ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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A vida das minhas canções ( Take 1)



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Ajustei as molas dos meus colarinhos. Naquela altura todos os meus amigos tinham aqueles colarinhos elegantes presos com botões. Eu não.
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No sentido de pelo menos reproduzir a forma, tinha pedido à minha mãe que prendesse os colarinhos das minhas camisas com molas; pareciam, mas não eram, iguais aos dos meus amigos.
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Um pullover conveniente, mas que deveria parecer ridiculo face à temperatura ambiente, compunha um pouco mais a coisa, escondendo da abastada curiosidade das minhas amigas o fole que a fralda exageradamente larga produzia; sem ele, eu estava muito longe da forma sensual que as camisas cintadas produziam nos troncos dos meus amigos; com ele, estava muito perto duma qualquer forma banal de palermice. Terá sido provávelmente por tudo isto que ainda hoje não nutro particular simpatia por estas peças de roupa ...
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Mas o que eu queria mesmo era que as luzes, já que se não podiam apagar, se tornassem de alguma forma veladas (éramos na altura muito bons em conseguir assinaláveis reduções na luminosidade em todos os candeeiros que os valores maternais colocavam com profusão, quanto a nós excessiva, na sala do meu amigo Nandim), para discretamente poder tirar o tal pullover e ficar finalmente mais à vontade.
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Sacudi o cabelo para o outro lado da testa, sem tirar os olhos dela.
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Em 1968 eu tinha imenso cabelo, e na época, desconhecendo o que o futuro me viria a reservar, desprezava-o com sobranceria e lamentava muitas vezes interiormente o incómodo que me provocava quando escorria desordenado e comprido, tapando-me parcialmente os olhos, obrigando-me de forma ciclica a proceder ao seu desvio para o lado oposto. Na altura considerava que não tinha tantos olhos como cabelo, mas mostrá-los, aos olhos, era absolutamente imperioso, fazia parte daquela impressão fosca que a luz velada podia transmitir de mim, e além disso eu achava que tudo podia ser importante para que ninguém se focasse muito nos meus colarinhos.
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O Nandim começou a abrir o gira discos (era um belo exemplar, tipo mala, com o prato de um lado e o som a sair pela outra tampa), e, com a experiência adquirida em várias sessões anteriores, a dividir os discos em rápidos e lentos.
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Nada podia ser deixado ao acaso, pensei eu enquanto o ajudava na tarefa, mantendo um olho nas capas dos singles que o pai do Nandim lhe trazia de Inglaterra, e que eu conhecia de trás para a frente das tardes passadas lá em casa, após uma gazeta ou outra às aulas da tarde do Camões, e o outro no outro lado da sala onde ela e as amigas falavam em voz baixa, olhando-nos de soslaio, achava eu, com demasiada insistência para os meus colarinhos out of fashion.
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Para disfarçar arrancámos com qualquer coisa rápida. Era sempre assim, ficavamos a olhar uns para os outros com um ar vagamente apalermado, à época moderno, marcando o ritmo a tempo e destempo, provávelmente parecendo divertidos, se a memória me não atraiçoa. Eu, mantinha sempre que podia os olhos nela não fosse ela ainda não ter reparado nisso; contudo, os nossos olhares cruzavam-se com uma timidez deliciosamente inocente, acho eu agora, parecia que esvoaçavam ao acaso pela sala de forma desajeitada, até colidirem aqui e ali, ora em embates leves de passagem ora em colisões mais intensas, provocando danos colaterais mais importantes, acelerando ainda mais a música na minha cabeça, transtornando-me os sentidos com uma doçura subtil.
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O meu mundo não era realmente aquele. Por mais que o Nandim me colocasse à vontade, e com ele eu estava absolutamente à vontade, afinal já tinha percebido nas nossas brincadeiras e gazetas que era feito da mesma massa que eu, mas enfrentar aquele numeroso circulo das suas relações intimidava-me. Intimidavam-me os nomes, os apelidos mais ou menos sonantes, as roupas caras, o cheiro etéreo que até enjoava por vezes, os relógios, os sapatos... era, confesso, um pouco constrangedor às vezes chamarem-me apenas pelo primeiro nome. Afinal ali ninguém se chamava só Silva.
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Mas ao mesmo tempo havia ali um fascinio qualquer que me fazia sempre voltar. Havia e estava agora do outro lado da sala.
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A tarde entardecia e era urgente mudar de estratégia. A coragem afinal cresce com a escuridão.
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Avancei determinado para a mala gira-discos e escolhi um; pedi ao Nandim para o pôr a seguir, ele assentiu...
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Começaram uns acordes mornos de viola, olhei para ela do outro lado da sala. Cohen, mais rápido do que eu, começou a cantar mal me dando tempo para chegar ao meu objectivo; havia sempre uma espécie de jogo de desmarcações, múltiplos destinos cruzados e descruzados em meia dúzia de segundos, que me estorvaram o caminho mas lá cheguei ao meu destino.
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Admito que, neste enquadramento, ela se devia chamar Suzana mas, como nem tudo é perfeito nesta história, não se chamava; aliás devo confessar que nem me consigo recordar do seu nome (afinal passaram-se quarenta e um anos), mas também não me parece particularmente importante.
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Tinha a cintura dela na minha mão, e o seu cheiro embriagou-me ainda mais que a cor do cabelo, que de resto me roçava pelo nariz fazendo-mo franzir amiúde, balançando à beira do espirro por várias vezes. Não nos mexíamos muito porque não era preciso, eu trauteava muito baixinho as palavras da canção que sabia há muito de cor, sentia o cabelo dela no meu rosto e, claro, por momentos senti-me feliz.
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Fez-me perguntas dificeis, quem eu era, onde morava, se o meu pai trabalhava com o do Nandim, pedi-lhe para não interromper o Cohen, olhei-a com um ar vago e fiz de conta que me concentrava outra vez na canção.
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“...and you want to travel with her, and you want to travel blind” cantámos, o Cohen e eu.
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Apertou-me mais a mão, o que me apertou o coração. Que caminhos eram afinal aqueles que começava a percorrer ? E onde me iriam conduzir ? O Nandim enviou-me um sorriso malandro junto à mala do gira-discos. Fechei os olhos, ajustei-me à cintura dela e deixei-me sonhar.
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...”for she touched your perfect body with her mind.” terminou Cohen.
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Despertei de repente para a canção da minha vida. Naquele dia, claro.
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Modigliani
27.06.2009
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C O M E N T Á R I O S
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Suzana disse...
Adorei, adorei, adorei!!!
Suzana
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Julinha disse:
Que lindo! Adorei ler, reler e deixar-me levar ao som da canção do Cohen... Obrigada
Júlia
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João Ramos Franco disse...
A facilidade que à primeira vista nos parece haver em tecer comentários a cada texto que nos aparece, neste capitulo do Blogue, desfaz-se ao pensarmos que do outro lado, quem os escreve, é alguém noutra geração e por consequência, outro enquadramento social.
Tentando ser verdadeiro nas palavras que escrevo, tento transportar-me no tempo e enquadrar as reacções perante a época em que se insere.No entanto encontro alguns aspectos que são horizontais a todos nós: a preocupação com a aparência e o nosso sentir perante a mesma, o modo como partilhamos a amizade e uma certa ansiedade perante rapariga de quem gostamos…
Não estamos num campeonato para ver quem melhor consegue descrever a sua passagem em cada um dos temas, mas o sentir de cada um de nós perante eles parece-me ser o mais interessante que tenho colhido nas histórias que vou lendo. Em cada texto vou encontrando um “eu”, e acrescentando modos de sentir e estar ao meu conhecimento, sobre os colegas do ERO que não conheci, mas que por as suas palavras vou encontrando.
A canção, SUZANNE de Leonard Cohen, é que foge à minha época de estudante, mas é muito bem escolhida e enquadra-se com o bom retrato em que ele nos consegue evolver.Um abraço amigo
João Ramos Franco
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J.L. Reboleira Alexandre disse...
Não conheço a Suzana, que diz e repete, adorei, adorei. Mas «conheço» bem a história da Suzanne, senhora canadiana francesa que serviu de musa a esta obra magnifica de Leonard, que ouvimos pela primeira vez noutros tempos, noutros sítios, e continuamos a ouvir até à exaustão.
Cada vez que me cruzo com o poeta nas tardes de Verão na Rue Saint Denis aqui mesmo ao lado do escritório, seja quando vou tomar uma bica numa das suas inúmeras esplanadas, seja quando, como ele, faço um pequeno passeio para descomprimir, dou-me comigo a meditar: Será mesmo verdade que é este judeu de aspecto enigmático, altivo e levemente aristocrático, praticamente desconhecido da maioria na terra onde nasceu, que me oferece a música que eu mais aprecio desde que me conheço?
Deve ser, pois num local bem especial lá em casa, pode ver-se a dedicatória que fez à minha companheira já há muito tempo, éramos nós umas «crianças»:
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«wishes all good to Maria» from Leonard Cohen.
Montreal 1985
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Inês Figueiredo disse:
O título trocado é sugestivo: Modigliani terá outras canções com Vida. Outros Takes apetitosos...
Olha-me para esta jóia (escolhida ao acaso, porque são tantas jóias): 'Fez-me perguntas dificeis, quem eu era, onde morava, se o meu pai trabalhava com o do Nandim, pedi-lhe para não interromper o Cohen, olhei-a com um ar vago e fiz de conta que me concentrava outra vez na canção.'
Modigliani só pode ser um realizador de filmes, se não que mal empregado!...
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João Jales disse:
"Suzanne Takes You Down" era originalmente um poema, publicado em 1966, que Cohen dedicou a Suzanne Verdal, mulher do escultor Armand Vaillancourt. Depois de musicado pelo poeta, foi gravado e celebrizado por Judy Collins.
Cohen e Suzanne nunca tiveram qualquer relação amorosa porque, quando se conheceram, ele era um poeta obscuro e ela uma das mulheres mais ricas e glamorosas do Jet Set de Montreal na década de 60. Quando se reencontraram, trinta anos depois, Cohen era um dos mais respeitados artistas do final do séc. XX e ela uma sem-abrigo a dormir num automóvel abandonado em Venice (Califórnia), que ele não reconheceu…
Esta é uma das mais belas canções de amor que conheço, evocada num texto sem dúvida romântico e nostálgico, mas onde transparece uma realidade social estratificada e preconceituosa onde as aparências reinavam. Vivemos numa sociedade diferente quarenta anos depois?
JJ
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Isabel Cx disse:
Gostei imenso deste texto, acompanhado da voz inesquecível do Leonard Cohen!
Adorei a honestidade com que o Autor me leva a esta sala, onde tive o privilégio de presenciar e sentir a magia deste ingénuo encontro de jovens adolescentes e o despertar de sentimentos tão amorosos entre eles!Como se ali estivesse.Fascinante esta descrição dos olhares..a timidez...as luzes, a preocupação dos colarinhos!A música é linda !Realmente o nome tinha pouca importância perante emoções tão especiais...Até podia ser Suzana.
beijinhos Isabel Cx
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Luisa disse...
Só hoje li mas não queria deixar de dizer que gostei muito do ambiente em que se passa esta história.Muito romântico realmente.
A canção do Leonard Cohen é muito bonita e foi boa ideia mostrar a letra.
Luisa

4 comentários:

Anónimo disse...

Adorei, adorei, adorei!!!

Suzana

João Ramos Franco disse...

A facilidade que à primeira vista nos parece haver em tecer comentários a cada texto que nos aparece, neste capitulo do Blogue, desfaz-se ao pensarmos que do outro lado, quem os escreve, é alguém noutra geração e por consequência, outro enquadramento social. Tentando ser verdadeiro nas palavras que escrevo, tento transportar-me no tempo e enquadrar as reacções perante a época em que se insere.
No entanto encontro alguns aspectos que são horizontais a todos nós: a preocupação com a aparência e o nosso sentir perante a mesma, o modo como partilhamos a amizade e uma certa ansiedade perante rapariga de quem gostamos…
Não estamos num campeonato para ver quem melhor consegue descrever a sua passagem em cada um dos temas, mas o sentir de cada um de nós perante eles parece-me ser o mais interessante que tenho colhido nas histórias que vou lendo. Em cada texto vou encontrando um “eu”, e acrescentando modos de sentir e estar ao meu conhecimento, sobre os colegas do ERO que não conheci, mas que por as suas palavras vou encontrando.
A canção, SUZANNE de Leonard Cohen, é que foge à minha época de estudante, mas é muito bem escolhida e enquadra-se com o bom retrato em que ele nos consegue evolver.
Um abraço amigo
João Ramos Franco

J.L. Reboleira Alexandre disse...

Não conheço a Suzana, que diz e repete, adorei, adorei. Mas «conheço» bem a história da Suzanne, senhora canadiana francesa que serviu de musa a esta obra magnifica de Leonard, que ouvimos pela primeira vez noutros tempos, noutros sítios, e continuamos a ouvir até à exaustão.

Cada vez que me cruzo com o poeta nas tardes de Verão na Rue Saint Denis aqui mesmo ao lado do escritório, seja quando vou tomar uma bica numa das suas inúmeras esplanadas, seja quando, como ele, faço um pequeno passeio para descomprimir, dou-me comigo a meditar:

Será mesmo verdade que é este judeu de aspecto enigmático, altivo e levemente aristocrático, praticamente desconhecido da maioria, na terra onde nasceu que me oferece a música que eu mais aprecio desde que me conheço ?

Deve ser, pois num local bem especial lá em casa, pode ver-se a dedicatória que fez à minha companheira já há muito tempo, éramos nós umas «crianças»:

«wishes all good to Maria» from
Leonard Cohen. Montreal 1985.

Anónimo disse...

Só hoje li mas não queria deixar de dizer que gostei muito do ambiente em que se passa esta história.Muito romântico realmente.
A canção do Leonard Cohen é muito bonita e foi boa ideia mostrar a letra.
Luisa