ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
.
.

ADEUS RUI




Conhecemo-nos no princípio dos anos sessenta. Já nós morávamos nas Caldas há cerca de um ano quando a minha mãe me informou que um casal amigo de Alcobaça, com dois rapazinhos (sic) da minha idade, se tinha mudado para cá. Como tinham acabado de chegar e ainda não tinham amigos, pediu-me que fosse brincar com eles. E assim foi, com o entusiasmo próprio da infância lá me dirigi à Rua das Vacarias, primeira morada da família Hipólito nas Caldas da Rainha, para conhecer e brincar com o Tó Zé e o Rui.
.
Deslumbramento total, o quarto deles parecia a caverna do Alibábá! Legos, Corgy Toys, Dinky Toys, Action Man; Cavaleiro Andante, Mundo de Aventuras, Tintin, Pato Donald e Zé Carioca,Falcão, Ene 3, Major Alvega; pistolas, espingardas, metralhadoras, espadas, machados e arcos de flechas, tudo em maior quantidade e diversidade do que eu próprio tinha.Ficámos amigos logo ali.
.
Passado algum tempo a família mudou-se para a Rua Duarte Pacheco, para a casa mesmo em frente à minha residência de então, onde ainda hoje reside a D. Euritze, e a partir daí a convivência passou a ser diária.
.
Grandes batalhas de varanda a varanda, cowboys contra índios, alemães contra aliados na Segunda Guerra Mundial, viagens espaciais com recontros com civilizações desconhecidas, relativamente às quais tínhamos sempre vantagem graças à minha espingarda de raios azuis (prenda do  Natal anterior, adquirida pelo meu pai na Tália). Espaço certo de aventura era o depósito da câmara, então no local onde hoje se encontra a própria Câmara Municipal, ao qual tínhamos acesso graças ao facto de o Eng.º Hipólito ser quadro superior do município.
.
Repleto de materiais que tanto podiam servir para construir um castelo da idade média como um forte da cavalaria americana, nunca as passadeiras de madeira da praia da Foz do Arelho viajaram tanto no tempo e no espaço.
.
 Entretanto, a vida profissional do meu pai obrigou a que nos mudássemos para Rio Maior e, inevitavelmente, o contacto com o Rui passou a ser muito mais escasso. Na prática, durante algum tempo, resumiu-se aos encontros ocasionais ao Sábado à tarde, coincidindo com as idas às compras de roupa -era a época do auge da Goya, onde desaguavam clientes desde Santarém até Leiria.
.
Também em termos escolares seguimos percursos distintos, o Rui sempre nas Caldas, com a única excepção de um ano passado no Liceu de Leiria, que detestou, e eu, depois de dois anos no Colégio de Rio Maior, frequentei o mesmo Liceu de Leiria, que adorei.
.
Estávamos assim, neste estado de amizade distante, quando, abrupta e naturalmente, irrompeu a adolescência e os focos de interesse passaram a ser outros.E então, para quem como eu residia durante as férias em Rio Maior, só havia uma solução –ir às Caldas , o centro da civilização. A Zaira, o Camaroeiro Real, o Casino e os seus bailes de Verão, o Ferro Velho,as idas aos bares de Óbidos, etc, etc…
.
Nesta fase, já o Rui era de novo o ponto de apoio que, sempre actualizado e informado, sabia onde se devia ir depois do café na Zaira e de algumas, ou mais que isso, imperiais no Camaroeiro.Tanto podia ser o baile de finalistas no Casino, como a festa de Verão em qualquer aldeia próxima ou, ainda, o inevitável Ferro Velho, essa universidade da diversão, educando o gosto musical, estimulando o prazer da dança e propiciando grandes amizades e alguns amores que duram até hoje.
.
Quando chegou o tempo da universidade, a ida do Rui para Lisboa beneficiou do facto de eu, um ano mais velho, já ter o terreno quase todo batido. Está claro que imediatamente se juntou ao grupo que ido de Leiria, Alcobaça, Rio Maior e Caldas fazia do Café Londres, primeiro, e depois quando este fechou, do Roma o ponto de encontro e escritório. Estou mesmo pessoalmente convencido que passámos mais tempo no Roma do que no Técnico!
.
Lisboa abria novos mundos que nós, jovens navegadores ávidos de novas experiências, não recusávamos explorar, mesmo que à custa do bom andamento dos estudos.
.
A agitação político-universitária, o cinema, as cervejarias, escolas de pós graduação em tudo o que interessa quando se tem 18-20 anos, a Portugália, a Trindade, o Pote, o Alfredo, a Alga, centros de saber profusamente regado a muitos litros de cerveja e onde quem fosse à casa de banho tinha como prémio uma embalagem de mostarda despejada na sua caneca ou girafa.
.
O culminar destas longas noites era, muitas vezes, o Bolero, uma casa de prostituição no Martim Moniz, entretanto tomada pela boémia estudantil e intelectual desse tempo, para grande desespero das profissionais que não faziam negócio e, pior, cujos clientes habituais se afastavam, dada a manifesta incompatibilidade com a nova frequência agora maioritária. Convém esclarecer que, nessa época, o Bolero passava boa música, tinha um fabuloso pianista, cego, e as bebidas eram baratas. Não admira portanto que o pessoal que frequentava a noite aí a acabasse com grande frequência. Era,juntamente com o famoso Jamaica,um dos melhores locais alternativos da noite lisboeta.
.
Por falar em Cais do Sodré, inevitavelmente chegou uma ocasião em que um grupo de amigos, entre os quais o Rui e eu, decidiu ir ver como aquilo era. As histórias que se contavam, de putas e marinheiros, entre outros protagonistas, eram extremamente atraentes para garotos de 17-18 anos com as jovens cabeças cheias de filmes franceses e comédias italianas. Escolhido o local, o famoso Bar Oslo, entrámos, pedimos umas cervejas e ficámos ali especados a ver o movimento e sem nos atrevermos a falar com ninguém fora do nosso grupo. As artistas, está claro, não nos ligaram nenhuma, porque perceberam ao primeiro relance que não passávamos de um bando de garotos a tentar passar por adultos. Entretanto, o Rui bate-me no braço e pergunta-me se eu não preciso de ir à casa de banho. Respondi que não e a noite continuou. Passado mais um tempo, a mesma pergunta e idêntica resposta, até que à terceira vez, o questiono se é ele que  quer ir ao WC .
-Sim - respondeu.
-Então porque é que não vais? –  perguntei.
-Tenho medo de ir sozinho - foi a envergonhada resposta.
E lá fomos os dois, feitos meninas, à casa de banho do Oslo.
.
Outro local de farra era o apartamento que a família Hipólito tinha no Estoril. Felizmente, que se saiba, nunca teve conhecimento do que por lá se passava. Porto de abrigo seguro para as noitadas passadas na zona de Cascais, fosse o Festival de Jazz ou idas avulsas ao 2001, foi lá que se descobriram inesperadas vocações culinárias surgidas a altas horas da madrugada, nomeadamente as famosíssimas sopas Knorr generosamente aditivadas com vodka, martini e o mais que o Engº Hipólito tivesse na garrafeira. De facto, aos vinte anos não se tem fígado!
.
Como o mundo é pequeno e andávamos todos ao mesmo, uma das vezes que fui para Torremolinos com o grupo de amigos de Rio Maior, estava eu a dormir na Ford Transit em que nos deslocávamos, quando começo a ouvir pancadas insistentes na porta. Tínhamos passado a noite nas discotecas do costume até às quinhentas, portanto não podia ser nenhum dos meus companheiros, que estavam a dormir nas tendas. Apesar de ser cedíssimo, para aí onze horas, meio-dia, entreabri os olhos e vejo a cara do Rui no vidro da porta traseira. Chocado, decidi que não podia beber tanto, já que estava com alucinações e, ainda por cima, em vez de ter visões com as belas inglesas, irlandesas, espanholas e o mais que por lá andava, era a imagem do Rui que me aparecia. Confortado com esta decisão, voltei a dormir. Porém, as pancadas não pararam e lá fui obrigado a acordar. Era mesmo o Rui, tínhamos estacionado a nossa carrinha mesmo ao lado de um Peugeot de matrícula portuguesa, que era nem mais nem menos que o veículo em que um grupo de amigos das Caldas se tinha deslocado para Benidorm. No regresso, pararam em Torremolinos e acamparam mesmo ao lado das nossas tendas, sem saber. Foi uma bela confraternização, tão mais agradável quanto completamente inesperada.
 .
Longas noites, muitas histórias. Pena que algumas das melhores não possam ser  contadas.

Inevitavelmente a festa acabou, chegou o tempo das responsabilidades, emprego, casamento, filhos. Continuámos a encontrarmo-nos e a passar bons momentos juntos, já com as respectivas esposas e algumas vezes com os próprios filhos ainda bebés, os bons princípios devem ser inculcados cedo.
.
Por essa altura, numa das nossas visitas às Caldas, acabámos no Pachá a beber umas imperiais e a petiscar qualquer coisa. Nada de mais, não fosse o facto de a Arlinda estar gravidíssima do segundo filho. Perante o olhar horrorizado da minha mulher, despachámos, Arlinda incluída, moelas, orelha de porco, salada de polvo e outras vitualhas do mesmo género. Como o que tem de ser tem muita força, a Mafalda nasceu passadas poucas horas e ninguém me convence que a energia, a força e tudo aquilo que é característico da sua forte personalidade e carácter não são devedoras daquela magnífica libação.
.
O tempo foi passando e a certa altura, quando decidi comprar uma casa de férias na região, foi ao Rui que recorri para me ajudar. Generoso e disponível como sempre, ocupou muitos Sábados a passear connosco pelas redondezas mostrando-nos locais, casas e estabelecendo contactos com potenciais vendedores. Devo confessar que, detestando ver casas, a minha maior motivação nessas visitas era o inevitável lanche, quase sempre numa tasquinha dos Pimpões, com que encerrávamos mais uma jornada imobiliária.
.
Comprada a casa, era quase uma tradição o encontro ao Sábado de manhã na Venézia para pôr a escrita em dia e combinar qualquer eventual paródia.



Até que, inesperadamente como sempre acontece com as más notícias, o Rui começou a emagrecer e a sua pele a tomar um tom cinzento/esverdeado. Iniciou-se então a grande batalha pela vida que haveria de ocupar os últimos dois anos.
.
Corajoso, digno, estóico dedicou-se aos tratamentos com toda a força e empenho a que a sua enorme alegria de viver o impelia. Sempre calmo, sem uma queixa, sem manifestar azedume algum. Sofreu mais do que era justo e morreu em paz.

Adeus Rui, meu velho e querido amigo, ir às Caldas nunca mais será a mesma coisa.

 José Manuel Franco     
  (Agosto 2011)
.

C O M E N T Á R I O S 
.
JMiguel disse...

Obrigado por este texto que retrata o Rui Hipólito duma forma coincidente com a imagem que tenho dele. A alegria, melhor a joie de vivre, do Rui está muito bem captada e é um lenitivo precioso neste momento triste. 

Presumo que não o conheço, mas a transitividade da amizade (Os amigos dos meus amigos, meus amigos são) permite dizer-lhe:Eh Pá! Muito obrigado!
 JMiguel
.
  Anónimo disse...
Parabéns Zé por este bonito texto sobre o nosso amigo Rui, Que saudades...
        

2 comentários:

JMiguel disse...

Obrigado por este texto que retrata o Rui Hipólito duma forma coincidente com a imagem que tenho dele. A alegria, melhor a joie de vivre, do Rui está muito bem captada e é um lenitivo precioso neste momento triste. Presumo que não o conheço, mas a transitividade da amizade (Os amigos dos meus amigos, meus amigos são) permite dizer-lhe:Eh Pá! Muito obrigado! JMiguel

Anónimo disse...

Parabens Zé por este bonito texto sobre o nosso amigo Rui, Que saudades...