ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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UMA NOITE DESASTROSA

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por Isabel Braga

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Foi numa noite quente de Setembro de 1970 que, pela primeira vez, surripiei da garagem o carro do meu pai. Pela hora da ocorrência, a seguir ao jantar, posso deduzir que o dono da viatura se encontraria ausente, pois não me arriscaria, caso contrário, a desencadear a sua fúria homérica. Há que dizer, sem rancores, que o meu pai era alguém que, em público, socialmente e por escrito, em contos, novelas e romances, defendia todas as liberdades, mas, em privado, sob muitos aspectos, se revelava algo tirânico.
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A data do “crime” está gravada a fogo na minha memória, por muitos motivos. Estava-se no rescaldo da crise académica de 1969, que abalou a universidade portuguesa e tivera início em Coimbra em 17 de Abril desse ano. O ano lectivo seguinte foi muito conturbado nesta academia, com constantes confrontos entre estudantes e polícia de choque, que eu vivera intensamente na minha qualidade de “caloira” do curso de filosofia e esquerdista dos quatro costados, daquelas que viam em Trostky o verdadeiro e único seguidor das teses de Marx.

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Tudo fora excitante e assustador para mim, nesse ano lectivo: havia muitos dias em que éramos aconselhados, em reuniões de alunos, a usar sapatilhas no dia seguinte, para fugir à polícia de choque, que muitas vezes, de manhã cedo, já se encontrava em formação cerrada, de escudos e bastões em punho, oculta nas sombras do gigantesco estaleiro da futura faculdade de química, quase em frente da faculdade de letras, que eu frequentava. Ficava de cabelos em pé e com as pernas a tremer, mas lá seguia, de nariz no ar, pronta para o pior.
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Além de fugir à polícia e das noites passadas em reuniões secretas a discutir política – durante as quais, envolta num nevoeiro teorético, eu tentava distinguir a custo a justeza das distinções subtis entre actuações certas e erradas, do ponto de vista da doutrina –, eu vivia o meu primeiro namoro a sério. Foi uma época agridoce, em termos de experiências, mais acre do que doce, em Setembro de 1970, pois acabara de perder o namorado e muitos quilos, devido ao desgosto.
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No meio de tantos acontecimentos, eu tinha tirado a carta. Para conveniência do papá, pois então, e explico brevemente porquê: vivíamos, nós, a família nuclear, pai, mãe e irmãos, com a avó e várias tias avós muito idosas, numa enorme casa de família, a poucos quilómetros de Coimbra. Uma das tias estava acamada e, a acompanhá-la, durante a noite, havia sempre uma freira que era preciso ir buscar e devolver ao convento, na cidade, todos os dias, respectivamente à hora do jantar e pelas seis da manhã seguinte. Quem havia de se encarregar de tal penosa tarefa, uma vez que o meu irmão mais velho já não vivia em casa? Não o nosso pai, sempre demasiado atarefado para se ocupar de assuntos domésticos. Restava eu, a filha que já tinha mais de 18 anos. E, assim, por causa da tia e da freira, tirei a carta, para grande conveniência não só minha como da minha irmã Ana, a Ani, um ano mais nova, pois tal significava mais liberdade de movimentos.

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Regresso, por fim, à noite de Setembro de 1970, a noite do dia em eu ficara aprovada no exame de condução. Parado, na garagem, uma tentação irresistível: o dois cavalos do meu pai, a que chamávamos Lélé, pois a matrícula começava por LE, tal como a do automóvel mais potente, mais utilizado por ele.


Eu não estava calma, é o mínimo que posso dizer, nessa transgressora viagem inaugural: nunca tinha guiado sem o instrutor ao lado, não tinha comigo nenhum documento comprovativo de que passara no exame de condução e vivia, como já disse atrás, o meu primeiro desgosto de amor.
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O nosso objectivo, nessa noite, era, obviamente, ir ao encontro dos amigos, que se reuniam, na época, no café Moçambique, na Praça da República, mesmo em frente de uma das portas da Associação Académica, encerrada pela polícia.
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Quando chegámos junto à esplanada do café, vimos que havia um lugar vago de estacionamento. Com o coração aos pulos, iniciei a manobra, ao som de palmas e assobios dos amigos presentes, entre os quais se encontrava a fonte da minha perturbação sentimental.
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Os nervos eram muitos e, como seria de esperar, a coisa não correu bem. Após a terceira ou quarta tentaviva desesperada para encaixar o Lélé no espaço disponível, desisti, e arranquei dali para fora, humilhada e furiosa, entre os uivos de rapazes e meninas perante os quais não dar parte de fraca era, para mim, na altura, quase uma questão de vida ou de morte.

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Para cúmulo dos azares, quando guinei para a faixa de rodagem, ia a passar um táxi, um forte Mercedes preto e verde, contra o qual fui bater, causando o riso dos basbaques que tinham assistido, divertidos, às minhas tentativas de estacionamento. Mas não eram eles os únicos espectadores da infeliz manobra: a ver tudo, do outro lado da rua, estavam os dois polícias que montavam guarda à porta da Associação Académica. Não se pode dizer que tenha sido a melhor noite da minha vida.
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Um dos polícias materializou-se de imediato ao meu lado, a pedir-me os documentos que eu não tinha. Ao mesmo tempo, o motorista do táxi reclamava, mentindo com todos os dentes, que eu lhe tinha amachucado a porta do carro, na qual não se via um único risco. Devo dizer, em abono da verdade, que o odiado agente da autoridade não se portou excessivamente mal. Ouviu as minhas atabalhoadas explicações sobre a ausência de documentos e disse que não tomaria nota da ocorrência caso eu me entendesse com o motorista do táxi e este não apresentasse queixa.

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O taxista – honroso profissional – não se fez rogado. Ao perceber que eu me encontrava numa posição muito desconfortável, exigiu 300 escudos para desistir da queixa. Trezentos escudos eram uma fortuna, na época, para duas miúdas como eu e a minha irmã, filhas de alguém pouco sensível às nossas necessidades, sendo isto um eufemismo. Barafustei, tentei que ele me indicasse onde estava o estrago no seu Mercedes, uma vez que o pobre Lélé, de fraca chapa, não apresentava uma beliscadura, mas foi em vão.

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Os 300 escudos foram pagos, graças ao empréstimo de uma simpática prima, a Teresa. E, durante algum tempo, não ousei roubar o carro ao meu pai. Mas em breve reincidi. De toda esta história, quem saiu, portanto, feito numa bola de trapos foi o meu orgulho, não qualquer dos automóveis envolvidos. Mas tudo tem as suas vantagens: tornei-me exímia a estacionar automóveis e o meu ex-namorado, que se mostrou divertido com o incidente, passou a ocupar muito menos os meus pensamentos.

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Isabel Braga

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C O M E N T Á R I O S


Manuela Gama Vieira disse...
A engraçada história que a Isabel aqui traz,reporta a Coimbra e evoca locais e ambientes que também frequentei,vivi e conheci.
O inesquecível Moçambique! Lembra-se do carismático dono?O célebre Fontes!!! Uma inteligência, quadrada, de quem se contavam as mais hilariantes "anedotas" saídas da sua brilhante cabeça pensante... afinal,ele convivia com os "doutores",é bom que se note...
O triângulo,Moçambique,Piolho e Tropical não há quem não conheça,os da nossa geração,claro. Personalidades ilustres, de várias áreas da nosso actual "mundo" político e cultural, muitas vezes jogaram matraquilhos no Moçambique.Por acréscimo,vêm-me à memória o Teixeira,o Tatonas, figuras típicas da Praça da República.Imagino a sua atrapalhação,logo ali,onde se juntava a "malta"...
Quanto às "fúrias homéricas" de seu Pai, uma qualidade de todos os Pais da nossa geração....Talvez essa particularidade singular emprestasse mais adrenalina (como se diria naquele tempo?) a estas verdadeiras aventuras.Não sou saudosista...mas diga-me lá se, in illo tempore, Coimbra não tinha mais encanto?
Dou-lhe os meus parabéns,Isabel,pela sua brilhante estreia no nosso brilhante blogue, regido pela batuta do não menos brilhante João Jales!
Manuela Gama Vieira
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J L Reboleira Alexandre disse...
Magnífico artigo com tanta coisa em tão poucas palavras.
As lutas estudantis (isto, está visto, era tudo gente MRPP), e os sonhos de uma época com tanta mudança. As vivências, cito, numa enorme casa de familia (até tinha um chefe como se impunha...)e a malvadez indisfarçada dos colegas, que nem carta tinham, mas deliraram com os problemas da autora.
E no fim os 300 paus para regularizar a situação. Pudera, o taxista viu ali uma forma de ganhar a semana. Era mesmo muito dinheiro, metade de quanto me custava um mês de aluguer do quarto em Lisboa, na altura, com direito a dois duches semanais!

Julinha disse...
Acabo de ler a estória narrada pela Isabel Braga e gostei muito,pois a maneira como descreve é muito agradável de ler e aquela noite desastrosa divertiu-me imenso! Imagino a "coitada" da Isabel a fazer manobras e manobras para arrumar o Lelé e a sua fúria perante tamanha assistência (mas que mauzinhos!).
Enfim, são coisas que acontecem a recentes "encartados"...Mas tudo acabou em bem!
Isto leva-me a contar algo que me aconteceu, também comigo recentemente encartada.Estava eu a tentar arrumar o meu Mini na Av.F.Pereira de Melo,em pleno centro de Lisboa,e a roda de trás sempre a bater no lancil do passeio.Fazia,desfazia,volante para um lado, volante para o outro, e o resultado sempre o mesmo,mas...tive mais sorte,ao contrário da Ana, apareceu um senhor muito simpático que passava por ali e me deu todas as indicações para que "o desgraçado" do pneu não mais fosse bater no passeio. Ainda hoje,quando isso me acontece (raramente!)lá faço todas as manobras que aprendi naquele dia.
Obrigada Isabel, julgo não ser ex-aluna do ERO mas é uma grande aquisição para o nosso blog.Júlia R
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Guida Sousa disse...
Os primeiros estacionamentos entre dois carros são sempre complicados e muitas vezes se não vai à primeira nunca mais vai!
Que saudades dos dois cavalos,fiquei a olhar para a fotografia.
Excelente artigo que,se a Isabel é quem eu penso,não é para admirar porque ela é uma conhecida jornalista.
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Luisa disse:
História maravilhosamente contada,incluindo as formas de ser e pensar da época.O ambiente em Coimbra,embora eu não conhecesse,dizia-se ser diferente,com mais solidariedade entre as pessoas que se conheciam todas.Mas não foi o caso aqui!
Deduzo que a Isabel seja irmã da Ana e filha do Dr. Mário Braga que esteve no último almoço mas faltou aqui uma palavra do JJ a elucidar os leitores.
Esperamos por mais colaborações suas,que enriquecem o blogue como diz a Julia.
beijinhos.L
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J J disse...
Não ter "apresentado" a Isabel aos leitores habituais do Blog foi deliberado. Este texto fala por si e a sua autora, dispensando apresentações. Cuidadoso retrato de época (familiar, social e político), consegue simultaneamente ir mantendo os leitores em sobressalto em relação à sorte do automóvel, da condutora e do seu coração...
Mas para quem aprecia biografias, a Isabel é realmente a irmã mais velha da Ana Braga e uma conhecida jornalista que, como já foi referido, é um prazer ter como colaboradora (digo eu...) neste Blog.
Obrigado Isabel, espero que haja mais.
JJ
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jorge disse...
excelente post,embora talvez algo injusto para os taxistas,classe profissional que se faz estimar pouco,porque será?de resto,nada a acrescentar aos merecidos elogios dos outros comentadores,a escrita da Isabel lê-se de um folego!
e que saudades de ter um 2cv!j
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João Ramos Franco disse...
Lendo este interessante relato e vendo o “LéLé” como uma personagem de aventura onde toda a realidade da vida académica da época se incorpora, metendo a policia, penso que a noite podia ter sido mais desastrosa… talvez um pouco de sorte com os policias…
Um abraço amigo
João Ramos Franco
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8 comentários:

Anónimo disse...

Acabo de ler a estória narrada pela Isabel Braga e gostei muito,pois a maneira como descreve é muito agradável de ler e aquela noite desastrosa divertiu-me imenso!
Imagino a "coitada" da Isabel a fazer manobras e manobras para arrumar o Lelé e a sua fúria perante tamanha assistência (mas que mauzinhos!). Enfim, são coisas que acontecem a recentes "encartados"...Mas tudo acabou em bem !
Isto leva-me a contar algo que me aconteceu,também recentemente encartada.Estava eu a tentar arrumar o meu Mini na Av.F.Pereira de Melo,em pleno centro de Lisboa,e a roda de trás sempre a bater no lancil do passeio.Fazia,desfazia,volante para um lado, volante para o outro, e o resultado sempre o mesmo,mas...tive mais sorte,ao contrário da Ana, aparece um senhor muito simpático que passava por ali e me deu todas as indicações para que "o desgraçado" do pneu não mais fosse bater no passeio. Ainda hoje,quando isso me acontece (raramente)lá faço todas as manobras que aprendi naquele dia.
Obrigada Isabel, julgo não ser ex-aluna do ERO mas é uma grande aquisição para o nosso blog.
Júlia R

Guida Sousa disse...

Os primeiros estacionamentos entre dois carros são sempre complicados e muitas vezes se não vai à primeira nunca mais vai!
Que saudades dos dois cavalos,fiqueia olhar para a fotografia.
Excelente artigo que,se a Isabel é quem eu penso,não é para admirar porque ela é uma conhecida jornalista.

J L Reboleira Alexandre disse...

Magnífico artigo com tanta coisa em tão poucas palavras.

As lutas estudantis (isto, está visto, era tudo gente MRPP), e os sonhos de uma época com tanta mudança. As vivências, cito, numa enorme casa de familia (até tinha um chefe como se impunha...)e a malvadez indisfarçada dos colegas, que nem carta tinham, mas deliraram com os problemas da autora.

E no fim os 300 paus para regularizar a situação. Pudera, o taxista viu ali uma forma de ganhar a semana. Era mesmo muito dinheiro, metade de quanto me custava um mês de aluguer do quarto em Lisboa, na altura, com direito a dois duches semanais!

Anónimo disse...

História maravilhosamente contada,incluindo as formas de sr e pensar da época.O ambiente em Coimbra,embora eu não conhecesse,dizia-se ser diferente,com mais solidariedade entre as pessoas que se conheciam todas.Mas não foi o caso aqui!
Deduzo que a Isabel seja irmã da Ana e filha do Dr. Mário Braga que esteve no último almoço mas faltou aqui uma palavra do JJ a elucidar os leitores.
Esperamos por mais colaborações suas,que enriquecem o blogue como diz a Julia.
beijinhos.L

J J disse...

Não ter "apresentado" a Isabel aos leitores habituais do Blog foi deliberado. Este texto fala por si e a sua autora, dispensando apresentações.

Cuidadoso retrato de época (familiar, social e político), consegue simultaneamente ir mantendo os leitores em sobressalto em relação à sorte do automóvel, da condutora e do seu coração...

Mas para quem aprecia biografias, a Isabel é realmente a irmã mais velha da Ana Braga e uma conhecida jornalista que, como já foi referido, é um prazer ter como colaboradora (digo eu...) neste Blog.

Obrigado Isabel, espero que haja mais.

JJ

jorge disse...

excelente post,embora talvez algo injusto para os taxistas,classe profissional que se faz estimar pouco,porque será?de resto,nada a acrescentar aos merecidos elogios dos outros comentadores,a escrita da Isabel lê-se de um folego!e que saudades de ter um 2cv!j

João Ramos Franco disse...

Lendo este interessante relato e vendo o “LéLé” como uma personagem de aventura onde toda a realidade da vida académica da época o incorpora, metendo a policia, penso que a noite podia ter sido mais desastrosa… talvez um pouco de sorte com os policias…
Um abraço amigo
João Ramos Franco

Anónimo disse...

A engraçada história que a Isabel aqui traz,reporta a Coimbra e evoca locais e ambientes que também frequentei,vivi e conheci.O inesquecível Moçambique! Lembra-se do carismático dono?O célebre Fontes!!! Uma inteligência,quadrada,de quem se contava as mais hilariantes "anedotas" saídas da sua brilhante cabeça pensante...afinal,ele convivia com os "doutores",é bom que se note...

O triângulo,Moçambique,Piolho e Tropical não há quem não conheça,os da nossa geração,claro.
Personalidades ilustres, de várias áreas da nosso actual "mundo" político e cultural, muitas vezes jogaram matraquilhos no Moçambique.
Por acréscimo,vêm-me à memória o Teixeira,o Tatonas, figuras típicas da Praça da República.
Imagino a sua atrapalhação,logo ali,onde se juntava a "malta"...

Quanto às "fúrias homéricas" de seu Pai, uma qualidade de todos os Pais da nossa geração....Talvez essa particularidade singular emprestasse mais adrenalina (como se diria naquele tempo?) a estas verdadeiras aventuras.

Não sou saudosista...mas diga-me lá se, in illo tempore, Coimbra não tinha mais encanto?

Dou-lhe os meus parabéns,Isabel,pela sua brilhante estreia no nosso brilhante blogue, regido pela batuta do não menos brilhante João Jales!

Manuela Gama Vieira