por João B Serra
No terceiro período do 7º ano, os meus pais alugaram-me um quarto nas Caldas. Na contabilidade da decisão entraram as despesas com o transporte e o tempo perdido em viagens diárias de mais de duas horas. Na Rua da Electricidade, ajustaram quarto e refeições por uma módica quantia. Na mesma casa era inquilino o Virgílio.
Já nos conhecíamos, evidentemente, mas a partilha da casa aproximou-nos. O Virgílio tinha aportado ao ERO apenas naquele ano de 1965/1966, com estadia anterior em outros colégios. Era fácil estabelecer contacto com ele e, apesar do singular rumor sobre a suas origens sociais, simpatizava-se depressa com o seu feitio bem disposto e despreocupado. Dizia-se que era monárquico, condição intrigante e cujo alcance exacto desconhecíamos. Parece que descendia de linhagens nobiliárquicas, coisa que no ERO naquele tempo não tinha expressão significativa. De qualquer modo, esse eventual tónus diferenciador não parecia sobrepor-se ao trato afável com que lidava com todos nós. O único vestígio aristocrático parecia residir num enigmático “y” que ornava o seu segundo nome. Virgílio Ruy. Virgílio Ruy Rodrigues Pestana de seu nome completo.
Os pais do Virgílio habitavam em Alcobaça. Conheci-os num fim de semana agenciado para me introduzir no meio literário alcobacense. Nada na maneira como me receberam me pôs de alerta relativamente a atitudes invulgares, pelo que fiquei a duvidar do real valor da sobrevivência do ípsilon. O Virgílio propusera-se apresentar-me ao grupo constituído por Alberto Costa, António Maria de Sousa, Levi Condinho, Leonel Fadigas e Rui Rasquilho. Eu mostrara um especial interesse em conhecer o primeiro, um ano mais velho, a frequentar já o curso a que eu na altura me destinava, Direito.
No ERO, preparando-se o Virgílio para seguir Económicas, não frequentávamos a mesma turma e não coincidíamos nos horários. Mas almoçávamos e jantávamos à mesma hora, na casita modesta da Rua da Electricidade, ao som do Rádio Clube Português, dos “Parodiantes de Lisboa” ou do “Quando o telefone toca” de Matos Maia.
Duas ou três vezes por semana eu rumava, após o jantar, à residência paroquial onde partilhava o serão do Padre Renato entre o De Bello Gallico de Caius Julius Caesar (o meu encargo) e o Tintin do Hergé (o divertimento do padre). Nesses dias, era suposto o Virgílio ficar no seu quarto, a preparar as aulas e os pontos, mas ele aproveitava a oportunidade para sair. A minha companhia dispensava-a mal chegava à esquina da Avenida. Um dia vi-o entrar num “Mini” conduzido por um dos filhos de Alberto Pinto Ribeiro, o sócio-gerente da Secla, e fiquei apreensivo com o impacto de tais saídas na performance académica, já de si periclitante, do meu companheiro.
Ele estava porém acima de tudo preocupado com a reacção dos pais se acaso a nossa senhoria os informasse da hora avançada a que o seu filho às vezes regressava a casa. Pediu então a minha conivência para um expediente que congeminara. Como o meu quarto dava para a rua, pediu-me que deixasse a janela apenas encostada, para que ele pudesse entrar por ali e seguir para o seu quarto, evitando o risco de alertar a senhoria com os estalidos da fechadura da porta.
Anui, solidário, sem perguntas. Até ontem, na Encontros dos antigos alunos do ERO, a 17 de Novembro de 2009.
Já nos conhecíamos, evidentemente, mas a partilha da casa aproximou-nos. O Virgílio tinha aportado ao ERO apenas naquele ano de 1965/1966, com estadia anterior em outros colégios. Era fácil estabelecer contacto com ele e, apesar do singular rumor sobre a suas origens sociais, simpatizava-se depressa com o seu feitio bem disposto e despreocupado. Dizia-se que era monárquico, condição intrigante e cujo alcance exacto desconhecíamos. Parece que descendia de linhagens nobiliárquicas, coisa que no ERO naquele tempo não tinha expressão significativa. De qualquer modo, esse eventual tónus diferenciador não parecia sobrepor-se ao trato afável com que lidava com todos nós. O único vestígio aristocrático parecia residir num enigmático “y” que ornava o seu segundo nome. Virgílio Ruy. Virgílio Ruy Rodrigues Pestana de seu nome completo.
Os pais do Virgílio habitavam em Alcobaça. Conheci-os num fim de semana agenciado para me introduzir no meio literário alcobacense. Nada na maneira como me receberam me pôs de alerta relativamente a atitudes invulgares, pelo que fiquei a duvidar do real valor da sobrevivência do ípsilon. O Virgílio propusera-se apresentar-me ao grupo constituído por Alberto Costa, António Maria de Sousa, Levi Condinho, Leonel Fadigas e Rui Rasquilho. Eu mostrara um especial interesse em conhecer o primeiro, um ano mais velho, a frequentar já o curso a que eu na altura me destinava, Direito.
No ERO, preparando-se o Virgílio para seguir Económicas, não frequentávamos a mesma turma e não coincidíamos nos horários. Mas almoçávamos e jantávamos à mesma hora, na casita modesta da Rua da Electricidade, ao som do Rádio Clube Português, dos “Parodiantes de Lisboa” ou do “Quando o telefone toca” de Matos Maia.
Duas ou três vezes por semana eu rumava, após o jantar, à residência paroquial onde partilhava o serão do Padre Renato entre o De Bello Gallico de Caius Julius Caesar (o meu encargo) e o Tintin do Hergé (o divertimento do padre). Nesses dias, era suposto o Virgílio ficar no seu quarto, a preparar as aulas e os pontos, mas ele aproveitava a oportunidade para sair. A minha companhia dispensava-a mal chegava à esquina da Avenida. Um dia vi-o entrar num “Mini” conduzido por um dos filhos de Alberto Pinto Ribeiro, o sócio-gerente da Secla, e fiquei apreensivo com o impacto de tais saídas na performance académica, já de si periclitante, do meu companheiro.
Ele estava porém acima de tudo preocupado com a reacção dos pais se acaso a nossa senhoria os informasse da hora avançada a que o seu filho às vezes regressava a casa. Pediu então a minha conivência para um expediente que congeminara. Como o meu quarto dava para a rua, pediu-me que deixasse a janela apenas encostada, para que ele pudesse entrar por ali e seguir para o seu quarto, evitando o risco de alertar a senhoria com os estalidos da fechadura da porta.
Anui, solidário, sem perguntas. Até ontem, na Encontros dos antigos alunos do ERO, a 17 de Novembro de 2009.
Ficámos na mesma mesa. Nos 43 anos que decorreram sobre esse longínquo terceiro período (numa época em que os tempos lectivos eram ternários e não binários) vimo-nos três vezes – uma na faculdade, outra num movimento de professores e outra ainda no funeral de um antigo colega. Conheci desta vez a mulher e o sogro, que o acompanharam no almoço da Lareira. Falámos sem pressas dos desafios que enfrentamos hoje e prometemos visitas mútuas aos locais onde criamos novos mundos. Foi então que a pergunta nunca antes feita emergiu e ganhou urgência. – Virgílio, onde iam vocês no Mini, que nunca te ouvir chegar?
E ele, numa resposta pronta, como se há muito a tivesse preparada: – Íamos a Lisboa, ao Aeroporto, e voltávamos de seguida. Sabes, o Luís saía furtivamente de casa, levando o carro da mãe. Ela não sabia de nada. Era uma viagem demorada. Como sabes. Hora e meia para lá, tomávamos qualquer coisa no Aeroporto, hora e meia para cá. Ali no Carregado passávamos sempre com o coração nas mãos. Havia um posto da GNR, lembras-te? E o Luís a conduzir sem carta... Mas o Aeroporto, João! O gozo que aquilo nos dava!
João Serra
E ele, numa resposta pronta, como se há muito a tivesse preparada: – Íamos a Lisboa, ao Aeroporto, e voltávamos de seguida. Sabes, o Luís saía furtivamente de casa, levando o carro da mãe. Ela não sabia de nada. Era uma viagem demorada. Como sabes. Hora e meia para lá, tomávamos qualquer coisa no Aeroporto, hora e meia para cá. Ali no Carregado passávamos sempre com o coração nas mãos. Havia um posto da GNR, lembras-te? E o Luís a conduzir sem carta... Mas o Aeroporto, João! O gozo que aquilo nos dava!
João Serra
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[Publicado em colaboração com o blogue do autor: o que eu andei]
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C O M E N T Á R I O S
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Belão disse...
Diverti-me imenso a ler este texto do João. Confesso que tenho lido pouco o blogue, pois a burocracia em que mergulhou a minha escola e o cansaço daí resultante impedem-me de fazer o que quer que vá para além disso, mas este bocadinho foi fantástico.
Diverti-me imenso a ler este texto do João. Confesso que tenho lido pouco o blogue, pois a burocracia em que mergulhou a minha escola e o cansaço daí resultante impedem-me de fazer o que quer que vá para além disso, mas este bocadinho foi fantástico.
Adoro quando o João escreve neste registo, que nos prende e diverte em simultâneo.
Um beijo, João.
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São Caixinha disse:
Li com muito interesse e agrado esta mágnifica narrativa do J B Serra! Gostei particularmente do cuidado empregue em manter o suspense, o humor... e as recordações que me trouxe de situações idênticas!! Não exatamente a da janela aberta para poder entrar em casa evitando os estalidos da fechadura como suspeitam, mas o escutar os "Parodiantes de Lisboa" e "Quando o telefona toca" à hora das refeições!!! Eram realmente outros tempos e estão aqui deliciosamente retratados!! Gostei muito!
São Caixinha
São Caixinha
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JJ disse:
As viagens de automóvel constituíam, nos meados dos anos sessenta, um luxo e um prazer, independentemente do destino ou mesmo da sua utilidade. Poucos, muito poucos, jovens tinham carro e, por isso, entre as camadas jovens isso era ainda mais evidente.
Este magnífico texto do João Serra dispensa os meus elogios, mas não resisto a confidenciar-vos que evocou em mim a recordação de meia dúzia de episódios que vou talvez recordar num próximo post (passará a ser esse o seu único defeito...).
Um abraço ao João por contribuir para que este blogue tenha razão de existir. JJ
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jorge disse...
saúdo o regresso ao objectivo inicial deste blogue nos últimos posts,bem como do extraordinário cronista que é o joão serra.excelentes as fotografias das nossas colegas,muito bom este relato das aventuras do pestana e do luis que eu ainda conheci.parabéns e um abraço.jorge
jorge disse...
saúdo o regresso ao objectivo inicial deste blogue nos últimos posts,bem como do extraordinário cronista que é o joão serra.excelentes as fotografias das nossas colegas,muito bom este relato das aventuras do pestana e do luis que eu ainda conheci.parabéns e um abraço.jorge
João Ramos Franco disse...
O João Serra já nos habituou, quando “pega na pena” e nos retrata momentos da sua vida, a desfrutar de belos episódios. As palavras que escreve têm uma carga de realidade tão fácil de entender e admitir para mim ... então neste caso do carro e das fugas para Lisboa bem podia estar a falar de mim, como do Luís ou de alguns outros que o fizeram… A janela do quarto aberta, era igual comigo e o meu irmão…
O João Serra já nos habituou, quando “pega na pena” e nos retrata momentos da sua vida, a desfrutar de belos episódios. As palavras que escreve têm uma carga de realidade tão fácil de entender e admitir para mim ... então neste caso do carro e das fugas para Lisboa bem podia estar a falar de mim, como do Luís ou de alguns outros que o fizeram… A janela do quarto aberta, era igual comigo e o meu irmão…
Factos passados na época em que éramos estudantes vão aparecendo ligados a um percurso paralelo que todos nós fizemos, muitas vezes sem nos apercebermos, mas que acabam por se reflectir na criação da nossa personalidade.
João Ramos Franco
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Julinha disse:
Muito engraçado este texto do João Serra.Uma estória autêntica que retrata muito bem aqueles tempos !
O gozo e prazer que lhes daria naquela altura a viagem de ida e volta a Lisboa para irem ao Aeroporto... Foram 43 anos....mas João valeu a pena, tu desvendaste o mistério que ainda te intrigava e nós divertimo-nos!
Com isto também podemos concluir o quão importantes são estes Almoços do ERO.
Um Abraço
Júlia R
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Laura Morgado disse:
Gostei muito deste texto, de leitura fácil, que ajuda a relembrar outros episódios já esquecidos.
Agradeço ao João Serra (na minha turma mais conhecido pelo Bonifácio) todos os bons momentos que me fez relembrar.Era uma festa, quando ao fim-de-semana um pai se lembrava dos amigos dos filhos e os convidava para ir a Lisboa.Essa viagem não passava de uma ida ao Aeroporto beber um café e contemplar da varanda a subida e descida dos aviões.Que bom que era aquele café, melhor que qualquer outro vendido nas Caldas.
Quando o passeio coincidia com a Época Natalícia, havia sempre uma pequena paragem em Alenquer para admirar o Presépio.
Como éramos felizes com tão pouco!
Laurinha
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Isabel Cx disse:
O texto do Bonifácio descreve um passado que me é tão familiar, repleto de elementos que estavam já esquecidos algures na minha memória e que, ao revê-los, foi assim como que uma regressão a uma "vida passada".
Gostei deste mistério que nunca foi desvendado, em que nem um dizia onde ia nem o outro perguntava, até que, ao fim de tantos anos, surgiu a pergunta com a resposta também há tantos anos pronta a responder... que demonstração de respeito pelo amigo. Como se o tempo tivesse parado e tivesse sido ontem...sem interrupções!
Beijinho
Isabel Caixinha
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Manuela G V disse:
O facto de Virgílio ser um nome inspirador e os serões do João Serra com o saudoso P.e Renato, talvez justificassem que este título -"O Mistério das Noites de Virgílio"- fosse escrito em Latim...
Desconhecia em absoluto o fascínio que, a julgar pelos comentários anteriores, o aeroporto suscitava. Afinal, não só aos olhos do Virgílio e do seu amigo.
O que me é muito caro verificar neste texto, para além da cumplicidade, o respeito do João pelo "segredo" do Virgílio, ainda que a curiosidade o "assaltasse" ao longo de 43 anos!Os amigos não fazem perguntas, confiam.Tudo uma questão de CARÁCTER!
Já agora, João, para a próxima vez que se encontre com o Virgílio, satisfaça mais essa "curiosidade": o ípsilon! Arriscar-me-ia a dizer que foi lapso de redacção no Assento do Registo de Nascimento do Virgílio.
Gostei muito do seu texto, como sempre!
Maria Manuela Gama Vieira
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António J M disse...
Há mais histórias destas escapadelas para contar,será a isso que o Jales se refere quando comenta?
Há mais histórias destas escapadelas para contar,será a isso que o Jales se refere quando comenta?
Ainda me intterroguei porque é que o Virgilio nunca levou o João ao Aeroporto mas depois percebi:alguem tinha de deixar a janela aberta!
Excelente artigo e muito bem escrito como é habitual no autor.
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Anabela disse:
Como sempre uma delícia ler um texto do João Serra. Este seu género de narração é sempre muito divertido e transporta-nos imediatamente, neste caso, aos célebres e saudosos anos sessenta.
Prendeu-me e encantou-me..........
Obrigada
Anabela Miguel
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3 comentários:
saúdo o regresso ao objectivo inicial deste blogue nos últimos posts,bem como do extraordinário cronista que é o joão serra.excelentes as fotografias das nossas colegas,muito bom este relato das aventuras do pestana e do luis que eu ainda conheci.parabéns e um abraço.jorge
O João Serra já não nos habituou quando “pega na pena” e nos retrata momentos da sua vida, a desfrutar de belos episódios. As palavras que escreve têm uma carga de realidade tão fácil de entender e admitir, para mim, então neste caso do carro e das fugas para Lisboa, que bem podia estar a falar de mim, como do Luís ou de alguns outros que o fizeram… A janela do quarto aberta, era igual com o meu irmão…
Factos passados da época em que éramos estudantes vão aparecendo ligados a um percurso paralelo que todos nós fazemos, muitas vezes sem nos apercebermos, mas que acabam por se reflectir na criação da nossa personalidade.
João Ramos Franco
Há mais histórias destas escapadelas para contar,será a isso que o Jales se refere quando comenta?
Ainda me intterroguei porque é que o Virgilio nunca levou o João ao Aeroporto mas depois percebi:alguem tinha de deixar a janela aberta!
Excelente artigo e muito bem escrito como é habitual no autor.
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