ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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A VIDA DAS MINHAS CANÇÕES (TAKE 2)

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As notas lá se seguiam umas às outras, alinhavadas a muito custo após longos exercícios de reprodução auditiva com vários stop e muitas repetições, cansando o velho gravador GRUNDIG. E finalmente, após várias tentativas e muitos erros, lá estava o que aos meus ouvidos parecia ser a linha de baixo daquela notável música; de resto nada de muito especial, mas que por parecer absurdamente simples me fez acumular hesitações e massacrar os dedos e a escala da minha guitarra. O GRUNDIG seguramente já estava farto de reproduzir aquela simplicidade e, no seu intimo, devia escutar perplexo tamanho desatino supostamente musical …
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O GRUNDIG de bobinas foi um grande companheiro de tantas e tantas canções, das novidades gravadas do Página Um, misturadas com anúncios e tiradas dos locutores, arquivo diversificado do que eram o meu gosto e a minha falta de gosto da altura, amalgama de várias ondas; muitas horas dediquei à organização das minhas bobinas da BASF como se fossem episódios completos da minha rádio imaginária.
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Os ensaios na casa do Vitor estavam contudo a tornar-se enfadonhos, os nossos maus instrumentos tocavam mal e sobretudo baixo para quem ,como nós, ambicionava elevar-se à dinâmica dos grandes grupos e do som poderoso num imaginário palco infinito.
Acrescia que nem a familia nem os vizinhos do Vitor apreciavam os nossos esforços artisticos, antes pelo contrário apodavam-nos muito depreciativamente sem que, contudo, conseguissem esmorecer o nosso entusiasmo e a diligente procura dum som, digamos agora, relativamente musical.
Decidimos então levar a coisa para um plano mais sério.
Ir fazer uma sessão na Senófila.
Era um grande salto, era a electricidade pura e dura, era uma percussão credivel, eventualmente um orgão, foi com um misto de receio e curiosidade que por unanimidade e aclamação decidimos dar finalmente aquele passo.
Corria o ano de 1973.
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Para quem porventura esteja mais deslocado destas ondas, a Senófila era uma Escola de Música que proporcionava aos amadores condições técnicas e materiais para poderem exercitar os dotes que possuissem ou julgassem possuir. No recato das suas instalações, a salvo dos comentários jocosos dos ouvintes de ocasião, podiam os artistas dar então livre curso à sua creatividade ou, como era o nosso caso, reproduzirem o mais fielmente que conseguissem temas originais de outros.
Na época havia um grupo, Aranha, que era o paradigma desta forma de estar na música; tinham uma politica de covers de uma extrema fidelidade de reprodução, muito apoiada em condições técnicas excepcionais para a altura e, claro, no virtuosismo dos seus componentes, que nos arrasavam cada vez que os ouviamos, e que nos faziam aspirar a sermos cópias daqueles que já copiavam terceiros, o que em termos de originalidade era no minimo confrangedor, mas era realmente a nossa onda desse tempo.

Foi portanto com um misto de curiosidade e tremideira que, após uma cautelosa reserva telefónica prévia, entramos na Gonçalves Crespo interiorizando talvez uma qualquer porta de entrada em Abbey Road.
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Chegados à nossa sala, a descoberta dos instrumentos foi de uma ternura comovente; no fundo para nós qualquer coisa ligada à electricidade com aspecto de guitarra ou de orgão era uma Fender ou um Hammond em potência; juntar-lhe uma bateria era já entrarmos no dominio do surreal. E com pratos!
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O Carlos, o nosso baterista, era no entanto já um relativo veterano destas andanças. Tinha aprendido a tocar viola em Moçambique, por lá tocou com diversos grupos locais antes de voltar para a Metropole, refinou dotes incriveis para o instrumento temperados com aquele balanço africano de sentir a música antes de a tocar, uma espécie do que mais tarde vim a conhecer como swing, mas com um balanço tropical associado que não consigo descrever com palavras, mas que é impossivel não sentir percorrer-nos o corpo quando o ouvimos.
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Sentou-se atrás da bateria com um à vontade que nos descontraiu. Dois ou três toques de tarola e um abano de prato de choque mais tarde, incentivou-nos a começar.
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Foi então que deparei de chofre com mais uma dificuldade pessoal: o baixo era para direito, e um canhoto inexperiente como eu não precisava de mais este escolho. Todo o laborioso trabalho de levantamento da linha de baixo, tinha agora, inapelávelmente, de ser invertido ao momento; olhei para o braço da guitarra e mentalmente imaginei tudo ao contrário...estremeci quando pensei que não estava ali para barracadas...
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A auto estima sobrevive às vezes sobretudo nas piores condições, aprendi naquele momento embora da pior forma.
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Arrancámos com o riff inicial. E descobrimos logo como é absolutamente fascinante estarmos do outro lado da música; nós somos a fonte, as notas circulam electricamente à nossa volta, sentimos um progressivo envolvimento com a melodia, com o compasso, há um fluir de alguma coisa que nunca tinhamos conhecido antes com aquela dimensão nos nossos ensaios acústicos.
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Ouviamos o Quim, o vocalista, como nunca o tinhamos ouvido antes, como se ele nunca tivesse cantado; mesmo o seu inglês sofrível soava agora com uma musicalidade desconhecida.
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Lá atrás o Carlos manobrava nos timbalões a entrada para o refrão duma forma que até me pareceu musical; não lhe escapava nada do que nós os outros faziamos a reboque e parou várias vezes para corrigir toda a gente.
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O take final, com o à vontade próprio das muitas repetições prévias, soou-nos já como se saisse música de nós...Delicioso.
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Descobrimos nesse dia, que havia sempre um “Something” muito especial do outro lado do palco...
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Nunca mais me esqueci.
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Modigliani
(Agosto/09)

C O M E N T Á R I O S
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Manuela Gama Vieira disse...
Sou uma apreciadora de música,mas não uma "expert" no tema.Gostei muito deste texto,sente-se "A vida das minhas canções",pela vida e expressividade imprimidas pelo Autor.Os nervos,o sonho de pisar o palco,o rigor,a persistência para alcançar maior perfeição,o sentido da responsabilidade e...finalmente,o sonho aí estava..."interiorizando talvez uma qualquer porta de entrada em Abbey Road"!
"A auto estima sobrevive às vezes sobretudo nas piores condições, aprendi naquele momento embora da pior forma" - Uma excelente reflexão!
Ah,sempre gostei e gosto do intemporal "Something".
Manuela Gama Vieira
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Luisa disse...
Muito bom este post,com uma visão muito pessoal da música, a visão de quem toca...O que fará hoje este Modigliani? L
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Manuela Gama Vieira disse...
Oh Luis(L),cá para mim...cá para mim...até sei quem é....O que faz?Algumas "coisas" estão à vista...escreve,e bem!Há muitos anos que o não vejo.Que ele anda por aqui...lá isso anda.Modigliani,espero encontrá-lo no nosso Encontro do ERO.Até lá,e não deixe de nos ir oferecendo...Something!Manuela Gama Vieira
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Isabel Esse disse...
Gosto muito do Something,é uma das minhas músicas favoritas dos Beatles.
Gostei muito do texto,é muito interessante ler o que sente e como aprende quem toca o que nós gostamos de ouvir.
Não percebo,num tezto em que não há nada de polémico nem íntimo,porque é que o autor usa pseudónimo...
Isabel S
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3 comentários:

Manuela Gama Vieira disse...

Sou uma apreciadora de música,mas não uma "expert" no tema.
Gostei muito deste texto,sente-se "A vida das minhas canções",pela vida e expressividade imprimidas pelo Autor.Os nervos,o sonho de pisar o palco,o rigor,a persistência para alcançar maior perfeição,o sentido da responsabilidade e...finalmente,o sonho aí estava..."interiorizando talvez uma qualquer porta de entrada em Abbey Road"!
"A auto estima sobrevive às vezes sobretudo nas piores condições, aprendi naquele momento embora da pior forma" - Uma excelente reflexão!
Ah,sempre gostei e gosto do intemporal "Something".
Manuela Gama Vieira

Manuela Gama Vieira disse...

Oh Luis(L),cá para mim...cá para mim...até sei quem é....O que faz?Algumas "coisas" estão à vista...escreve,e bem!
Há muitos anos que o não vejo.
Que ele anda por aqui...lá isso anda.
Modigliani,espero encontrá-lo no nosso Encontro do ERO.Até lá,e não deixe de nos ir oferecendo...Something!
Manuela Gama Vieira

Isabel Esse disse...

Gosto muito do Something,é uma das minhas músicas favoritas dos Beatles.
Gostei muito do texto,é muito interessante ler o que sente e como aprende quem toca o que nós gostamos de ouvir.
Não percebo,num tezto em que não há nada de polémico nem íntimo,porque é que o autor usa pseudónimo...
Isabel S