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por Lena Arroz
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As férias do Natal pareciam muito compridas, nessa altura.
O tempo passava tão devagar que dava não só para sentirmos saudades uns dos outros, como para enviarmos cartões de Boas Festas aos professores de quem mais gostávamos, e aos colegas de longe (Carvalhal Benfeito, etc.).
No primeiro dia de férias à tarde, estava sempre combinada a ida à Tália para a compra dos cartões, que tinham que ser cuidadosamente escolhidos, o que justificava que só aparecêssemos em casa ao escurecer. No segundo dia tínhamos que nos encontrar de novo para a compra dos selos (estar numa fila...) e o envio dos cartões pelo correio (estar na outra fila…).
O pior é que nos dias seguintes já não tínhamos desculpa para sairmos de casa e aí ficaríamos fechados até uma eventual subida ao colégio para ver as pautas com as notas, a menos que houvesse alguma actividade em que pudéssemos participar.
Pois, felizmente, nas férias do Natal houve, em alguns anos, uma actividade que consistia em visitar os “pobrezinhos”. A visita, organizada então pelo padre António, era não só pretexto para nos encontrarmos uns com os outros, como motivação e destino dos trabalhos que se executavam na disciplina de “Lavores femininos”.
Na verdade começávamos a preparar as prendinhas para oferecer aos ditos “pobrezinhos” no início do primeiro período, nas aulas da D. Anita. Lembro-me de ter tricotado casaquinhos para bebé, um cor-de-rosa para menina e outro azul para menino. Era bem divertido passar as aulas a tricotar. Sem dar por isso aprendi nestas aulas coisas que me deram imenso jeito depois, como por exemplo, o nº das agulhas a utilizar em relação à espessura do fio de lã, ou a malha para o cós e a malha para o corpo do casaco, etc. Nem eu própria esperava desenvencilhar-me tão bem quando quis fazer certas coisas para os meus filhos. Penso que até a D Anita, se visse então as minhas habilidades “de mãos”, teria ficado surpreendida. Na verdade, enquanto aluna não mostrei nenhuma especial apetência para a execução destes trabalhos, ao contrário das minhas colegas, nomeadamente a Ilda e a Emiliana, cujas obras eram, sem dúvida, sempre mais bonitinhas do que as minhas.
Era pois preparado um grande cesto com as prendinhas, umas feitas por nós, outras constituídas por roupas, coisas para comer e bugigangas que trazíamos de casa.
Na antevéspera de Natal, lá íamos finalmente.
Grande alegria entre nós a carregar a carrinha, cantigas de Natal pelo caminho e depois chegar. Tenho ideia de que íamos a vários sítios, ali para os lados do pinhal que havia a seguir ao bairro das morenas. Eram barracas no meio da erva verde e molhada pela chuva recente, onde submergiam os nossos pés, molhando as meias e as pernas. À porta muitas tralhas, alguidares etc. Aqui viviam grandes famílias com crianças e, felizmente para mim, bebés (senão o que faria eu aos casaquinhos?).
O padre António batia à porta e quando as pessoas apareciam, tratava-as com consideração e amizade. Conversava com elas, enquanto nós, sem saber como nos deveríamos comportar perante aquela situação invulgar, ficávamos a ver de longe, à espera que o padre nos mandasse tirar as prendinhas dos sacos e oferecer.
As fotos que aqui vão foram tiradas na última em que participei, já no ano de 1964 (se não me engano), já o Padre António não estava connosco e já nós éramos crescidos. Não sei quem nos teria acompanhado desta vez. O padre Albino, o padre Xico?
Desta actividade ficou-me um mal-estar relativo à pobreza, que durante anos me fez parar junto de todos os que pediam esmola, procurando moeditas no fundo do meu porta-moedas, geralmente tão mal recheado. Foi assim até um dia em que, já em Lisboa a estudar no Técnico, uma cigana com um bebé ao colo me abordou na Praça de Londres e eu lhe dei uns tostões, que era o que tinha. Ela, zangada comigo por lhe ter dado tão pouco, veio atrás de mim a chamar-me nomes e a ameaçar-me.
Fiquei tão envergonhada e perplexa que a seguir passei a dar apenas a quem tocava música ou fazia alguma habilidade na rua, que eu achasse merecedora.
Só quando comecei a ganhar o meu dinheiro e a pagar impostos é que este mal-estar abrandou (pelo menos um pouco).
Na foto em frente à barraca, a contar da esquerda:
Emiliana, Xico Vieira Lino, Ana Nascimento,Ilda Lourenço, Lena Arroz, Luís Xavier, Jorge Teixeira, Canhão.
Emiliana, Xico Vieira Lino, Ana Nascimento,Ilda Lourenço, Lena Arroz, Luís Xavier, Jorge Teixeira, Canhão.
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COMENTÁRIOSIsabel X disse:
Pela última fotografia vê-se que eram mesmo pobrezinhos, os que recebiam a visita de Natal dos alunos do colégio. Também tricotei casaquinhos para o mesmo fim, orientada pela D. Anita, mas já não havia este tipo de incursões natalícias.
Pela última fotografia vê-se que eram mesmo pobrezinhos, os que recebiam a visita de Natal dos alunos do colégio. Também tricotei casaquinhos para o mesmo fim, orientada pela D. Anita, mas já não havia este tipo de incursões natalícias.
Ao contrário da Lena, para mim as férias de Natal sempre me pareceram demasiado curtas (e continuam a parecer), talvez por ter uma grande família e a minha casa ser no centro das Caldas e muito frequentada de amigos. A propósito, viram como o meu irmão Luís era bonito? Ah! Ainda uma coisa: não eram só os professores de quem a Lena gostava mais que recebiam cartões de Natal, parece-me que o colega do Carvalhal Benfeito também era muito do seu gosto! Se calhar até era por isso que as férias se tornavam tão longas...
Um grande beijinho de Natal, para a Lena e para todos os antigos colegas!
- Isabel Xavier -
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João Jales disse:
TODAS as férias eram CURTÍSSIMAS! As de Natal, só duas semanas, passavam num piscar de olhos! É a minha única discordância do texto da Lena.
Apesar de não saber tricotar (embora houvesse esforços familiares nesse sentido, durante um sarampo ou varicela em que a família já não sabia o que havia de fazer comigo), também colaborei em duas das campanhas de Natal que a Lena descreve. Na primeira era muito miúdo e irresponsável pelo que fui integrado numa equipa chefiada pela Manuela V P, que era mais velha e mais irresponsável do que eu. Visitámos um bairro degradado que se situava no final da Rua da Praça de Touros, na zona onde hoje está a prisão e o quarteirão em frente. Como a Lena, fiquei chocado com o que vi e conheci, ao saber que a 200 ou 300 metros de minha casa havia gente a viver em tais condições... Suponho que fazia parte do regime manter essas situações como um segredo vergonhoso (o que realmente eram!).
Apesar da chefia, o nosso grupo levou a missão a bom termo: fazer uma lista das pessoas, com as respectivas idades e necessidades (era fácil, precisavam de tudo), regressar à base (Turismo, junto ao Machado) e ajustar a "requisição" com a existência (e havia muita coisa, eram solidários os caldenses). Depois combinava-se o transporte com o voluntário de serviço. O Mini da minha mãe, devido ao seu tamanho, teve que fazer a viagem 3 ou 4 vezes para carregar tudo. Ainda hoje lembro a alegria, particularmente dos idosos e das crianças, perante os cobertores, mercearias e brinquedos. Não defendo esta forma de caridade, mas foi uma experiência inolvidável para os garoto privilegiados (e inconscientes disso) que nós éramos. Como havia muitos brinquedos para distribuir, houve alguma liberalidade na atribuição dos pedidos e o nosso grupo teve dois brinquedos e muitas guloseimas (principalmente da Frami, passe a publicidade) para distribuir a cada miúdo. Tanta felicidade, e por tão pouco...
Repeti um segundo ano a experiência mas, sem a carismática liderança da Manela, tenho dessa vez menos memórias.
Mas recordo, sem favor porque nunca tive por ele qualquer simpatia, a meticulosa organização do Padre Albino que conseguiu que esta máquina funcionasse como se fosse profissional. A partir de 1967 a entrega destas acções a uma organização paroquial (Conferência de S. Vicente de Paulo?) e a desmobilização dos jovens levou ao progressivo esvaziamento da iniciativa.
Eu, talvez por não viver no Carvalhal Benfeito, nunca recebi nenhum postal de Natal da autora... Mas ela compensa-me agora, escrevendo para o Blog com uma prosa de uma simplicidade e clareza de que eu sou confesso admirador .
Bom Natal para ti e todos os teus, Lena! JJ
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Ana Luisa disse:
Não me lembro no meu tempo no ERO participar em qualquer campanha de Natal ou fazer qualquer trabalho nos Lavores que se destinasse aos "pobrezinhos".Além da facilidade com que a Lena Arroz escreve, sobressai uma grande sinceridade das suas palavras,estão os seus sentimentos e impressões bem à vista.Partilho com ela o incómodo e a hesitação do que fazer perante a pobreza.
BOM NATAL A TODOS! Ana Luisa
2 comentários:
Pela última fotografia vê-se que eram mesmo pobrezinhos, os que recebiam a visita de Natal dos alunos do colégio. Também tricotei casaquinhos para o mesmo fim, orientada pela D. Anita, mas já não havia este tipo de incursões natalícias. Ao contrário da Lena, para mim as férias de Natal sempre me pareceram demasiado curtas (e continuam a parecer), talvez por ter uma grande família e a minha casa ser no centro das Caldas e muito frequentada de amigos. A propósito, viram como o meu irmão Luís era bonito? Ah! Ainda uma coisa: não eram só os professores de quem a Lena gostava mais que recebiam cartões de Natal, parece-me que o colega do Carvalhal Benfeito também era muito do seu gosto! Se calhar até era por isso que as férias se tornavam tão longas... Um grande beijinho de Natal, para a Lena e para todos os antigos colegas!
- Isabel Xavier -
Não me lembro no meu tempo no ERO participar em qualquer campanha de Natal ou fazer qualquer trabalho nos Lavores que se destinasse aos "pobrezinhos".
Além da facilidade com que a Lena Arroz escreve, sobressai uma grande sinceridade das suas palavras, estão os seus sentimentos e impressões bem à vista. Partilho com ela o incómodo e a hesitação do que fazer perante a pobreza.
BOM NATAL A TODOS! Ana Luisa
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