ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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Isto de férias tem muito que se lhe diga...

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por João Bonifácio Serra
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Sempre tive sentimentos ambivalentes em relação às férias. Refiro-me sobretudo às férias de Verão. Há quem ache, sumariamente, que com a idade me tornei um “workaholic”. Nada mais errado. A minha desconfiança face ao real significado das férias é atávica. Tem que ver com as minhas origens rurais. Nada mais estranho ao mundo rural onde nasci e cresci do que o conceito de férias.
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No singular, féria era o salário do trabalhador rural. Paga semanalmente, ao Sábado ao fim da tarde, era o resultado dos dias (ou meios-dias) de trabalho efectivo, a multiplicar pelo valor da jorna diária.
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Percebem pois a dificuldade de assimilar férias a não-trabalho e, ainda por cima, não-trabalho pago. Na minha aldeia só o trabalho era pago. Se o trabalhador estivesse impedido de comparecer no local de desempenho, por doença sua ou de familiares, por exemplo, ou até por motivos que não lhe podiam ser imputados (como o estado do tempo), não recebia a sua féria.
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Como se passou, no português, de féria=salário ou jornal (e por extensão, lista destes salários) para féria=dia de descanso é para mim um mistério.
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Lembrar-me-ão que a noção de férias acabou por ser o resultado dos longos períodos em que as escolas fechavam e as meninas e meninos mandados para casa. Mas quem suponha que as filhas e filhos dos camponeses tinham férias à sua espera, sempre que eram libertados das obrigações escolares, está equivocado. Não ter aulas significava para eles exactamente ter outras tarefas distribuídas e porventura bem mais duras: as raparigas, ajudar as mães na lida da casa e da horta e tomar conta dos mais novos, os rapazes ajudar os pais nos trabalhos com o gado e o campo.
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Os meninos da minha aldeia só brincavam na escola. Em certo sentido, as férias escolares estava mais distantes do conceito de férias, do que as aulas propriamente ditas.
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Eu era uma excepção, claro, mas não me parece que os longos meses de férias representassem para mim um atractivo tão forte como para os meus colegas da cidade. Afinal, tirando as duas semanas de praia acrescidas de uma ou duas em casa de familiares em Lisboa, sobrava muito tempo sem actividades partilháveis com companheiros da mesma idade. Lembro-me de os meus pais pedirem a uma família camponesa vizinha licença para o filho, Manuel, vir ao fim da tarde, ou ao Domingo, terminadas as suas obrigações determinadas pelo Pai, brincar comigo.
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Os ritmos da agricultura não eram compatíveis com as férias, designadamente as “férias grandes”. Não me recordo de o meu Pai ter passado férias comigo e com a minha Mãe durante a minha infância e adolescência. Se alugávamos casa em S. Martinho ou na Foz, aparecia à noite e abalava de madrugada. Só o víamos na praia aos Domingos.
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Recuando uma geração, testemunhei que meus Avós gostavam de ver o mar –
todo o mundo rural tinha esse fascínio, organizavam-se excursões aproveitando Domingos ou Dias Santos no Verão para o ir ver – sobretudo na Nazaré. Faziam-no aos Domingos, mas evidentemente não saiam do café Oceano, onde permaneciam toda a tarde.
Ocasionalmente, cediam em visitar, nas suas barracas de praia, os filhos. Isso sucedia também na Nazaré, onde os meus Tios alugavam casa. Uma ou duas vezes teve lugar na Foz, preferência da minha Mãe depois que fiz a instrução primária.
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Essas visitas raras exigiam preparativos complexos. Os meus Avós entravam na praia vestidos e calçados com a indumentária dos Domingos e permaneciam o resto do tempo dentro da barraca, de costas para as ondas e o vento norte. Era preciso garantir, nesse dia, que o banheiro providenciasse os bancos e a mesa de madeira indispensáveis. O momento alto do acontecimento era o almoço. De dentro de uma cesta de vime, devidamente revestida com um pano branco, saíam toalha e guardanapos, talheres, pratos e copos, pão, água e gasosa, um tacho (embrulhado em papel de jornal para manter o calor) com arroz de coelho, uma marmita com bolo mármore e um termos com café. Como se percebe, o resultado de um intenso labor preparatório e de uma aplicada logística de transporte e resguardo. Mesmo na praia, o mundo rural mantinha as suas práticas, rituais e códigos.
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Pela minha parte, foi aí que comecei a achar que ter férias podia ser muito trabalhoso. Comprovei-o anos mais tarde quando eu próprio me vi – alegremente – envolvido nessa empresa indescritível de proporcionar férias de Verão a filhos e... netos.
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João B Serra
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C O M E N T Á R I O S
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João Ramos Franco disse...
Este passar pelas férias do João Serra, faz-me dar uma volta pela minha origem familiar.
Os meus avós, Ramos Franco e Calisto ,residiam em Rio Maior, à época pequena Vila rural. O meu pai tinha que se deslocar a Rio Maior, pelo menos uma vez por Semana para pagar a Féria ao pessoal que trabalhava na casa agrícola.
As férias dos nossos Avós na Nazaré também são comuns, em nós…A história de uma família que todos Caldenses conhecem, os Calisto, começa num namoro de ferias na Nazaré, entre o meu Tio Asdrúbal Calisto e a menina Leonarda Alves (natural de Santarém), que casam e vêm residir para as Caldas da Rainha.
Claro também existem diferenças entre o meu modo de sentir as Férias e o JBS, eu nasci na cidade e residi na mesma, logo aqui, a diferença de ambiente na juventude gera diferenças ao enfrentarmos as férias…
João Ramos Franco
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Manuela Cama Vieira disse:
Uma visão muito singular esta,do João Serra,sobre as férias.Li-o com muito interesse e agrado, especialmente porque está bem claro no texto o valor do valor do trabalho e da sua justa retribuição.
Concordo consigo- quem corre por gosto não cansa, eu que o diga,também tenho Filhos (e...namoradas de Filhos)- que "Isto de férias temmuito que se lhe diga... " e ainda lhe digo mais!Depois das férias, dá vontade de "....descansar das férias.
Preciso urgente de férias das férias. Sempre achei que o que dá mais trabalho no ano são as férias."
Manuela Gama Vieira
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Isabel X disse...
Há uma obra interessantíssima que se chama a "Arte de perguntar". Aí se defende a tese de que já se encontra contida nas perguntas, a parte mais significativa das respostas que suscitam, quando formuladas de modo adequado. Parece-me ser o caso quando o João se pergunta, perplexo, como é que a palavra "féria", que sempre significou pagamento por um trabalho realizado, se transformou no seu oposto, ou seja, em descanso duplamente remunerado, ao adquirir um simples "s", ao passar para a sua forma plural: "férias"!
Este caso, que fica inevitavelmente por responder, prova bem que a arte de perguntar não é para todos. E que é preciso muita arte para em vez de gozar as férias, aproveitá-las para reflectir sobre os conceitos e as alterações a que estão sujeitos quando passam do meio que lhes deu origem, o rural, para o meio urbano que rapidamente os desvirtua.
Por outro lado, acho sempre graça quando o João invoca as suas origens rurais! Não me lembro bem dele desse tempo (do Bonifácio, como muitos dos bloguistas lhe chamam), embora ele fosse amigo do meu irmão Luís. A imagem que tenho do João Serra é a do professor universitário, a do investigador, a do assessor e chefe da casa civil do presidente Sampaio, a de alguém que mantém um blogue muito coerentemente intitulado "oqueeuandei", no qual se prova que não pára de facto, que é um cosmopolita inveterado, quase mundano, na medida em que conhece e convive com sei lá quem que nós nem sonhamos!... E afinal, segundo o seu próprio testemunho, ficamos a saber que a incomensurável capacidade de trabalho que lhe permite saber viver assim, aprendeu-a ele das suas origens rurais e dos exemplos familiares. Talvez daí, esta espécie de desconfiança perante algo tão recente como as férias. Ah, sim! Porque mesmo quando João nos fala de si, nunca é só de si fala: toda a narrativa está urdida de modo histórico, e é História que temos a oportunidade de aprender!
- Isabel Xavier -
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Belão disse...
É sempre muito agradável ler o J Serra. Em vários registos. Féria, férias, o gostar de ver o mar... tudo me fez recuar no tempo e recordar.
"Na minha aldeia só o trabalho era pago" - lembro-me da minha mãe (professora primária) me contar que no início de carreira e durante vários anos, os professores não recebiam nas férias. Dei comigo a imaginar...."meus Avós gostavam de ver o mar, todo o mundo rural tinha esse fascínio, organizavam-se excursões..."- recordou-me um episódio, datado de 1979 e no qual eu não queria acreditar.Leccionava numa aldeia perto de Fátima, Loureira, quando organizei uma visita (com uma turma de miúdos entre os 10 e os 13 anos) à Foz do Arelho, no final do ano lectivo. Razão da escolha: mais de metade da turma nunca tinha visto o mar. Foi lindo olhar as caras deles quando avistaram o mar. Nem sei descrever. Fiquei de lagrimita a vê-los durante muito tempo. Eu já sabia que as férias deles eram passadas a ajudar os pais. Mas nunca imaginara que nunca tivessem visto o mar. O almoço que levavam era quase o descrito pelo JS, embora sem mesa e sem bancos.Foi uma trabalheira, sem dúvida. A excitação era imensa e eles eram 32! Mas foi muito gratificante.
Obrigada João!
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J.L. Reboleira Alexandre disse...
É sempre gratificante ler os artigos de J. Serra, mas o meu comentário vai para outro comentário. O da Belão. Afinal Fátima é já ali. E o ano de 1979 parece que foi ontem. Quanta pobreza escondida como a que Belão nos mostra andará ainda por aí!
No meu caso, revejo-me em toda a história do Serra, salvo no que o mar concerne, of course, já que ia para lá desde pequenito ou a pé ou na minha bicicleta, com os miudos da minha idade, e por norma sem os meus pais. As «excursôes» do pessoal dos «cabeços» passavam frente à minha porta, e achava aquilo algo esquisito. Felizmente tudo mudou, e para bem melhor!
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Artur R. Gonçalves disse...
Antes de significar o valor da jorna diária, a palavra «féria» significava para os nossos avoengos romanos «dia de festa». Mas para eles, tal como para muitos de nós, o conceito de festividade não cabia num único dia, pelo que a palavra começou a ser utilizada no plural. E foi assim que passámos a ter as «férias» para celebrar os dias consagrados ao repouso. O tal mistério da transformação semântica do lazer ao labor deveu-se ao facto de os «dias de festas» (férias) serem utilizados pelos lavradores para venderem o produto do seu trabalho efectivo (féria). Os locais onde esses eventos ocorriam passaram rapidamente a ser designados por «feiras». Locais privilegiados de ócio e negócio. Na Idade Média como na actualidade, é bem verdade que o descanso de uns só é possível à custa do trabalho de outros. De facto, isto de férias tem muito que se lhe diga…
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Isabel X disse...
"Dia de festa", talvez por isso mesmo, o de ser o dia em que se recebia a féria, não?Inspiro-me também na experiência própria, sabe?...
- Isabel Xavier -
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João Jales disse:
Esta excelente crónica, em que o autor regressa a um dos seus temas favoritos, a Cidade e as Serras, dispensa comentários. Acrescento só que as suas Serras não são nunca cobertas pelo diáfano manto da fantasia de Eça, são pedregosas e duras, com gente vivendo sob códigos ascéticos e duras leis da vida. Há sempre algo de um filme neo-realista nestes relatos, acho eu.
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Quanto às "férias" e à "féria" estou certo que o João conhece e usa a máxima:
"Se não sabia a resposta, para que é que perguntou?"
Eu já não me deixo enganar... JJ
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7 comentários:

João Ramos Franco disse...

Este passar pelas férias do João Serra, faz-me dar uma volta pela minha origem familiar. Os meus avós, Ramos Franco e Calisto residiam em Rio Maior, à época pequena Vila rural.
O meu pai tinha que se deslocar a Rio Maior, pelo menos uma vez por Semana para pagar a Féria ao pessoal que trabalhava na casa agrícola.
As férias dos nossos Avós na Nazaré também são comuns, em nós…
A história de uma família que todos Caldenses conhecem, os Calisto, começa num namoro de ferias na Nazaré, entre o meu Tio Asdrúbal Calisto e a menina Leonarda Alves (natural de Santarém), que casam e vêm residir para as Caldas da Rainha.
Claro também existem diferenças entre o meu modo de sentir as Férias e o JBS, eu nasci na cidade e residi na mesma, logo aqui, a diferença de ambiente na juventude gera diferenças enfrentarmos as férias…
João Ramos Franco

Anónimo disse...

Uma visão muito singular esta,do João Serra,sobre as férias.
Li-o com muito interesse e agrado, especialmente porque está bem claro
no texto o valor do valor do trabalho e da sua justa retribuição.
Concordo consigo- quem corre por gosto não cansa, eu que o diga,
também tenho Filhos (e...namoradas de Filhos)- que "Isto de férias tem
muito que se lhe diga... " e ainda lhe digo mais!
Depois das férias, dá vontade de "....descansar das férias. Preciso
urgente de férias das férias. Sempre achei que o que dá mais trabalho no ano são as férias."
Manuela Gama Vieira

Anónimo disse...

Há uma obra interessantíssima que se chama a "Arte de perguntar". Aí se defende a tese de que já se encontra contida nas perguntas, a parte mais significativa das respostas que suscitam, quando formuladas de modo adequado. Parece-me ser o caso quando o João se pergunta, perplexo, como é que a palavra "féria", que sempre significou pagamento por um trabalho realizado, se transformou no seu oposto, ou seja, em descanso duplamente remunerado, ao adquirir um simples "s", ao passar para a sua forma plural: "férias"!
Este caso, que fica inevitavelmente por responder, prova bem que a arte de perguntar não é para todos. E que é preciso muita arte para em vez de gozar as férias, aproveitá-las para reflectir sobre os conceitos e as alterações a que estão sujeitos quando passam do meio que lhes deu origem, o rural, para o meio urbano que rapidamente os desvirtua.

Por outro lado, acho sempre graça quando o João invoca as suas origens rurais! Não me lembro bem dele desse tempo (do Bonifácio, como muitos dos bloguistas lhe chamam), embora ele fosse amigo do meu irmão Luís.
A imagem que tenho do João Serra é a do professor universitário, a do investigador, a do assessor e chefe da casa civil do presidente Sampaio, a de alguém que mantém um blogue muito coerentemente intitulado "oqueeuandei", no qual se prova que não pára de facto, que é um cosmopolita inveterado, quase mundano, na medida em que conhece e convive com sei lá quem que nós nem sonhamos!... E afinal, segundo o seu próprio testemunho, ficamos a saber que a incomensurável capacidade de trabalho que lhe permite saber viver assim, aprendeu-a ele das suas origens rurais e dos exemplos familiares. Talvez daí, esta espécie de desconfiança perante algo tão recente como as férias. Ah, sim! Porque mesmo quando João nos fala de si, nunca é só de si fala: toda a narrativa está urdida de modo histórico, e é História que temos a oportunidade de aprender!
- Isabel Xavier -

Belão disse...

É sempre muito agradável ler o J Serra. Em vários registos. Féria, férias, o gostar de ver o mar... tudo me fez recuar no tempo e recordar.
"Na minha aldeia só o trabalho era pago" - lembro-me da minha mãe (professora primária) me contar que no início de carreira e durante vários anos, os professores não recebiam nas férias. Dei comigo a imaginar....
"meus Avós gostavam de ver o mar, todo o mundo rural tinha esse fascínio, organizavam-se excursões..."- recordou-me um episódio, datado de 1979 e no qual eu não queria acreditar.Leccionava numa aldeia perto de Fátima, Loureira, quando organizei uma visita (com uma turma de miúdos entre os 10 e os 13 anos) à Foz do Arelho, no final do ano lectivo. Razão da escolha: mais de metade da turma nunca tinha visto o mar. Foi lindo olhar as caras deles quando avistaram o mar. Nem sei descrever. Fiquei de lagrimita a vê-los durante muito tempo. Eu já sabia que as férias deles eram passadas a ajudar os pais. Mas nunca imaginara que nunca tivessem visto o mar. O almoço que levavam era quase o descrito pelo JS, embora sem mesa e sem bancos.
Foi uma trabalheira, sem dúvida. A excitação era imensa e eles eram 32! Mas foi muito gratificante.
Obrigada João!

J.L. Reboleira Alexandre disse...

É sempre gratificante ler os artigos de J. Serra, mas o meu comentário vai para outro comentário. O da Belão. Afinal Fátima é já ali. E o ano de 1979 parece que foi ontem. Quanta pobreza escondida como a que Belão nos mostra andará ainda por aí ! No meu caso, revejo-me em toda a história do Serra, salvo no que o mar concerne, of course, já que ia para lá desde pequenito ou a pé ou na minha bicicleta, com os miudos da minha idade, e por norma sem os meus pais. As «excursôes» do pessoal dos «cabeços» passavam frente à minha porta, e achava aquilo algo esquisito. Felizmente tudo mudou, e para bem melhor!

Artur R. Gonçalves disse...

Antes de significar o valor da jorna diária, a palavra «féria» significava para os nossos avoengos romanos «dia de festa». Mas para eles, tal como para muitos de nós, o conceito de festividade não cabia num único dia, pelo que a palavra começou a ser utilizada no plural. E foi assim que passámos a ter as «férias» para celebrar os dias consagrados ao repouso. O tal mistério da transformação semântica do lazer ao labor deveu-se ao facto de os «dias de festas» (férias) serem utilizados pelos lavradores para venderem o produto do seu trabalho efectivo (féria). Os locais onde esses eventos ocorriam passaram rapidamente a ser designados por «feiras». Locais privilegiados de ócio e negócio. Na Idade Média como na actualidade, é bem verdade que o descanso de uns só é possível à custa do trabalho de outros. De facto, isto de férias tem muito que se lhe diga…

Isabel X disse...

"Dia de festa", talvez por isso mesmo, o de ser o dia em que se recebia a féria, não?
Inspiro-me também na experiência própria, sabe?...
- Isabel Xavier -