao dinheiro
que caíra na esparrela de lhe emprestar, até que, aqui há uns bons dez anos,
alguém me deu a notícia de que, tendo-se feito caçador profissional, o
desgraçado fora comido por um leão. Assim se compreende o meu sobressalto ao
ouvir aquela bisarma dizer-me quem era. Com esforço, lá recordei o rapazito
loiro, pálido, magrinho, enquanto que, agora, tinha na frente um homenzarrão
pigarço, rubicundo, pançudo.
- Então tu não foste comido pelos leões lá na África!? –
balbuciei eu.
Ele riu-se estrondosamente daquilo que supôs ser apenas uma
boa piada estilo colonial. Até que, fazendo aqueles olhos de cão rafeiro tão
meus conhecidos, zás-trás, cravou-me «dez continhos até ao mês seguinte».
- Bem vês, sou um pobre retornado a quem até a camisa
roubaram…
Apeteceu-me voltar as costas ao devorado amigo, mas a força
do hábito fez-me levar a mão ao bolso, à procura do livro de cheques.
Foi a quanto me soube a certeza de que, embora nos dêem por
mortos, podemos continuar vivos. Bem, a não ser que o Rossio seja o Inferno, já
que, para Céu, tem pregoeiros a mais e harpas a menos. Seja como for, pelo sim
pelo não, ao despedir-me do ressuscitado caloteiro, apenas lhe disse, como se
estivesse à beira da sua campa:
- Descansa em Paz!
Mário Braga
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