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Os “assaltos” de Carnaval eram crimes premeditados com antecedência e pormenor. A escolha do local era o primeiro problema, já que poucas casas reuniam as condições que os permitissem.
A existência de um espaço relativamente autónomo, geralmente sótão ou garagem, restringia muito as alternativas, eliminando a maioria dos apartamentos em que vivíamos. Habitando um andar, e apesar de alguma permissividade dos meus pais (sempre houve bailaricos nas minhas festas de anos), nunca foi possível lá fazer bailes nocturnos no Carnaval.
Depois surgiam as questões administrativas, a burocracia necessária à realização do evento: licenças, autorizações, condições, regras, tudo sujeito a duras negociações, envolvendo cedências mútuas, com as autoridades locais, os donos da casa, pais da “vítima do assalto”.
Num dos Carnavais do final da década de 60 empenhei-me sobremaneira na organização de um desses eventos. A família da Aida, recém chegada às Caldas, não frequentava o Casino, pelo que um baile particular na sexta-feira de Carnaval era fulcral para uma aproximação que eu planeava há meses. Calma e calada, a garota que era alvo do meu interesse não demonstrava entusiasmo nem desagrado pelas minhas atenções, parecendo, mais que ignorá-las, não as perceber. Morava perto de mim, o que me permitia “encontrá-la casualmente” com frequência. Passei a visitá-la amiúde quando descobri que o seu irmão Jorge, um pouco mais velho que nós, e a irmã Mami, um ano mais nova, mantinham lá em casa frequentemente amigos a jogar, ler, ouvir música e estudar, o que fazia de mim apenas mais um. O Jorge era do tipo atlético, falávamos ocasional e amigavelmente, mas ele ligava pouco à música e aos livros, preferia andar de bicicleta (tinha uma que eu muito invejava), jogar futebol e principalmente correr, sem destino nem objectivo aparente, actividade cujo prazer eu não compreendia nem partilhava. A Mami, embora da estatura da irmã, era o oposto dela em tudo o resto. Os cabelos arruivados, curtos e revoltos contrastavam com a longa cabeleira “à Françoise Hardy” da Aida, tinha uma silhueta algo desengonçada enquanto a irmã era quase uma mulher, era faladora e metediça enquanto a outra era calma e calada.
A Mami absorvia tudo o que ouvia como uma esponja, chegou a discutir comigo os discos dos Beatles com os argumentos que me ouvira na conversa da véspera com um dos irmãos. Eu gostava de a irritar fingindo esquecer o seu nome e infantilizando-a:
- Oh Mámá, isto não são conversas para crianças…
Ou:
- Mámá já vestiste o pijama ao “chorão”? (um boneco espanhol muito popular nessa altura).
- Chamo-me Mariana, os amigos chamam-me Mami, mas para ti sou Mariana! E só tenho menos um ano do que tu, se sou uma criança, tu não és menos!
- Sim, Mimi, eu prometo lembrar-me disso…
Ela acabava por sair, furiosa, enquanto a Aida sorria, sempre plácida e tranquila, nunca interferindo nessas conversas, ouvindo-me depois falar-lhe de Jimi Hendrix, do livro da Pearl Buck que eu estava a ler, da transmissão do fantástico Beat Club alemão ao sábado na RTP… ela falava pouco, às vezes parecia gostar de me ouvir, outras parecia distraída e levantava-se para ir fazer outra coisa a meio de uma frase. Entre encorajadores mas enigmáticos sorrisos e momentos de desesperante alheamento, eu ia suspirando por acariciar aqueles sedosos e brilhantes cabelos que tanto me atraíam. Mas, ao longo de meses, ela continuava sem perceber, ou a fazer de conta que não percebia, as minhas atenções, e eu tinha decidido que esta questão não passava do Carnaval, época propícia à ultrapassagem destas indecisões.
- Estamos a organizar um baile de máscaras em casa da Isabel – disse-lhe, iniciando assim o meu plano – achas que podes ir?
- Julgo que sim, tenho que pedir à minha mãe…
- Eu também vou – decidiu a Mami – e escusam de começar com a conversa parva da minha idade!
- Mémé, não sejas assim, o baile é só para pessoas mais crescidas, não é para ti – respondi-lhe.
- Isso é que vamos ver. E é Mami, o meu nome é M-a-m-i.
Mas continuou calmamente o jogo de damas, as minhas brincadeiras já não a incomodavam tanto, principalmente quando jogávamos. A Aida não apreciava qualquer jogo e era a irmã que eu defrontava, até xadrez me obrigou a ensinar-lhe (e que fraco professor eu era…), nalgumas agradáveis tardes que lá passei em casa. Era inteligente, aprendia depressa e jogava tudo bem.
Ir ao baile implicava a escolha de uma máscara, o que era, para as raparigas, um assunto importante. Para a maioria dos rapazes não, qualquer trapalhice com a cara tapada servia. Eu, mais alto do que os meus colegas, nunca tive verdadeiramente hipótese de enganar ninguém mascarado pelo que não ligava ao assunto, usando uma máscara só para mostrar espírito carnavalesco. Mas a Aida, as amigas e as colegas levavam isso muito a sério, não deixando os rapazes, nem os irmãos, ver o que iam usar. Claro que o facto de lá ir a casa com frequência e a cumplicidade da Mami acabaram por me permitir ver o segredo da Aida, um vestido antigo a que tinham sido acrescentados uns folhos em papel celofane cor-de-rosa, imitando um vestido de "dama antiga". Vazio e pendurado num cabide era pouco convincente, como fez notar a desdenhosa Mami, perante a única fúria da Aida a que assisti!
- Tenho a certeza que, vestido por ti, será a toilette de uma verdadeira princesa! E essa caraça, tipo Maria Antonieta, fica aí "a matar"! - disse-lhe, para a acalmar.
Obrigou-me a prometer que não a desmascararia durante o baile, o que fiz sem qualquer reserva, já que tencionava obviamente guardar a informação só para mim!
Nessa semana que antecedia o Carnaval os preparativos aceleraram e as dúvidas dos pais da Isabel em ter um “assalto” em casa aumentaram, quando alguém se ofereceu para levar umas cervejas como contribuição para a festa… Afastado, sob palavra de honra, o espectro do álcool em sua casa, os senhores voltaram a autorizar.
Fiquei “pendurado” na tarde da quarta-feira anterior (a única que o horário nos deixava quase livre) por causa desses últimos preparativos. Joguei crapaud com a Mami, que ia massacrando a mãe com pedidos insistentes para ir também ao baile. Paciente mas firmemente, ela foi sistematicamente contrariando os variados e mirabolantes argumentos da sua filha mais nova, enquanto eu as ouvia, divertido. A senhora, que simpatizava comigo (talvez por entreter algumas horas por semana a sua problemática filha), ia-me pedindo auxílio na discussão, o que eu fiz com gosto. Mas foi o Jorge, recém-chegado de um dos seus corta-matos, que terminou a discussão:
Nessa semana que antecedia o Carnaval os preparativos aceleraram e as dúvidas dos pais da Isabel em ter um “assalto” em casa aumentaram, quando alguém se ofereceu para levar umas cervejas como contribuição para a festa… Afastado, sob palavra de honra, o espectro do álcool em sua casa, os senhores voltaram a autorizar.
Fiquei “pendurado” na tarde da quarta-feira anterior (a única que o horário nos deixava quase livre) por causa desses últimos preparativos. Joguei crapaud com a Mami, que ia massacrando a mãe com pedidos insistentes para ir também ao baile. Paciente mas firmemente, ela foi sistematicamente contrariando os variados e mirabolantes argumentos da sua filha mais nova, enquanto eu as ouvia, divertido. A senhora, que simpatizava comigo (talvez por entreter algumas horas por semana a sua problemática filha), ia-me pedindo auxílio na discussão, o que eu fiz com gosto. Mas foi o Jorge, recém-chegado de um dos seus corta-matos, que terminou a discussão:
- Nem te preocupaste em arranjar máscara, não podes ir a nenhum baile de Carnaval! - o que, sendo verdade, constituiu um argumento final e lhe valeu um olhar assassino….
Quase não vi a Aida e fui para casa sem conseguir dizer-lhe nada do que tinha planeado como introdução a uma declaração mais formal, dois dias depois. Quinta-feira, no Colégio, não foi igualmente possível fazê-lo porque nunca consegui estar a sós com ela, além de que ela estava constipada; um nariz entupido e avermelhado e uns olhos lacrimejantes não são propícios ao romance...
Sexta-Feira trocámos poucas palavras:
– Então e a constipação? – perguntei.
– Estou felizmente melhor, mas o meu pai, logo à noite, vai-me levar e buscar no carro dele, para não apanhar frio.
– Até logo, sendo assim encontramo-nos em casa da Isabel…
Fui jantar e vestir-me. Uma complicação familiar, envolvendo uma outra festa onde ia a minha irmã e a saída dos meus pais, atrasou-me imenso e cheguei muito mais tarde do que tinha programado. Mas felizmente a tempo já que, quando cheguei à porta, ainda correspondi a um aceno do pai da Aida, que se afastava no seu automóvel.
Entrei sem tirar a máscara, os pais da Isabel, que vigiavam a entrada, reconheceram-me e cumprimentaram-me imediatamente! A sala tinha as habituais serpentinas nos candeeiros e nos cortinados, confettis no chão e uma mesa com uma enorme toalha branca com os contributos dos convidados. Pousei uns croquetes e uns rissóis que a minha mãe me entregara e vi que o baile estava animado; procurei a Aida e vi que a minha "dama-antiga" dançava já umas brasileiradas na improvisada pista de dança. Enquanto esperava uma oportunidade de lhe falar, fui negociar com o Paulo, meu parceiro na tarefa de pôr discos, ficar livre neste início da noite, substituindo-o só depois de a Aida sair. Combinámos também que, mal eu conseguisse dançar com ela, ele poria a tocar “I Can’t Let Maggie Go” dos Honeybus, um slow irresistível que eu tivera o cuidado de incluir entre os discos disponíveis.
Aguardei uns minutos, a folia abrandou, a Aida reconheceu-me (porque eu lhe mostrara a minha caraça e pela altura, claro) e veio ter comigo, dando uma graciosa e inesperada volta à minha frente, mostrando-me como estava realmente elegante, mesmo vestida de celofane! Mal me aproximei dela o Paulo pôs a tocar a música combinada e eu descobri que ela era uma graciosa dançarina, mais disponível do que de costume para ouvir os meus elogios, que foi recebendo com alguns risos. O meu plano corria bem, o espírito de Carnaval e as máscaras desinibem sempre as pessoas! Outro slow se seguiu (o Paulo era um bom amigo), e outro, sem que ela fizesse qualquer menção de querer trocar de par, mas a pressão dos foliões acabou por obrigar o regresso da música mais animada. Nesse momento a Aida deu-me o braço e fez sinal de querer beber, era impossível falar porque o Paulo, terminados os slows, tinha outra vez a música muito alto, os donos da casa não tardariam em protestar. Eu conduzi-a em busca de um refresco, feliz com este inesperado e promissor início de festa (finalmente ela mostrava nítido prazer na minha companhia). Junto à mesa estava o seu irmão, o Jorge, que reconheci porque tirara a caraça para poder comer vigorosamente o que me pareceram os meus croquetes, e eu disse-lhe (ou melhor, gritei-lhe), apontando a Aida:
- Está muito bonita a tua irmã nesta máscara!
Ele aproximou-se do meu ouvido, para se fazer ouvir, e respondeu:
- Sim, fica-lhe realmente muito bem. E teve pouco tempo para se vestir, só à última hora eu convenci a minha mãe a deixá-la vir comigo, aproveitando o vestido da Aida, que ficou de cama, cheia de febre…
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João Jales
5 comentários:
Mais uma interessantíssima história de amores adolescentes aqui trazida pelo Jales, desta vez a propósito do Carnaval. Está a ficar um especialista. Um interesse amoroso deslocado do verdadeiro alvo, mas que as circunstâncias (o destino?) acaba por colocar no caminho certo, é um tema que dá que pensar... Aqui tratado magistralmente, de modo a prender a atenção de quem lê e sabe o desfecho ao mesmo tempo que o protagonista-narrador, tão equivocado quanto nós, seus atentos leitores! O efeito é literariamente muito bem conseguido, tal como a descrição de toda a envolvência do acontecimento central. Parabéns JJ!
- Isabel Xavier -
Uma história de assaltos completamente diferente do relatado.
Relembrando os belos carnavais das Caldas - assaltos, bailes do casino- gostaria de falar sobre uma tradição do meu tempo. Como se diz "No Carnaval ninguém leva a mal" aproveitávamos esta época e passávamos mascarados por casa dos professores: Dr.Figueiredo, D.Anita, Dr.Serafim,Mme....(não me lembro do nome)nossa professora de francês e outros .Era uma excitação e uma aventura "entrarmos"na casa dos professores. Estamos a falar de tempos em que estes viviam num mundo que não era o nosso. Raramente os encontrávamos na rua e pouco sabíamos da sua vida privada. Enfim, nada como agora, tu-cá tu-lá. Lembro-me que faziam parte do grupo a Luisinha Nascimento, Fátima Vieira Lino, Luísa, a Mafalda serrano e eu claro. Muitos outros participavam mas já não me lembro. Quem se lembra que se acuse.Será que alguém se lembra? Estou a falar dos anos 64/65.
Uma história de assaltos completamente diferente do relatado.
Relembrando os belos carnavais das Caldas - assaltos, bailes do casino- gostaria de falar sobre uma tradição do meu tempo. Como se diz "No Carnaval ninguém leva a mal" aproveitávamos esta época e passávamos mascarados por casa dos professores: Dr.Figueiredo, D.Anita, Dr.Serafim,Mme....(não me lembro do nome)nossa professora de francês e outros .Era uma excitação e uma aventura "entrarmos"na casa dos professores. Estamos a falar de tempos em que estes viviam num mundo que não era o nosso. Raramente os encontrávamos na rua e pouco sabíamos da sua vida privada. Enfim, nada como agora, tu-cá tu-lá. Lembro-me que faziam parte do grupo a Luisinha Nascimento, Fátima Vieira Lino, Luísa, a Mafalda serrano e eu claro. Muitos outros participavam mas já não me lembro. Quem se lembra que se acuse.Será que alguém se lembra? Estou a falar dos anos 64/65.
Ainda vou a tempo? O nome que me faltava Mme Nicole:óptima professora e mulher inconfundível sempre a "bordo" do seu 2 cavalos.
fui a alguns e que saudades deixaram
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