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Sobre aquilo que foi a dimensão de cidadania do Rui se escreverá e bem, pela certa. Poder-se-á falar da entusiástica capacidade de entrega que havia nele, no Cine-Clube ou na Cooperativa Margem, sempre animado por um enraizado amor pela sua cidade. Será decerto referido a atenção, inquieta, desassossegada, ao Mundo e ao seu devir (à Sociedade por vir) e aquela agudeza crítica de desmontar os costumes de que é feito, transposta em escárnios mordazes. E eu acho que sim. Mas prefiro antes contar uma amizade de quase meio-século, vinda lá de menino, da ginástica nos Bombeiros, dos futebóis na Mata, primeiro na modalidade de muda aos cinco/acaba aos dez, a seguir no campo da dita em rijos desafios Externato Ramalho Ortigão versus Escola Bordalo Pinheiro ou nas bancadas, aos domingos, a apoiar o Caldas, clube onde confluía o nosso fervor de adeptos convictos, Sportinguista (ele), Benfiquista (eu).
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Rebeldes inconformados face ao arcaísmo conservador do Colégio, emergíamos criaturas do Verão, de mergulhos na Foz e das andaduras noctívagas por aí, à boleia ou tomando de empréstimo involuntário o «popó» de garagens paternas, com recolha colectiva de trocos para a gasolina ou, à míngua de fundos, com ela desavergonhadamente desviada para garantir o carburante etílico propulsor destas rapaziadas, jovens índios à solta em acampamentos no Algarve ou em incursões em Torremolinos, estúrdia e rambóias de, mais tarde, às tantas, fechar o Pote ou a Portugália e transitar, na rota lisboeta da cerveja, para a Alga, que pura e simplesmente não encerrava…
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E vivermos de porta com porta, num patamar franco de «ò vizinha, dá-me lume?», em exercícios de alquimia pantagruélica (para desespero da Arlinda, que ficava com a cozinha virada de pantanas), mais solos de harmónio para o João, miúdo de colo, pedir bis (o melhor público que eu poderia ter. Perdoai-lhe Senhor, que ele era pequenino e não sabia o que dizia…), da Mafalda de berço e baixar a música não fosse ela acordar…
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E a aventura da Rádio, pirata como convinha, com o «Círculo da Noite», da meia-noite às duas, nós os dois e o Zé Fragoso, não é para a gente se gabar, passando o melhor que a música da década de 80 tinha para dar.
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E por aí adiante…
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A doença, de cabelos de bolor negro e dentes verdes, roubou-lhe a força, mas nunca a lucidez!
Somos feitos da matéria com que se fazem os sonhos (roubado ao Shakespeare) e, de súbito, desaparecemos desfeitos em fumo no ar.
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Enquanto a tristeza se eleva em espiral, penso em ti, ao som de «At the Hop» dos Sha-Na-Na ou «My Generation» dos The Who em Woodstock, de que tanto gostavas. Falta-me essa risada escarninha a luzir, maliciosa, nos teus olhos…
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À tua, meu!
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José Carlos Faria
(publicado em colaboração com "A Gazeta das Caldas")
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