ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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O princípio da revolta (J B Serra)

por João Bonifácio Serra
Sugestão para audição:


Não sou, nem nunca fui, um rebelde. Mesmo nos momentos mais afirmativos do protesto adolescente, e, em geral, da autonomia juvenil, não vivi nenhuma crise prolongada de relação com o meio familiar ou escolar. Se fiz rupturas, como toda a gente, foram cumulativas e as inquietações não passaram disso mesmo: estados de alma que, acredito, foram quase sempre criadores.

Uma situação houve no entanto em que julgo ter estado próximo da fronteira que acabo de negar ter passado. Foi o Padre Albino que a originou. Passo a contar.

Em 1964 comecei a enviar pequenos textos de índole literária para jornais e rádios. Alguns foram publicados, estimulando a continuidade e a ambição do escrevinhador. A Gazeta das Caldas tornou-se naturalmente um alvo preferencial dessa investida. Em princípios de 1965, a Gazeta concedeu-me mesmo o título de redactor, um cartão assinado pelo Director, cuja utilidade, não sendo muito clara, para além de uma ocasionais entradas gratuitas no Salão Ibéria, me pareceu uma singular distinção.

Na Gazeta eu fazia um pouco de tudo: desde as inevitáveis tentativas literárias (que se outro mérito não tiveram, pelo menos me permitiram concluir cedo que o melhor era não ir por aí…) a reportagens dos mais variados acontecimentos, críticas de livros, entrevistas, etc.

Num dos primeiros dias de Março de 1965, quando saí da carrinha que me trazia do Carvalhal Benfeito, o Sr. Ulisses deu-me o recado: que o Senhor Director me esperava no seu Gabinete. Como em regra a chamada a este Gabinete trazia agarrada um encargo ou observação desagradável, lá me dirigi, apreensivo, ao encontro do Padre Albino. O que ele tinha para me dizer apanhou-me completamente desprevenido. Tive até alguma dificuldade em descortinar o sentido da questão. Mas, por fim, lá o entendi: ele estava pura e simplesmente a ordenar-me que submetesse à sua apreciação prévia todo e qualquer texto destinado a publicação. Olhei-o atónito. Nunca tinha lidado com uma situação deste tipo e comecei por argumentar sobre a exequibilidade da medida. Expliquei ao Director como é que o jornal era composto (nessa altura ele era feito numa tipografia tradicional pertencente à própria empresa da Gazeta, na Rua do Montepio), apostado em fazê-lo compreender que no caso das reportagens eu as tinha de escrever muitas vezes no próprio dia do acontecimento narrado. Foi intransigente: eu tinha que lhe entregar os textos, ponto. Ele demoraria os dias que fossem precisos a ler e a emendar, ponto. A emendar? - perguntei incrédulo. Sim, isso mesmo, ponto.

No dia seguinte, na vitrina do átrio, lá estava um aviso. Invocando o estatuto do ensino particular determinava que todos os textos da autoria de alunos e destinados a publicação teriam de obter a prévia concordância do Director do Externato. Que eu soubesse, esse aviso só a mim dizia respeito. Não havia nessa altura mais ninguém que escrevesse regularmente para jornais.

Poucos dias depois, fui entregar no gabinete do Director um primeiro texto, de acordo com as novas regras. Tratava-se de um artigo de opinião intitulado “Homenagem a Calouste Gulbenkian”. Nele comentava uma proposta defendida por António Pedro (pintor, dramaturgo) no sentido de homenagear Calouste Gulbenkian, erguendo-lhe um monumento em Lisboa. Aplaudindo a ideia, eu sugeria que nas Caldas se desse o nome de Calouste Gulbenkian a uma rua da cidade.

A obra da fundação que patrocinara justificava-o amplamente. Não haverá, argumentava eu, parte alguma do território português aonde não tenham chegado os dedos da sua obra. “E quando – rematava eu – actualmente se promovem homenagens (… e tantas são!) cuja oportunidade nem sempre será indiscutível, quão maior é a pertinência desta, em memória do Príncipe dos Beneméritos do País”.

Três dias depois, o Padre Albino devolvia-me a crónica. Mas este último parágrafo, em que aludia a homenagens discutíveis, estava assinalado com uma cruz. A sua publicação não era permitida, informou-me, sem mais explicações.

Desta vez encarei o Director com outra determinação. Como era possível que aquela inofensiva afirmação merecesse ser cortada? Foi então que se me fez luz: o que o Padre Albino estava a praticar comigo era Censura. CENSURA! A famosa Censura, aquela que de que toda a gente se queixava surdamente no jornal, que obrigava a mandar os textos a Leiria, um a um, antes de serem publicados, e de onde vinham autorizados, autorizados com cortes ou pura e simplesmente recusados. E agora ela estava ali diante de mim, pronta a usar, antes mesmo da outra, o seu severo lápis azul. Achei que não, que não podia pactuar com tal iniquidade.

Copiei numa folha o conteúdo do aviso e nesse mesmo dia dirigi-me, ao fim da tarde, ao consultório do advogado e director da Gazeta, Carlos Manuel Saudade e Silva, um primeiro andar de um pequeno prédio da praça, perto da livraria Silva Santos. Contei-lhe o que se passara e entreguei-lhe a cópia do aviso e o original do artigo sobre Gulbenkian. - Não há nenhum artigo no Estatuto do Ensino Particular que imponha esse princípio. Você não deve cumprir essa ordem. E o artigo vai ser publicado assim mesmo no jornal. - E se ele me ameaçar? – perguntei. - Deixe isso comigo - respondeu.

De facto, na sua edição de 27 de Março de 1965, a Gazeta publicou na primeira página o meu artigo. Ignoro o que se passou entre o Director do jornal e o Director do colégio. Passados uns dias o aviso desapareceu. Nunca mais ouvi falar no assunto.

A atitude do Padre Albino não bastou, até porque, como se viu, foi improcedente, para fazer de mim um rebelde. Mas permitiu-me enfrentar relativamente cedo o autoritarismo, a intolerância, a arbitrariedade censória. O máximo responsável pela instituição onde eu aprendia não queria estimular a criatividade dos seus alunos, mas vigiá-la, submetê-la a controlo. O Padre Albino permitiu-me clarificar que havia uma fronteira da liberdade, e que de um dos lados eu, definitivamente, não queria estar. No momento em que ele me mostrou o texto censurado experimentei, pela primeira vez, a revolta contra a arrogância do poder. Graças ao Padre Albino percebi isso, em experiência directa, percebendo também contra o quê e quem é que eu me iria identificar.

É isto que de importante lhe devo. Não fez de mim um rebelde, mas graças a ele compreendi o sentido da revolta.

João Serra

3 comentários:

Higino disse...

Curiosamente nessa época, na Bordalo Pinheiro o Pe Paulo Trindade Ferreira, com a conivencia do Director da Escola - Arquitecto Eduardo Loureiro -, promovia, aos fins de semana, encontros de alunos no ginágio da escola onde nos ensinava a pensar e a questionar os fenómenos que nos envolvia - encontros esses muito participados mas poucos duradouros porque o Pe Paulo foi rápidamente transferido para a Escola Marquês de Pombal, em Lisboa.
Higino Rebelo

Anónimo disse...

O João Serra está verdadeiramente em tempo de Abril com esta história, verídica e magnífica, de censura! O jovem escritor descobre que lhe falta a liberdade, no preciso instante em que um poder arbitrário lhe corta sem sentido e sem lógica a expressão de pensamento.

«Foi intransigente: eu tinha que lhe entregar os textos, ponto. Ele demoraria os dias que fossem precisos a ler e a emendar, ponto. A emendar? - perguntei incrédulo. Sim, isso mesmo, ponto.»Dir-se-ia que, às avessas, foi uma lição de mestre sobre o que é a liberdade!

Penso que o papel de ‘pequeno papão lusitano’ assentava que nem uma luva ao padre Albino (como assentava à grande maioria dos directores e reitores da época a quem se exigia ‘autoridade’ e se recomendava um q.b. de autoritarismo) e como qualquer ‘papão’ pregou valentes sustos. Por isso, não deixou saudades…

Inês

Anónimo disse...

José Carlos Faria disse:
À laia de aviso prévio (não, não é necessário pressionarem-me, que eu admito desde já):
É-me difícil falar do Padre Albino, de forma neutra, ou, vá lá, pelo menos, contida. Para dizer tudo e com todas as letras: Sempre o considerei uma figura execrável (a propósito, mais uma notável caricatura da São para o nosso «Álbum das Glórias»; o Bordalo teria gostado!). O tempo que foi passando não conseguiu atenuar essa minha animosidade arreigada, mesmo apesar de ter sabido, aqui e ali, de pequenos gestos de humanidade como aquele que a Júlia nos conta - fazem parte afinal desse contraditório que cada um carrega consigo e não apagam o extenso rol de todas as outras atitudes, que, essas sim, eram estruturais e configuravam um perfil psicológico e um padrão de comportamento reiterado.
Porém, não é por isto, lançado em jeito de confissão, que o excelente texto do João Bonifácio Serra me agradou tanto. Como se comprova (gabando eu a sua calma e ponderação, cuja presença, em mim, tantas vezes andam fugidas por paragens incertas), o relato duma situação, dir-se-ia inqualificável (mas que precisamente se caracteriza pela enorme prepotência, pelo abuso, violador de direitos, liberdades e consciências), alia à qualidade da escrita uma descrição serena, lúcida e sensível, a qual resulta na percepção aguda duma violência ilegítima, ainda mais brutal porque exercida impunemente no doce remanso das suaves sombras do gabinete.
«Há sempre alguém que resiste/ há sempre alguém que diz não», cantou o poeta. A insubmissão (leiam o poema do Ruy Belo, por favor - «As grandes insubmissões sempre foram para mim as pequenas») representava tudo aquilo que o Director mais abominava e tinha por intolerável nas suas manhãs submersas. Servil face ao Poder, nepótico com os desprotegidos, a sua marca deixou-a como cicatriz, desde a controversa passagem como capelão da Casa Pia (onde os mimos mais inocentes passavam por severos castigos aos rapazes, que em tempo de «rock 'n' roll» e Elvis Presley, estreitavam os canos das calças da farda fornecida pela Armada) até à hipocrisia da despedida com missa solene, para supostamente se ir sepultar em vida na ascese da clausura silenciosa da Cartuxa de Évora, «per omnia saecula, saeculorum». Foi de curtíssima duração o fervor místico inflamado. Que a terra lhe seja leve. R.I.P.
Z C Faria