A publicação da crónica “Movida Caldense” provocou uma chuva de reacções , testemunhos e opiniões sobre o papel dos refugiados judeus da Segunda Guerra Mundial no modo de viver caldense durante as décadas de 50 e 60. O que todos contestaram foi a aparente desvalorização que a crónica fazia da passagem pelas Caldas dos refugiados, no final dos anos 30 e início dos anos 40, e da sua influência no modo de vida caldense. Facto tanto mais curioso quanto esse não era o tema da crónica nem o objectivo da sua republicação, já que se pretendia caracterizar a vida cultural da altura e a perda de um certo glamour das Caldas , uma vitalidade do passado entretanto afogada num crescimento urbanístico subordinado à lógica empresarial da construção civil.
Antes de dedicar uma crónica às mensagens e testemunhos que recebi, resolvi enquadrar esta questão reproduzindo alguns excertos de dois documentos que consultei, da autoria de João Bonifácio Serra, o primeiro, e de Dulce Soure e Marina Ximenes, o segundo. JJ
João B. Serra em Apresentação da obra Judeus em Portugal durante a II Guerra de Irene Pimentel, 2006, escreve:
“A partir de Junho de 1940, Portugal foi procurado por milhares de judeus provenientes dos países europeus sob ocupação consumada ou iminente das tropas alemãs. Entre Junhode 1940 e Maio de 1941, passaram pelo País cerca de 40.000 pessoas em fuga de Hitler e do Holocausto.
Não ficaram todos em Lisboa e Estoril – alguns, por exemplo, foi nas Caldas que procuraram hotel – e muitos permaneceram pouco tempo, até obterem passagem para um país de destino final, de preferência os Estados Unidos. O Estado português deixou claro que não estava disposto a aceitar a integração de judeus emigrados na sociedade portuguesa e, por isso, aos que aqui tivessem de permanecer algum tempo, até poderem sair, ficava-lhes vedado desenvolver as suas profissões. O Estado receava a perturbação nos costumes, nas mentalidades e no mercado de trabalho que a integração de judeus vindo dos países mais desenvolvidos da Europa inevitavelmente traria. E no entanto, passaram por Portugal, nestes anos, entre muita gente anónima, personalidades destacadas das ciências e das letras, da medicina, realizadores e actores de cinema, figuras políticas, historiadores, ensaístas, compositores alemães, austríacos, franceses, polacos, e de outras nacionalidades (gregos, luxemburgueses, holandeses dinamarqueses, etc.), expulsas dos seus países. As zonas de residência criadas foram: Caldas da Rainha, Ericeira, Figueira da Foz e Curia.
Socorrendo-se das memórias de Alexandre Babo, no livro recordam-se “as esplanadas da Avenida ou do Rossio”, em Lisboa, onde se viam “franceses, belgas, holandeses, judeus dos mais remotos lugares”, e em especial a pastelaria Suiça, à qual “já chamavam o “Bompernasse”, ali onde predominavam as mulheres (…) fumando em público (…). Tudo isto era um murro no estômago do provincianismo nacional. (…) Aquela gente aparentava outros hábitos, mais livres, mais naturais e abertos (…) sem olharem (elas) de soslaio os machos, sentadas nos cafés, nas cervejarias, nos passeios públicos, o que até então era apanágio exclusivo dos homes e de algumas mulheres ."
“Pelas esplanadas, sob largos chapeleirões de listas coloridas, as mesas alastram-se em formigueiros cosmopolitas. À volta, num pequeno espaço, ouve-se holandês, francês, inglês, polaco, checo e às vezes português (…). Elas são mais ruidosas, mais alegres,despreocupadas, em cabelo, farrapitos em molho no alto das cabeças loiras, fumam sempre, pernas traçadas num grande à vontade, mostrando o que se vê e o que se adivinha (…)” “O nosso Zé Povo embasbaca em frente dos grupos a admirar a civilização!”
A primeira notícia sobre a presença de refugiados nas Caldas surge (...) a 1 de Julho de 1940. Título “Ecos da Guerra – Os emigrados em Caldas da Rainha”. “Inesperadamente” – escreve-se na notícia – “automóveis estrangeiros começaram a parar nas ruas da cidade, enquanto muitos outros, atulhados de bagagens, se dirigiam para o sul. (…) Os hotéis ficaram cheios de estrangeiros: austríacos, ingleses, franceses, americanos, belgas e holandeses. (…) Gente estranha, de todos os credos políticos e de todas as religiões recolheram-se ao bom abrigo de um Portugal tranquilo, graças ao Estado Novo, a Carmona e a Salazar”.
Dulce Soure/Marina Ximenes em Marcas da II Guerra em Caldas da Rainha, exposição-colóquio,1998, escrevem:
A maioria dos refugiados não trabalhava e sentia, por isso, necessidade de ocupar o tempo excessivamente ocioso.
Adquiriram então o hábito de usufruir o sol no parque ou na praia da Foz do Arelho. “Íamos para o parque, sentávamo-nos ali, tomávamos o nosso cafezinho e, depois, vinham os estrangeiros nossos conhecidos. Sentavam-se ao pé de nós, conversávamos um bocado e às 6horas, 6h30 íamos para casa. Era uma vida estúpida…” (Madame Renée Costa e Silva)
Lentamente, foram-se integrando na sociedade e vida caldense, beneficiando do que a cidade lhes oferecia – o Parque, o Clube do Parque, as Termas. Em 1941, segundo uma notícia da Gazeta das Caldas, frequentaram esta estância 32 estrangeira, sendo 22 mulheres e 10 homens.
Também o Clube de Recreio abriu a porta a alguns destes estrangeiros, pessoas educadas e com traquejo social. A Comissão Administrativa do Clube, resolveu no dia 5 de Junho de 1943 “que além dos sócios do Recreio Clube, fossem feitos convites a pessoas estranhas àquele Clube, pessoas que a Comissão escolheria e determinaria (…).” (Livro de Actas das sessões da Comissão, pág.3.)
Dedicavam-se muito a actividades desportivas, sobretudo ao ténis. Organizavam-se, de Maio a Outubro, uma série de torneios onde portugueses jogavam ao lado de estrangeiros.
“Comecei a jogar ténis por causa das raparigas. O engenheiro Júlio Lopes, o filho, desafiou-me para jogar. Havia duas irmãs, Denise e Monique Dunlap, de origem francesa e tenistas razoáveis. Os estrangeiros, como não tinham nada que fazer, iam jogar ou à Foz nadar” (Sr. Fernando Venda).
Calda da Rainha não desconhecia a guerra. Pelo contrário, ela foi aqui mais vivida e sentida do que na maioria das localidades portuguesas.
Caldas da Rainha estremeceu certamente perante todo o movimento de gente estranha que esgotou os seus hotéis e pensões e introduziu uma nova dinâmica na cidade.
Os caldenses experimentaram, como todos os portugueses, os aumentos dos preços dos géneros essenciais, a escassez dos mesmos, os racionamentos, os incómodos das bichas e os exercícios de defesa civil do território. Mas na memória dos que viveram nesse tempo ficou muito mais. Ficou a convivência com os estrangeiros e a descoberta de novos costumes, por eles introduzidos.
Foram sobretudo as mulheres as grandes introdutoras de alterações na vida e mentalidade dos caldenses. Imitando o comportamento das estrangeiras, as mulheres portuguesas saíram de casa, foram para os cafés e esplanadas, tiraram as meias e os chapéus e fumavam nas ruas.
“(…)É engraçado porque a mulher portuguesa nessa altura ficava em casa, aprendia costura, aprendia a falar francês e a tocar piano e pouco mais. (…)Os namoros eram de janela! Eu achei um piadão àquilo porque nunca tinha visto. (…)Eu acho que as Caldas foi uma terra que se modernizou mais depressa que as outras terras por causa dos estrangeiros” (Mme Renée Costa e Silva).
Por aqui passou a nata cultural e financeira da Europa. “Lembro-me que foi a modificação do ambiente social da cidade em relação àquela gente, que era gente educada, que era gente com uma vivência grande numa Europa modernizada” (Dr. Ernesto Moreira).
Antes de dedicar uma crónica às mensagens e testemunhos que recebi, resolvi enquadrar esta questão reproduzindo alguns excertos de dois documentos que consultei, da autoria de João Bonifácio Serra, o primeiro, e de Dulce Soure e Marina Ximenes, o segundo. JJ
João B. Serra em Apresentação da obra Judeus em Portugal durante a II Guerra de Irene Pimentel, 2006, escreve:
“A partir de Junho de 1940, Portugal foi procurado por milhares de judeus provenientes dos países europeus sob ocupação consumada ou iminente das tropas alemãs. Entre Junhode 1940 e Maio de 1941, passaram pelo País cerca de 40.000 pessoas em fuga de Hitler e do Holocausto.
Não ficaram todos em Lisboa e Estoril – alguns, por exemplo, foi nas Caldas que procuraram hotel – e muitos permaneceram pouco tempo, até obterem passagem para um país de destino final, de preferência os Estados Unidos. O Estado português deixou claro que não estava disposto a aceitar a integração de judeus emigrados na sociedade portuguesa e, por isso, aos que aqui tivessem de permanecer algum tempo, até poderem sair, ficava-lhes vedado desenvolver as suas profissões. O Estado receava a perturbação nos costumes, nas mentalidades e no mercado de trabalho que a integração de judeus vindo dos países mais desenvolvidos da Europa inevitavelmente traria. E no entanto, passaram por Portugal, nestes anos, entre muita gente anónima, personalidades destacadas das ciências e das letras, da medicina, realizadores e actores de cinema, figuras políticas, historiadores, ensaístas, compositores alemães, austríacos, franceses, polacos, e de outras nacionalidades (gregos, luxemburgueses, holandeses dinamarqueses, etc.), expulsas dos seus países. As zonas de residência criadas foram: Caldas da Rainha, Ericeira, Figueira da Foz e Curia.
Socorrendo-se das memórias de Alexandre Babo, no livro recordam-se “as esplanadas da Avenida ou do Rossio”, em Lisboa, onde se viam “franceses, belgas, holandeses, judeus dos mais remotos lugares”, e em especial a pastelaria Suiça, à qual “já chamavam o “Bompernasse”, ali onde predominavam as mulheres (…) fumando em público (…). Tudo isto era um murro no estômago do provincianismo nacional. (…) Aquela gente aparentava outros hábitos, mais livres, mais naturais e abertos (…) sem olharem (elas) de soslaio os machos, sentadas nos cafés, nas cervejarias, nos passeios públicos, o que até então era apanágio exclusivo dos homes e de algumas mulheres ."
“Pelas esplanadas, sob largos chapeleirões de listas coloridas, as mesas alastram-se em formigueiros cosmopolitas. À volta, num pequeno espaço, ouve-se holandês, francês, inglês, polaco, checo e às vezes português (…). Elas são mais ruidosas, mais alegres,despreocupadas, em cabelo, farrapitos em molho no alto das cabeças loiras, fumam sempre, pernas traçadas num grande à vontade, mostrando o que se vê e o que se adivinha (…)” “O nosso Zé Povo embasbaca em frente dos grupos a admirar a civilização!”
A primeira notícia sobre a presença de refugiados nas Caldas surge (...) a 1 de Julho de 1940. Título “Ecos da Guerra – Os emigrados em Caldas da Rainha”. “Inesperadamente” – escreve-se na notícia – “automóveis estrangeiros começaram a parar nas ruas da cidade, enquanto muitos outros, atulhados de bagagens, se dirigiam para o sul. (…) Os hotéis ficaram cheios de estrangeiros: austríacos, ingleses, franceses, americanos, belgas e holandeses. (…) Gente estranha, de todos os credos políticos e de todas as religiões recolheram-se ao bom abrigo de um Portugal tranquilo, graças ao Estado Novo, a Carmona e a Salazar”.
Dulce Soure/Marina Ximenes em Marcas da II Guerra em Caldas da Rainha, exposição-colóquio,1998, escrevem:
A maioria dos refugiados não trabalhava e sentia, por isso, necessidade de ocupar o tempo excessivamente ocioso.
Adquiriram então o hábito de usufruir o sol no parque ou na praia da Foz do Arelho. “Íamos para o parque, sentávamo-nos ali, tomávamos o nosso cafezinho e, depois, vinham os estrangeiros nossos conhecidos. Sentavam-se ao pé de nós, conversávamos um bocado e às 6horas, 6h30 íamos para casa. Era uma vida estúpida…” (Madame Renée Costa e Silva)
Lentamente, foram-se integrando na sociedade e vida caldense, beneficiando do que a cidade lhes oferecia – o Parque, o Clube do Parque, as Termas. Em 1941, segundo uma notícia da Gazeta das Caldas, frequentaram esta estância 32 estrangeira, sendo 22 mulheres e 10 homens.
Também o Clube de Recreio abriu a porta a alguns destes estrangeiros, pessoas educadas e com traquejo social. A Comissão Administrativa do Clube, resolveu no dia 5 de Junho de 1943 “que além dos sócios do Recreio Clube, fossem feitos convites a pessoas estranhas àquele Clube, pessoas que a Comissão escolheria e determinaria (…).” (Livro de Actas das sessões da Comissão, pág.3.)
Dedicavam-se muito a actividades desportivas, sobretudo ao ténis. Organizavam-se, de Maio a Outubro, uma série de torneios onde portugueses jogavam ao lado de estrangeiros.
“Comecei a jogar ténis por causa das raparigas. O engenheiro Júlio Lopes, o filho, desafiou-me para jogar. Havia duas irmãs, Denise e Monique Dunlap, de origem francesa e tenistas razoáveis. Os estrangeiros, como não tinham nada que fazer, iam jogar ou à Foz nadar” (Sr. Fernando Venda).
Calda da Rainha não desconhecia a guerra. Pelo contrário, ela foi aqui mais vivida e sentida do que na maioria das localidades portuguesas.
Caldas da Rainha estremeceu certamente perante todo o movimento de gente estranha que esgotou os seus hotéis e pensões e introduziu uma nova dinâmica na cidade.
Os caldenses experimentaram, como todos os portugueses, os aumentos dos preços dos géneros essenciais, a escassez dos mesmos, os racionamentos, os incómodos das bichas e os exercícios de defesa civil do território. Mas na memória dos que viveram nesse tempo ficou muito mais. Ficou a convivência com os estrangeiros e a descoberta de novos costumes, por eles introduzidos.
Foram sobretudo as mulheres as grandes introdutoras de alterações na vida e mentalidade dos caldenses. Imitando o comportamento das estrangeiras, as mulheres portuguesas saíram de casa, foram para os cafés e esplanadas, tiraram as meias e os chapéus e fumavam nas ruas.
“(…)É engraçado porque a mulher portuguesa nessa altura ficava em casa, aprendia costura, aprendia a falar francês e a tocar piano e pouco mais. (…)Os namoros eram de janela! Eu achei um piadão àquilo porque nunca tinha visto. (…)Eu acho que as Caldas foi uma terra que se modernizou mais depressa que as outras terras por causa dos estrangeiros” (Mme Renée Costa e Silva).
Por aqui passou a nata cultural e financeira da Europa. “Lembro-me que foi a modificação do ambiente social da cidade em relação àquela gente, que era gente educada, que era gente com uma vivência grande numa Europa modernizada” (Dr. Ernesto Moreira).
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Agradeço aos autores dos textos aqui transcritos a amável colaboração, ressalvando que é da minha exclusiva responsabilidade a escolha dos excertos apresentados.
Recordo que o centro da questão é a maior ou menor importância da presença dos refugiados numa determinada forma de viver nas Caldas nas décadas de 50 e 60 vs. outros factores como o Termalismo e os visitantes que atraiu, a existência de um Hospital e um Quartel, os veraneantes de Verão (Foz do Arelho e S. Martinho) ou outros que nos queiram apresentar.
Recordo que o centro da questão é a maior ou menor importância da presença dos refugiados numa determinada forma de viver nas Caldas nas décadas de 50 e 60 vs. outros factores como o Termalismo e os visitantes que atraiu, a existência de um Hospital e um Quartel, os veraneantes de Verão (Foz do Arelho e S. Martinho) ou outros que nos queiram apresentar.
Como disse recebemos aqui no Blog várias reacções sobre este assunto, que irei transcrever numa próxima crónica. Quem quiser ainda pronunciar-se sobre este tema pode ainda escrever-nos para ex.alunos.er@gmail.com , enviando testemunhos, opiniões, documentos, fotografias, tudo o que entender relevante.
1 comentário:
Na 1ª foto os rapazes, um a cada ponta, são o meu Pai (Leonel Cardoso) e o Fernando Padre.
Tive de 'roubar esta foto ! Obrigado. Nené Cardoso
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