Sinto que não devo terminar esta incursão pela memória do espaço e da sociedade caldense da minha adolescência, sem referir sumariamente, em duas ou três pinceladas rápidas, o movimento cultural local.
A «movida» caldense dos anos 60, se é que me posso exprimir assim (ressalvadas evidentemente as distâncias entre as Caldas dos anos 60 e a Barcelona da década de 80), era demográfica e socialmente alimentada pelos bandos familiares que aportavam à cidade no Verão e pelos militares do RI 5 que se renovavam em sucessivas levas de recrutas, tinha como pólos dinâmicos o Conjunto Cénico Caldense e a Tertúlia Artes e Letras (a que me referi em crónica anterior) e como pontos obrigatórios da noite tribal e boémia o «Ferro Velho» e o «Inferno da Azenha».
A instalação de veraneio nas Caldas durante um, dois ou mesmo três meses, constituía prática antiga, remontando pelo menos ao século XIX. Na altura, era a corte e a fina-flor aristocrata e burguesa que vinha a banhos. Os periódicos locais anotaram cuidadosamente, desde o seu nascimento em 1884, as chegadas dos membros dos clãs, assomando primeiro os avós acompanhados dos netos, preparando os cómodos para a vinda dos filhos. Mas, nos anos 60, os apelidos sonantes que aportavam às Caldas contar-se-iam pelos dedos de uma só mão, arrastando ignotos vestígios de uma antiga grandeza. As Caldas do Verão tornara-se território das novas classes médias, que apreciavam o clima ameno e a abundância de camas, disponibilidade de praias e a facilidade de abastecimentos, a qualidade do comércio e dos serviços e o ambiente desenvolto que se respirava na cidade.
Há quem defenda, com oportunidade que não sei discutir, que essa «abertura» sentida na cidade pelos forasteiros, em contraste com o muro de reserva e desconfiança característicos dos meios pequenos e fechados sobre si próprios, se ficou a dever a convivência com refugiados judeus, residentes temporários nas Caldas na década de 40. Seja como for, a imagem externa da cidade na década de 60 entre as classes médias lisboetas era muito favorável e desse facto se orgulhava justamente parte da elite local.
Falo de um tempo anterior ao turismo de massa e à devastadora descoberta do Algarve, que desviou as Caldas da rota desse turismo relativamente culto e exigente, que fazia vida na cidade (e não em apartamentos ou aldeamentos), partilhava as preocupações dos caldenses com os seus equipamentos urbanos, animava os espaços públicos da cidade e trazia fôlego novo aos momentos conviviais da sociedade local. Falo de um tempo em que os nossos veraneantes apelavam ao que de melhor as Caldas podiam oferecer e se sentiam tão responsáveis pela cidade como os caldenses que aqui viviam todo o ano.
Falo de um autêntico glamour caldense, que a cidade irradiava com orgulho, de que seus frequentadores habituais tinham plena consciência e buscavam todos os anos reencontrar. Era um sopro, uma aura, um toque cosmopolita no seu provincianismo, uma subtileza cultural provavelmente ímpar. Como eu gostaria de a saber evocar aqui, essa subtileza, nas suas contradições e cambiantes, agora que me parece definitivamente enterrada!
João Bonifácio Serra
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NOTA: Esta crónica foi publicada originalmente na Gazeta das Caldas e consta na recolha "CONTINUAÇÃO". Publicada aqui agora porque penso que expressa bem uma certa atmosfera caldense evocada no artigo anterior, a propósito da fotografia em 62. JJ
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comentários:
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2008/02/07
João Ramos Franco disse:
Evocar essa subtileza, nas suas contradições e cambiante, faz-me recordar como era difícil frequentar a Zaira e Casino (pólo da alta burguesia local) e o Café Central ponto de reunião dos pólos dinâmicos como citas. No dia seguinte éramos criticados pela alta burguesia da cidade, as palavras (ele dá-se com a aquela gente) saltava-lhes da boca e só não éramos excluídos da sua convivência devido ao nome de família. João Ramos Franco
João Bonifácio Serra
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NOTA: Esta crónica foi publicada originalmente na Gazeta das Caldas e consta na recolha "CONTINUAÇÃO". Publicada aqui agora porque penso que expressa bem uma certa atmosfera caldense evocada no artigo anterior, a propósito da fotografia em 62. JJ
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2008/02/07
João Ramos Franco disse:
Evocar essa subtileza, nas suas contradições e cambiante, faz-me recordar como era difícil frequentar a Zaira e Casino (pólo da alta burguesia local) e o Café Central ponto de reunião dos pólos dinâmicos como citas. No dia seguinte éramos criticados pela alta burguesia da cidade, as palavras (ele dá-se com a aquela gente) saltava-lhes da boca e só não éramos excluídos da sua convivência devido ao nome de família. João Ramos Franco
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2008/02/09
Isabel Vieira disse:
Os refugiados da guerra não foram só judeus e não passaram pelas Caldas em 40 só, muitos ficaram nas Caldas a viver e tiveram uma grande influência na maneira de cá viver. Penso que o autor desvaloriza isso um pouco, mas sem razão. Parabéms pelo Blog! Isabel
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2008/02/10
JJ disse:
Não discordando do João Serra, que penso que se limita a não se pronunciar sobre o assunto, estou completamente de acordo com a Isabel em relação à enorme influência dos refugiados no modo de viver nas Caldas, principalmente na forma de viver e conviver das mulheres caldenses. Quem conheceu, como eu, Leiria, Torres Vedras, Alcobaça, Santarém, sabe que essas cidades tinham, nos anos 60, vivências muito mais "fechadas", tanto entre os residentes como em relação aos visitantes. É talvez tema para uma outra crónica.
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2008/02/10
Pereira da Silva disse:
Seria uma pena que esta crónica do Bonifácio Serra se ficasse por um términus de "incursão" e por uma "referência sumária". Digo isto porque esse período histórico local, com poucos paralelos em termos nacionais para cidades de província, merecia registo e análise (para já não dizer teoria, por exemplo, na explicação da formação das elites locais).
O Serra identifica, com propriedade, duas instituições fulcrais: o CCC e a Tertúlia. Todavia, penso que se inserem, como vértices é certo, numa estrutura/textura convivial mais alargada em que (com algumas discriminações geracionais) se podem/devem incluir o Central, o Camaroeiro e o Clube de Inverno.
Incontornáveis para uma reconstituição de factos e ambientes são, em meu entender, o João Maria Ferreira, o Hermínio de Oliveira e o Tó Freitas. Bom...este blog está a tornar-se num caso sério...e ainda bem. José Manuel Pereira da Silva
O Serra identifica, com propriedade, duas instituições fulcrais: o CCC e a Tertúlia. Todavia, penso que se inserem, como vértices é certo, numa estrutura/textura convivial mais alargada em que (com algumas discriminações geracionais) se podem/devem incluir o Central, o Camaroeiro e o Clube de Inverno.
Incontornáveis para uma reconstituição de factos e ambientes são, em meu entender, o João Maria Ferreira, o Hermínio de Oliveira e o Tó Freitas. Bom...este blog está a tornar-se num caso sério...e ainda bem. José Manuel Pereira da Silva
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2008/02/11
Zé Carlos Faria disse:
Caldas da Rainha foi fortemente marcada por uma tradição de convivência e fruição cultural gerada pela frequência termal da aristocracia e duma burguesia de posses, que para aqui se deslocava em vilegiatura. O delicioso escrito do «patrono» Ramalho Ortigão em «Banhos de Caldas e Águas Minerais» é, a este respeito, bem esclarecedor.
A vinda dos refugiados Judeus durante a II Guerra Mundial, parece ter reforçado essa característica. Tratava-se de uma elite cosmopolita, alguns deles em trânsito para os EUA (o famoso «avião para Lisboa» do filme »Casablanca»), que era obrigada, na fronteira, a fazer prova de possuir os meios que garantissem a sua subsistência futura. Talvez devido a este efeito conjugado, o estigma provinciano do imobilismo sufocante, surgia, em muitos aspectos, diluído: cafés cheios até tarde, as famílias, noite dentro, em alegre conversata durante ininterruptas «piscinas» de Verão no tabuleiro da Praça...
Contraste acentuado com o quotidiano de cidades como Évora, por exemplo, a qual, no início da década de 90 do século XX, ainda se assemelhava, sob múltiplos pontos de vista, ao que Vergílio Ferreira, em 1959, tinha descrito na «Aparição» - mentalidade fechada devido ao isolamento, mulheres tendencialmente em casa porque a presença numa esplanada, mesmo de dia, seria, de imediato, um escândalo inusitado, padrões de comportamento esclarecidos pela voz de uma das personagens: «Aqui, nem mais do que a 4ª classe, nem menos do que 400 porcos»!...
A vinda dos refugiados Judeus durante a II Guerra Mundial, parece ter reforçado essa característica. Tratava-se de uma elite cosmopolita, alguns deles em trânsito para os EUA (o famoso «avião para Lisboa» do filme »Casablanca»), que era obrigada, na fronteira, a fazer prova de possuir os meios que garantissem a sua subsistência futura. Talvez devido a este efeito conjugado, o estigma provinciano do imobilismo sufocante, surgia, em muitos aspectos, diluído: cafés cheios até tarde, as famílias, noite dentro, em alegre conversata durante ininterruptas «piscinas» de Verão no tabuleiro da Praça...
Contraste acentuado com o quotidiano de cidades como Évora, por exemplo, a qual, no início da década de 90 do século XX, ainda se assemelhava, sob múltiplos pontos de vista, ao que Vergílio Ferreira, em 1959, tinha descrito na «Aparição» - mentalidade fechada devido ao isolamento, mulheres tendencialmente em casa porque a presença numa esplanada, mesmo de dia, seria, de imediato, um escândalo inusitado, padrões de comportamento esclarecidos pela voz de uma das personagens: «Aqui, nem mais do que a 4ª classe, nem menos do que 400 porcos»!...
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2008/02/11
João Bonifácio Serra respondeu:
Atenção. Este meu texto é tão só uma pequena crónica memorialística publicada na Gazeta das Caldas em 1998, que o João Jales achou oportuno republicar aqui! Talvez superficial, talvez injusta, decerto com omissões e até inexactidões. É só uma crónica. Não pretendi nem fazer, nem rever a história. E como escrevi na primeira pessoa, só me refiro ao que vivi. Não vivi na década de 40, não testemunhei a passagem dos refugiados, limitei-me, a este propósito, a repetir a explicação que muita gente dava. Não quero fugir à questão dos refugiados, que poderei discutir com base em dados mais objectivos do que as observações casuisticas sempre repetidas (mulheres que fumavam em público e frequentavam cafés, por exemplo), mas o tema central da minha crónica de há 10 anos era outro. A alteração dos fluxos turísticos e a crise do termalismo mudaram a "alma" das Caldas. Por outras palavras, deslocaram os seus centros de interesses. Talvez eu estivesse a ser dramático quanto à constatação do "enterro". Mas que a cidade é outra e o seu "glamour" está muito desmaiado é certo. Por vezes, assoma à janela um pouco desse antigo sopro sepultado com a chegada ao poder de um urbanismo preguiçoso e por vezes também inescrupuloso. Está nas iniciativas da “107”, em algumas performances da Esad, na criatividade do Ferreira da Silva, no regresso do “Teatro da Rainha”, no inconformismo de meia dúzia de resistentes maldispostos, nas memórias que ainda o são, no entusiasmo com que repentinamente discutimos supostas "inutilidades", neste blog, por exemplo. É possível que me tenha esquecido de mais alguns sobreviventes. Mas é pouco, acho eu. João Serra
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