ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
.
.

MUEDA - 1971 (Alfredo Justiça)

.

Caro João Jales


.
Junto remeto um pedaço da minha vivência após a "Bela Época". Encontrava-me em pleno cenário da guerra colonial, no norte de Moçambique, e a nostalgia atacou "forte e feio" numa noite de intensa vigília. Os nervos demasiado tensos... e, porque não confessá-lo, o medo presente em sobressaltos de alerta. Foi um tempo que ainda hoje está bem presente, embora decorridos mais de 38 anos.
(…)
Um abraço
A. Justiça



Carta enviada de Mueda em 1971

Poema de Amor


Meu amor:
acabei há pouco de te falar,
de te ouvir
e depois fiquei para aqui,
a olhar as coisas,
os livros,
a tua foto,
sem vontade de ler,
de fazer fosse o que fosse.

Nao aconteceu nada
de verdadeiramente importante,
pois na prática,
a distância
de Mueda a S. Martinho
é a mesma
que de Mueda a Paris
ou à China.
Para além, no entanto,
destas distâncias no espaço,
há as outras.
E com as tuas palavras,
o teu carinho,
a tua tristeza
e o teu amor,
eu senti
quando olhei o teu retrato,
que estavas triste,
como se pressentisses
nessa altura
esta separação,
e através dele,
senti que estavas perto,
que me fazias companhia.
Já passaram algumas horas,
já é tarde
e nao sei bem
se era isto,
que me apetecia.
Estou triste.
Verdadeiramente triste,
verdadeiramente só.
Custa-me escrever,
porque me apetecia
correr para os teus braços
como uma criança pequena,
fechar os olhos,
pedir-te beijos
e chorar
para ser ainda mais feliz.
Nao posso correr, afinal,
e escrevo apenas.
Digo coisas.
Entretenho-me
a enganar-me a mim
e a enganar o tempo
na ilusao
de que ele passará mais depressa.
Mas eu sei que será longo,
longo
e se não deixará enganar.
Passaram-se dias
desde que parti.
Dias em que viajei,
li livros,
ouvi música,
talvez sem a ouvir,
- mas procurei-a, pelo menos.
Dias em que pensei em tudo
e não pensei em nada.
Dias mais ou menos iguais
a tantos outros.
Hoje deitei-me,
desejando ler um pouco.
E, afinal,
mal me instalei,
mal li as primeiras páginas,
comecei a chorar
como uma Madalena.
Eu que sou tão forte
e me julguei invulnerável,
Eu que não chorei quando parti,
nem desde então até agora.
Não sei o que se partiu.
Uma couraça de segurança,
que insensivelmente
criei a minha volta.
Ou uma tensão,
que me tem oprimido.
sem que eu disso me apercebesse.
Mas que é profundamente belo,
profundamente humano,
profundamente bom.
E fiquei muito tempo de olhos abertos.
Nem aqui,
nem em S. Martinho,
nem em Lisboa,
num Mundo,
onde as pessoas se amam sempre,
espontaneamente,
num Mundo,
de amor puro e inteiro
que bem poderia ser
o de toda a gente,
se as pessoas se deixassem
a si mesmas,
ser naturais como crianças.
Encontrei-me lá contigo,
porque era a ti que eu procurava.
Porque é a ti que sempre procuro
no meu bocadinho pessoal
desse Mundo maravilhoso,
tao diferente do outro,
- o de lá de fora -
e que se torna assim
tão sem importância,
que nele nem vale a pena pensar,
nem viver.
Sinto agora a cabeça oca.
Nao consigo ligar duas ideias,
e um cansaço estúpido,
invencível,
desce sobre mim.
Apetecia-me ter-te aqui,
poder segurar entre as minha,
as tuas mãos,
tão boas,
e tão meigas,
- gosto delas... -
Olhar-te,
ver-te sorrir,
não dizer nada,
e deixar o sono
vir devagarinho.
Seria tão bom!
Mas vou dormir.
E quando tiver acabado de escrever,
vou virar o candeeiro para a parede,
acender um cigarro,
olhar as coisas na penumbra,
e deixar-me adormecer devagarinho.
Prolongar ao máximo
este enlanguescer,
pensando em que
para além de tudo,
sou imensamente feliz.
Porque,
Só sendo-se feliz,
Se pode amar assim.
O meu quarto,
enche-se agora da tua imagem,
e tu estás,
nos meus livros,
nos meus olhos,
em todo o meu ser.
Fazes parte de mim,
do meu passado
e do meu futuro.
Nada te desalojará.
Porque tu,
não tens um lugar dentro de mim.
TU ESTÁS EM MIM.
Na pele,
nos olhos,
nas paredes,
enfim,
em todos os lugares.
Andas pelo meu sangue,
partilhas os meus pensamentos,
vives todas as minha horas,
povoas a minha solidao.
Quando leres este poema,
faz á noite,
como eu vou fazer agora.
Apaga as luzes,
deixa só uma, pequenina acesa,
para desenhar o contorno das coisas.
Deita-te comodamente,
descontrai-te,
olha para o que te cerca
e pensa que há,
lá longe,
- combatendo uma guerra estúpida,
sem sentido,
inócua, -
alguém para quem
representas muito.
Pensa que há,
um bocadinho desse alguém
em todas essas coisas que te cercam,
- no armário,
nas paredes duras,
nas cadeiras
e nos livros.
Porque,
essas cadeiras,
essas paredes,
os livros,
sao marcas da vida.
Sao existencias paralelas a nossa.
Pensa que,
vida,
existencia,
realidade,
são amor.
O amor dos homens que construíram.
O amor da matéria que se deu.
O amor de um Mundo que gira,
que gera,
que continua.
Um amor imenso e eterno.
Um amor que aumenta
na pequenez dos segundos breves
que passam
até se tornarem cósmicos.
Um amor bem grande
feito de outros amores.
E pensa que estou lá.
Nao numa dimensão mística,
em que não creio.
Antes numa transposição de mim,
nas coisas,
num dar-me que gostaria,
que envolvesse também as coisas,
as coisas simples,
feias,
e humildes,
tao importantes como as outras.
Até logo amor.
Eu sou feliz.
SÊ-O TAMBÉM COMIGO, SIM?!...

Mueda, Junho de 1971
Planalto dos Macondes
Cabo Delgado
Norte de Moçambique


In Memorium
Para ti,
no dia em que me deixaste definitivamente,
por vontade de Deus e contra a minha vontade.
Continuas presente,
estás presente,
em todas as coisas,
até nas lágrimas que agora caem.
Adeus amor, até... sempre.

8 comentários:

João Ramos Franco disse...

Ao ler a “Carta enviada de Mueda em 1971 – Poema de Amor”, mostra-me um sentimento que muito respeito e admiro, para mais que em mim é difícil de encontrar durante o tempo que estive na guerra colonial anos antes (saí em 1967), em Angola. Ainda bem que conseguiste escrever um “Poema de Amor”, numa situação da nossa vida em que é mais fácil escrever um de raiva e ódio.
Desse momento da minha vida um único retrato de amor “ A natureza e o Povo indígena”
Bem hajas por ter encontrado em ti espaço para este Poema
Um abraço amigo
João Ramos Franco

Anónimo disse...

Parabéns ao blogue do ERO, parabéns João Jales, por continuar a manter este blogue, independentemente do muito trabalho que te dá, parabéns pela contínua ligação que continuas a fazer entre os ex alunos do ERO e da Bordalo Pinheiro.
Embora nunca tenha sido aluno do ERO, não deixei de ter por lá muitos amigos, alguns dos quais reconheço nessa foto onde estão o Luis Rolim, o Hilário, o Rui Silva o Bento Loureço da Silva, o Zé Castro e mais alguns, e é com muito prazer que continuo a ler os diversos textos que a rapaziada da "minha época", aí publica. Boas referências para o "Naufrágio nos Mares do Talvai", do José Luis Reboleira, "Viagens a S. Martinho e à Nazaré", do Tó-Zé Hipólito, assim como este poema do meu ex-colega da Bordalo, A.Justiça.
Um abraço
J. Carlos Abegão

Anónimo disse...

Muito comovente e sincera esta descrição do estado de espírito do autor naquele momento.Curiosamente nunca aqui tinha aparecido nada sobre África nem a Guerra Colonial que eram assuntos tabus naquela altura mas sobre os quais já há certamente distanciamento suficiente para falarmos hoje.
Concordo com o Abegão,está aqui um dos bons posts do nosso blogue.Abraço.L

Anónimo disse...

Nunca esqueci o sofrimento- por antecipação - de um Pai que ia assistir ao embarque dos militares que partiam…Dizia ele que se andava a preparar para o dia da partida do seu próprio filho. Chorava sentidamente, acenava com um lenço branco…

Como se preparariam os jovens que partiam?
“Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.”
Trova do Vento que Passa - Manuel Alegre

A. Justiça, a minha Homenagem por ter partilhado connosco um “lugar” seu, de tão íntimo.

Manuela Gama Vieira

Anónimo disse...

Os sentimentos de um miúdo de 20 anos enviado contra a sua vontade e a dos seus, para ambientes diferentes e hostis. Afinal, a maior parte de nós fomos os tais soldados, de que o «império se orgulha» ou tão apenas bandos de garotos deslocados, roubados precocemente ao seu meio ambiente, por via da vontade de uns quantos loucos que nos governaram tanto tempo?Vou por esta última opção.
O Alfredo escrevia poesia. Eu acabava a leitura em Português dos Irmãos Karamazov. E será que a bela Nani, que dormia no jardim do seu quarto, daquela pequena vivenda térrea, ali à Sagrada Familia em Luanda o chegou a ler, depois de, com os seus pais, ter sido, ela, deslocada para Portugal em Julho de 75?

E perguntava-me vezes sem conta o que fazia naquelas latitudes, 4 anos depois do Alfredo. Mas pior que isso, perguntava-me porque razão todas as Nanis de Luanda tiveram de abandonar a terra onde nasceram?

Bravo amigo, pela coragem que tiveste ao tirar cá para fora momentos tão intimos. Como já aqui foi dito, um dos bons momentos deste blog.Abraço.

J.L. Reboleira Alexandre

Eva Mar. disse...

Considero-me com muita sorte por vários motivos. Tive uma infância feliz e cresci numa casa onde "sentir é permitido" e ler algo assim, escrito pela mão, e coração, do meu próprio pai enche-me a alma de orgulho. Obrigada, pai. :)

um beijinho grande.

Casa da Caldeira disse...

É tão bonito o seu poema Alfredo Justiça, e tão triste! Mas não podia deixar de o ser. Que sentimentos de impotência, de revolta e de medo a maioria dos jovens do meu tempo – na altura em que ele foi escrito tinha eu 19 anos – viviam, perante esse fantasma da ida para a guerra. Uma guerra longínqua e estúpida, uma empresa inglória, sem futuro, que ensombrava os dias, como uma ave agoirenta de grandes asas a ofuscar a luz dos nossos sonhos.
Que solidão, lá longe. E como soube traduzir tão bem neste poema esse sentir.
A distância, o desconhecido, a insegurança, o receio do futuro aproximava os jovens soldados daqueles que mais amavam e levavam-nos, a encurtar as distâncias através da expressão dos sentimentos, através da palavra, dizendo o que não diriam em circunstâncias menos adversas. Porque esse ainda era o tempo em que se ensinava aos meninos que: “Um homem não chora.”
Obrigada por partilhar connosco este momento tão comovente da sua vida e parabéns pela forma como escreve.

Ana Braga

Unknown disse...

E pronto pai... la me conseguiste por a chorar. E foi nos meus braços, debaixo do meu olhar que jamais esquecerei, sem o meu consentimento, que a mae partiu para descansar. Sim para descansar... apenas o corpo.. de resto, certeza tenho, que cmg está...para sempre

Poema

Mãe que Levei à Terra

Mãe que levei à terra
como me trouxeste no ventre,
que farei destas tuas artérias?
Que medula, placenta,
que lágrimas unem aos teus
estes ossos? Em que difere
a minha da tua carne?

Mãe que levei à terra
como me acompanhaste à escola,
o que herdei de ti
além de móveis, pó, detritos
da tua e outras casas extintas?
Porque guardavas
o sopro de teus avós?

Mãe que levei à terra
como me trouxeste no ventre,
vejo os teus retratos,
seguro nos teus dezanove anos,
eu não existia, meu Pai já te amava.
Que fizeste do teu sangue,
como foi possível, onde estás?

António Osório, in 'A Ignorância da Morte'

Amo-te mto meu pai... ja to disse imensas vezes.. mas ainda nao as suficientes.. AMO-TE