Ainda hoje não sei a razão de, desde muito pequeno, apesar de não saber o que mais tarde queria ser, eu sabia que não queria ser agricultor. Será porque achava muito penosas as tarefas da agricultura? No entanto elas eram as minhas únicas referências, a não ser…
A não ser o que fazia o Sr. Francisco – ele tinha uma padaria, cozia um pão estaladiço, leve e cheiroso, andava sempre limpo, uma camisa branca impecável, cabelos lavados, levemente empoados de farinha….
Já sei! Quero ser padeiro!
Entretanto, com a entrada na escola, vi que a professora, uma senhora já bastante idosa, tinha uma vida limpa, interessante… e sabia tantas coisas! Eu achava que ela sabia tudo! Toda a gente a cumprimentava respeitosamente, com alguma cerimónia, e ela tinha sempre uma douta palavra, própria para cada momento.
Agora é que sei! Quero ser professor!
O problema é que, para ser professor, tinha que ter estudos para além da quarta classe. Nunca ninguém da minha família, nem naquela terra, tinha ido mais além nos estudos. Como havia de ser?
Na altura era impossível uma criança deslocar-se diariamente da aldeia para a cidade – em alguns dias de inverno, até de burro era quase impossível. Das conversas com os meus pais, a propósito da minha ambição, resultou que decidiram mudar de vida e passarem a residir em Caldas, onde o meu pai procurou trabalho, passando de proprietário, como na altura se dizia, a trabalhador por conta de outrem, como hoje se diz.
Fiz a admissão ao Liceu em Lisboa, no Liceu Camões e, em Outubro de 1953, mudámo-nos para Caldas e fui matriculado no Externato Ramalho Ortigão, a única instituição que ministrava o ensino liceal. As mensalidades eram caras para as nossas posses, mas com uma espantosa gestão dos meus pais, conseguiram uma harmoniosa tranquilidade e bem-estar familiar, onde os afectos estiveram sempre presentes, para que eu pudesse concretizar o meu intento. Tive os melhores pais do Mundo!
Nos dois primeiros anos, os estudos correram bem, dentro da normalidade, sem nada de especial a assinalar. Tive bons professores, muito empenhados, simpáticos e competentes. Apenas me vou referir, pela negativa, à professora de Português que tive no primeiro ano – a Dr.ª Lúcia. Muito competente certamente, mas muito ríspida e, quando se desagradava por algo menos bom, ela, que já não era bonita, fazia uma cara feia e franzia o lábio superior, acentuando ainda mais a negritude do generoso buço. Exibia um ar feroz e eu, coitado de mim, ficava secretamente horrorizado…
Mas foi a partir do 3.º ano que o meu futuro se começou a delinear mais claramente. A Dr.ª Margarida Ribeiro Rodrigues iniciou funções no Externato – estávamos em 1955. Por minha sorte, foi minha professora de Matemática, Físico-Químicas e Ciências Naturais. Naquele tempo era assim, os professores tinham que leccionar em áreas adjacentes à da sua formação.
Foi com o desenrolar das aulas da Dr.ª Margarida que eu comecei a aprender que o Mundo que me rodeava era muito mais rico e interessante do que eu alguma vez poderia imaginar. As transformações que se observavam, mesmo que simples, tinham a sua interpretação e explicação. Era possível relacionar fenómenos que aparentemente pareciam díspares… Descobri o fascínio do raciocínio matemático, que tão tranquilamente nos fornecia previsões, conhecimentos, ajudava a estabelecer relações e era, só por si, algo de maravilhoso.
Naqueles tempos, o estudo da Física e da Química era feito pelo livro, sem qualquer apoio experimental. Os ensaios práticos eram lidos ou explicados pelo professor. A Dr.ª Margarida, apesar do reduzido material de laboratório de que o Externato dispunha, sempre acompanhou as suas aulas com os ensaios experimentais possíveis de realizar. Eu vi e cheirei cloro, observei a sublimação do iodo, assisti ao precipitar do sulfato de bário, vi água a transformar-se em oxigénio e hidrogénio… experimentei tantas coisas, tantas… era um Mundo novo que se me abria!
Mais tarde, reconheci que, em qualquer destas disciplinas, há temas pesados e difíceis, mas enquanto as aulas foram dadas pela Dr.ª Margarida, não dei por isso. Era tudo tão bonito e fácil!
Provavelmente, por imperativos de distribuição de serviço, no 5.º ano, em Ciências Naturais, a Dr.ª Margarida foi substituída por outro professor. Esta disciplina perdeu o encanto, tornou-se difícil e muito maçadora. Mas, felizmente, a nossa turma continuou a ter aulas de Matemática e de Físico-Químicas com a mesma professora.
Agora sei! Quero ser professor de Físico-Químicas! Ou de Matemática?
Infelizmente para nós, a Dr.ª Margarida deixou-nos no final do 5.º ano (1958). Decidiu, e muito bem, enveredar pelo ensino oficial.
Nos 6.º e 7.º anos tive outro professor de Físico-Químicas e outro de Matemática. A diferença era abissal. O empenhamento, a alegria da leccionação e a força que a Dr.ª Margarida imprimia na dinâmica de uma aula foram substituídos por matéria dada a velocidade de tartaruga, num caso e a velocidade da luz, no outro. Foi um desconsolo.
Mas não importa, o gosto pelo conhecimento, a beleza da Ciência e o tornar acessível o que parecia difícil, já estavam interiorizados – a Dr.ª Margarida tinha-me marcado para sempre! Restava-me, quase sozinho, dar conta do recado. E dei!
Terminado o 7.º ano, fui ver os elencos das cadeiras dos cursos entre os quais hesitava. Verifiquei que em Ciências Matemáticas apenas tinha uma cadeira de Física e outra de Química, mas em Ciências Físico-Químicas tinha muitas cadeiras de Matemática, para além das muitas de Física e de Química.
Então, finalmente, decidi: Quero ser professor de Físico-Químicas!
Anos depois, estreei-me, como professor, no Externato Ramalho Ortigão. Eu, que apenas tinha frequentado, como aluno, o Externato no “prédio do Crespo”, encontrei no novo edifício excelentes salas de aula, laboratórios muito mais bem equipados e uma confortável sala de professores. O ambiente também já era outro – tudo era muito mais organizado, aprumado e formal, direi mesmo requintado para a época. Eu tinha 21 anos, era um rapazeco, sentia-me um pouco constrangido, mas fui sempre muito bem tratado e respeitado por todos: Director, colegas, empregados, alunos e pais.
Foram-me atribuídos 5 níveis para leccionar. Tive de trabalhar muito. Na preparação das lições, procurando qual seria a melhor estratégia para a leccionação de cada tema, quantas vezes recorri ao que vi a Dr.ª Margarida fazer nas aulas. Recordava-me perfeitamente da forma como a Dr.ª tinha leccionado, das estratégias que tinha usado, e tentava seguir-lhe as pisadas. Foi, sem que o soubesse, a minha primeira metodóloga.
Como se pode perceber, eu não podia deixar passar a excelente oportunidade que este maravilhoso blogue me dá, para prestar um preito de homenagem a esta QUERIDA SENHORA que tanto me marcou e influenciou tão positivamente toda a minha vida. Bem-haja Dr.ª Margarida Ribeiro!
Era (e ainda é) uma senhora de apresentação sempre muito bem cuidada, bem penteada, saltos altos e que deixava à sua volta um perfume que nunca esqueço – quente e suave. Usava sempre a mesma marca (Boalis). Um dia perdeu uma luva e, quem a encontrou, foi devolver-lha, porque de imediato reconheceu, pelo perfume, a quem pertencia.
Em 1970 (ou 71?) Dr.ª Margarida, agora docente do quadro da Escola Secundária de Rafael Bordalo Pinheiro, voltou ao Externato para leccionar, em regime de acumulação, algumas turmas de Matemática. Imagine-se a minha honra, alegria e satisfação em poder ter a meu lado uma pessoa que tanto admiro.
Falámos ao telefone há uns dias. Fiquei feliz por saber que se encontra bem, mantendo o mesmo espírito elevado e alegre, tão característico das pessoas inteligentes e boas, que sabem dar tanto e tanto têm para dar.
Para si, Dr.ª Margarida, um beijinho de muita amizade e gratidão e um abraço do tamanho do Mundo.
Ah, é verdade… essa ideia de ser padeiro nunca me abandonou de todo. Ainda hoje sinto um fascínio enorme perante um forno de lenha a arder. Não é, Manela?
Jaime Serafim
5 comentários:
Também fui aluna da Dra. Margarida e concordo plenamente com o Dr. Serafim. Aliás, a minha turma dividia-se, para as aulas de Matemática, em dois grupos: os repetentes, que eram da matemática antiga, tinham aulas com o Dr. Serafim e os da Matemática moderna, que era o meu caso, tinham aulas com a Dra. Margarida. Sempre fui mais das letras do que das ciências, embora aprendesse todas as disciplinas com gosto. Do que melhor me lembro das aulas da Dra. Margarida era a constante disponibilidade para voltar a explicar alguma questão mais obscura. Quando eu lhe dizia que não tinha compreendido qualquer exercício que tentara resolver em casa, a Dra. Margarida respondia: "Isso é porque escreveste a preto sobre branco. Vem aqui ao quadro e verás que percebes logo tudo quando escreveres a branco sobre preto!" E não é que assim acontecia? Um beijinho para a Dra. Margarida. Fico feliz por saber que está bem. Há muito tempo já que não a vejo!
- Isabel Xavier -
Comentário
Há quem diga que o problema nº 1 do país é a Justiça. Outros preferem acentuar que é a Educação, a Economia ou até mesmo a Saúde. Pela minha parte, se ainda estivesse na fase de selecção, optaria imediatamente pela Educação depois de ler este belo testemunho do Dr Serafim.
É claro que a experiência extraordinária de um professor marcante é multiplicativa.
Não tivemos nós, meia geração depois, os ecos desse modelo competente e cativante de ensinar da drª Margarida (que não conheci), nas lições e na amizade que recebemos do nosso professor Jaime Serafim? Não andamos aqui há dois anos neste blog a reflectir o que éramos e no que nos transformámos, em resultado da gratificante influência daquela fase crucial da nossa formação?
Desejarei apenas que eu próprio possa não desmerecer, na quota parte de responsabilidade que me cabe de humilde influência noutros mais novos, o património herdado dos meus melhores professores, na primeira linha dos quais figura desde sempre o próprio Dr Serafim.
LFS
Se permite, meu caro Jaime Serafim, entrou para o ERO na mesma época que eu, também fui aluno da Dr.ª Margarida Ribeiro Rodrigues a Físico-Químicas e Ciências Naturais, mas a mim tucou-me mais o Dr. Azevedo, que como sabe davam as mesmas disciplinas.
Mas o que ainda hoje ando pensar, desde do dia do almoço, é como a cara de um colega se apagou assim na minha memoria!...
Bem eu sei que pertencia ao grupo da malta mais irreverente, mas sinto que passar-me assim o nome e cara de um colega. é uma falta minha grave. Peço que me desculpe.
Sempre amigo
João Ramos Franco
Vinha comentar que o Serafim não mudou nada, que a agilidade e a graça do seu contar encantam como há 40 anos. Que a eterna paixão pelos afectos é a mesma marca de água.
Mas eu só o conhecia de ouvido nesse tempo de palavras leva-as o vento. Leio agora a sua ‘autobiografia’ com o mesmo encantamento e com uma imensa admiração pelo autor.
Fui aluna do Dr. Serafim Físico-Química (assim se chamava naquele tempo). Ouvi-o contar algumas histórias interessantes para criar um certo ambiente na aula. Mas, sinceramente, não fazia ideia que ele fosse tão bom cozinheiro. (E essas filhoses, "stôr", quando é que vêm à prova?) Muito menos que tivesse esse desejo de ser padeiro. Sobretudo acho que escreve melhor ainda do que falava. Já agora .... quando é que sai esse livro para nos deliciar?
Guida Santos
Enviar um comentário