ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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O mistério do colar fenício (Uma estória na aula de História)

por Jaime Serafim

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Estávamos em 1965 ou 66. O contracto com um professor de História tinha-se gorado. Então o Director, Sr. Padre Albino Cândido Lopes, decidiu ser ele próprio a tomar conta de algumas turmas dessa disciplina. Não era licenciado em História, mas tinha uma vasta cultura geral e era pessoa muito viajada, tendo visitado muitos locais que se celebrizaram pelos acontecimentos histórico relevantes que ali tiveram lugar. Possuía mesmo alguns pequenos objectos que teriam pertencido a civilizações remotas, sendo, portanto, de valor inestimável.
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Numa aula, creio que do 3.º ano, o tema era a civilização fenícia. Certamente é referida a aptidão natural que os fenícios tinham para o comércio marítimo, tendo chegado a comerciar em paragem bem longínquas para a época. Desenvolveram técnicas de navegação e de fabricação de barcos, de tecidos, de vidro…

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- A propósito, tenho aqui uma conta de um colar fenício. É autêntica! Reparem na qualidade do vidro que os fenícios já fabricavam. Reparem que está um pouco desgastada pelo tempo. A civilização fenícia era florescente 1 000 anos antes de Cristo. Para melhor observarem, vou dar a conta ao aluno da primeira carteira. Depois de a observar passará ao seguinte e assim sucessivamente.

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E a conta lá foi passando de mão em mão, depois de cada um a observar respeitosa e religiosamente, como se de uma relíquia santa se tratasse.

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Passado um tempo, há um aluno que, algo envergonhado e a medo, tem coragem para dizer:

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- Mas isto é um berlinde, como aqueles com que brincamos!

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- Oh rapaz, tu não sabes distinguir um objecto tão valioso como esse, de um berlinde vulgar, de vidro ordinário?

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- Desculpe, mas isto é um berlinde!

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Gerou-se uma certa tensão na sala. Como se atreve este aluno a afrontar um professor? E, ainda por cima, é mesmo o Director!

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- Dá cá a conta, para eu te mostrar que…

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- Ohhh, mas é mesmo um berlinde! Que aconteceu à minha conta de vidro fenício, que se transformou num berlinde? Não pode ser!

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O Director ficou a olhar a sala, sem saber o que pensar, nem vislumbrar como explicar um acontecimento tão inesperado, como insólito. Como teria sido possível que a valiosa conta seja agora um berlinde como os que se vendem numa qualquer loja de esquina? Na busca de uma urgente explicação para este mistério, foi olhando para cada um dos presentes, que, também eles, mostravam uma certa incredulidade perante o que tinha acontecido.

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Um dos alunos, por onde a conta tinha passado, exibia um riso/sorriso mal contido, um ar malandreco e um olhar brilhante, que não passou despercebido ao professor…

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- Foste tu, meu malandro! Tenho a certeza! Ora confessa lá o que fizeste!

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Realmente tinha sido ele. Casualmente tinha um berlinde no bolso e, quando a conta lhe chegou às mãos, meteu-a no bolso e de lá tirou o berlinde que passou calmamente ao colega seguinte. A conta andou por várias mãos, que a identificaram como um autêntico vidro fenício, até chegar às do denunciante, que se recusou a aceitar o possível embuste.

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Esta estória foi-me contada, com muita graça, pelo próprio Sr. Padre Albino, que a achou extremamente divertida e bem conseguida, reconhecendo que só um aluno inteligente, com sentido da oportunidade e com um humor bem requintado, o poderia fazer.

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E sabem quem era o aluno malandreco a quem ele se referia?


L.F.F.A.S.

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Jaime Serafim
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COMENTÁRIOS
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Júlia Ribeiro disse:
Mas que mauzinhos! Conseguiram baralhar o Sr. Padre Albino Cândido Lopes.....afinal ele também se divertia e tinha algum sentido de humor, pelo que nos relata o Dr. Serafim.No fundo,há sempre uma pequenina coisa que desconhecemos num ser humano .
E assim vai o blog...vamos sabendo sempre mais estórias que se passaram dentro daquelas paredes que a todos nós nos albergaram e que cada vez mais nos vão unindo. Obrigado ao João e Dr. Serafim.
Beijinhos
Júlia R
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Isabel X disse...
Isto não é um comentário, é um desabafo! Já viram que em História todos se julgam capazes de "dar uma perninha"? Basta possuir um berlinde fenício, ter viajado a alguns lugares (supondo que não se trata de um destino turístico indiscriminado)e saber ler o Mattoso, em voz alta, durante as aulas, e já o "professor" se sente "habilitado" para leccionar a referida disciplina. Já se fosse Física, Química, Biologia, Matemática, "outro galo cantaria!"
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Jaime Serafim disse:
A Isabel tem toda a razão no seu desabafo, quando refere “que em História todos se julgam capazes de "dar uma perninha". No entanto, quando afirma que se fosse Física, Química, Biologia, Matemática, "outro galo cantaria!", provavelmente por desconhecimento, deixa de ter razão.
Conheci pessoalmente muitos casos concretos de “professores” destas disciplinas - Física, Química, Biologia, Matemática - que nem o sétimo ano dos liceus tinham completado e outros, que tendo frequentado faculdade, não tinham obtido, na altura, aprovação em qualquer cadeira referente à(s) disciplina(s) que leccionava(m). Só não digo nomes de alguns deles, porque a situação felizmente foi alterada e, neste momento, não interessa a ninguém.
Pois, Isabel, nesses anos, em anos anteriores e também em anos seguintes, não era só a História que era “leccionada” numa quase ausência de habilitações, mas isso era um mal que. na altura, se espalhava por quase todas as disciplinas, quer no ensino particular, quer no oficial.
Mas os seus comentários e/ou desabafos são sempre estimulantes e pertinentes – a Isabel está sempre presente e atenta – um beijo com toda a amizade e admiração que sabe que tenho por si.
Jaime Serafim
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Isabel X disse:
Claro que nunca poria em dúvida a nossa amizade e mútua admiração por ficar a conhecer que eu não tinha inteira razão e que a situação a que o meu desabafo alude era, afinal, extensiva a todas as disciplinas. Antes não fosse! Pelo contrário, agradeço-lhe esse esclarecimento. Um beijinho e muitas saudades.
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farofia disse...
Serafim, oh memória preciosa! Ainda mais valiosa (e Albino me perdoe) do que a pedra/berlinde fenícia. Você é um ‘must’, enquanto guardião dos tesouros daquele templo sagrado (esta é um bocadito ‘coiso’, saiu-me… ).
Você conheceu tudo e recorda-se de tudo (benza-o Deus!) com a objectividade madura de quem estava uns degraus acima da plebe.
Directamente do padre Albino você escutou a história do rapaz que ‘enrolou’ o mestre, e o mestre apreciou-lhe o engenho e arte. E assim … tanananan!... ei-lo, o artista!
A foto dir-se-ia instantânea e à la minute, se não fora não ser!
Agora sim, Serafim, agora é que faziam jeito uns intervalos grandes para gozar da sua graciosa companhia e rir, rir, rir, até mais não poder. :)))
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Flores disse:
Depois de ler estes dois textos magníficos, entrei numa espécie de letargia que me impediu de reagir imediatamente ao ritmo das emoções que me provocaram.Ainda agora não me ocorre uma forma que julgue à altura do estilo rigoroso e divertido dos seus autores.
Todos sabemos que a memória é selectiva e eu, em particular, considero a minha excessiva nesse atributo.Embora me lembrasse bem do episódio das pedras fenícias, ocasionalmente recuperado em tertúlias familiares ou de amigos mais próximos, confesso que não esperava mergulhar tão intensamente no ambiente das aulas daquele tempo, numa profusão de detalhes, alguns que julgaria perdidos para sempre.A melhor forma de corroborar o tédio e a irrelevância daquelas aulas de História é talvez reconhecer que, para além da memória do episódio, tudo o resto se me tinha varrido da consciência.
Passados tantos anos é um prazer recordar, através de duas prosas vivas, juntas num cânone tão harmonioso, um dos tantos momentos hilariantes que vivemos juntos. Mas é sobretudo um privilégio, quando elas brotam em sintonia das penas de um colega e de um professor, sem desprimor para os outros, de absoluta eleição!
Abraço
Luís Filipe Santos
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Fátima G V disse:
Só hoje tive oportunidade de ler tudo.
Adorei entretanto rever o Flores, sempre meigo e simpático, amigo do seu amigo , ao pé dele as tristezas esfumavam-se, aprendi com ele que a nossa alegria depende das alegrias que transmitimos uns aos outros. A careta que nos faz sorrir, a gargalhada espontânea, a canção fazendo brotar na nossa voz a dádiva na amizade. José Cid cantou "Música, eu nasci para a música”, mas nem todos nascemos…
A Professora que mais me marcou a História também foi a Dra. Ermelinda, e com ela descobri o Renascimento.
Fáfá

2 comentários:

Isabel X disse...

Isto não é um comentário, é um desabafo! Já viram que em História todos se julgam capazes de "dar uma perninha"? Basta possuir um berlinde fenício, ter viajado a alguns lugares (supondo que não se trata de um destino turístico indescriminado)e saber ler o Mattoso, em voz alta, durante as aulas, e já o "professor" se sente "habilitado" para leccionar a eferida disciplina. Já se fosse Física, Química, Biologia, Matemática, "outro galo cantaria!"

Anónimo disse...

Serafim, oh memória preciosa! Ainda mais valiosa (e Albino me perdoe) do que a pedra/berlinde fenícia. Você é um ‘must’, enquanto guardião dos tesouros daquele templo sagrado (esta é um bocadito ‘coiso’, saiu-me… ).

Você conheceu tudo e recorda-se de tudo (benza-o Deus!) com a objectividade madura de quem estava uns degraus acima da plebe.

Directamente do padre Albino você escutou a história do rapaz que ‘enrolou’ o mestre, e o mestre apreciou-lhe o engenho e arte. E assim … tanananan!... ei-lo, o artista!

A foto dir-se-ia instantânea e à la minute, se não fora não ser!

Agora sim, Serafim, agora é que faziam jeito uns intervalos grandes para gozar da sua graciosa companhia e rir, rir, rir, até mais não poder. :)))