Esta semana morreu-me um amigo que não conhecia.
Por vezes acontece-me isto. Morrem-me pessoas que me são queridas e que contudo eu não conheço pessoalmente mas sei quem são, onde vivem, com quem se dão. Que sei tudo acerca deles, o que fizeram na vida.
Pessoas que à boa maneira da minha cidade eu cumprimentaria se o encontrasse fora dela, com um aperto de mãos até, se fosse no estrangeiro, mas que nem sequer um sorriso ou um olhar nos olhos daria se nos cruzássemos nas ruas.
Sei que o contrário seria também verdadeiro. Que ele me cumprimentaria fora do nosso contexto habitual e que sentiria a minha morte como se de um amigo se tratasse.
O Rui era uns bons anos mais velho do que eu mas apesar da diferença de idades frequentámos em simultâneo o Externato Ramalho Ortigão durante quatro anos.
Depois, a proximidade das residências, os locais de convívio comuns, o Casino, os courts de ténis, a Zaira, a Foz, o Ferro Velho e a Azenha e todas as outras dezenas de locais, a relação de cordialidade e amizade entre as famílias, a minha amizade com os irmãos e irmãs mais novos dos seus maiores amigos, tudo contribuiu para que nos víssemos com frequência durante longos anos.
A existência do Rui paralela à minha própria tornou-o uma figura sempre presente nas várias etapas da minha vida e na realidade o que recordo com carinho nestes amigos que me morrem ou que ainda se mantém à distância da minha vida são os seus rostos, os seus sorrisos, as suas falas largas e altas acompanhadas de graças e gargalhadas que marcaram muitos dos meus momentos.
Eles datam-me e são como marcos fundamentais da minha existência. À distância foram testemunhos do meu crescimento e podem afiançar por mim. Eles podem dizer que eu existo ou que eu existi durante tantos anos.
A sua presença, como a do Rui, pode apenas fazer-se sentir a espaços, por vezes com intervalos de anos, mas estão por cá e eu sei que posso contar com o reencontro mais tarde ou mais cedo. Ambos sabemos quem é o outro e podemos falar dele com amizade perante terceiros. Poderão nos apresentar, nos avalizar, e nos recomendar sem nunca ter tido contacto directo nem nunca necessitando de o ter.
Basta estarmos.
O Rui morreu e com ele desaparece uma parte da minha vida, pois esta é feita de pessoas, locais, eventos que nos formam as boas recordações, nos trazem felicidade nas memórias e nos aconchegam para o futuro pois sabemos que não estamos sós. E que mesmo estes amigos que não conhecemos estarão para nós se a eles apelarmos.
Eu não conheci o Rui e no entanto durante mais de quarenta anos ele fez parte da minha vida. Agora sinto tanto a falta dele como se um amigo pessoal se tratasse. Custa-me pensar que não o verei mais, que não verei o seu rosto anguloso, a barba de loura de três dias, os olhos claros e demasiado juntos e o seu sorriso permanente.
Quando li uma vez umas histórias engraçadas da sua juventude contadas por um amigo comum, ri-me e pensei que aquilo era mesmo típico do Rui. Não o conhecia pessoalmente mas já o conhecia tão bem! Se me contassem algo a seu respeito eu sorriria a confirmar que era mesmo do Rui ou me surpreenderia por não ser nada o seu género. E no entanto eu não o conhecia pessoalmente.
Eu vou sempre sentir a sua falta. É uma parte de mim, um testemunho que poderei dar e um testemunho de mim que alguém poderia dar que se perde. Um dia desapareceremos todos. O Rui, eu e os amigos comuns, os que nos conheciam pessoalmente e os que eram nossos amigos sem nos conhecer. E nessa altura então, desapareceremos. Morreremos de vez, pois não haverá ninguém que nos recorde e a nossa existência será ignorada como se nunca tivesse existido. E ninguém saberá como marcámos os outros, como o Rui nos marcou.
Escrevo para que outros o leiam, para que saibam.
Que saibam que o Rui tinha amigos que não conhecia. E que a amizade conhece várias formas, uma delas pode ser através de um escrito arrancado a lágrimas, de saudade, de omissão.
Estranho esta nossa forma de ser. Podemos estar anos sem ver alguém de que sabemos onde vive, o que faz, mas apenas quando nos apercebemos da possibilidade de nunca mais o ver, por ter partido para paragens distantes ou partido para lugares de onde o retorno é muito incerto sentimos então saudades. Eu estava anos sem ver o Rui e apenas constatava o facto, agora o Rui partiu há poucos dias e eu já sinto saudades.
Paulo Caiado
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