ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
.
.

BANDA DESENHADA

por F J Sousa








Confesso que venho ao blog como vou à missa: raramente, e em recolhimento. Das missas estamos falados, mas a epifania que foi a descoberta dos livros aos quadradinhos continua a ser um momento que me marcou indelevelmente, e que, como qualquer epifania que se preze,moldou a minha vida.
.
Foi num Especial do Cavaleiro Andante, que aprendi a ler, obra e graça da minha mãe, que achou a Banda Desenhada melhor que a Cartilha Maternal de João de Deus para iniciação às primeiras letras. Lembro-me só que era de cowboys, o que já não é mau, atendendo a que tinha 6 anos, e já passou algum tempo. O professor Bonacho, tão bom como professor e pedagogo quanto severo como mestre, e que além do mais, sabia que a escola é para ensinar(…), deu continuidade à aprendizagem, e deixava-me ler esses textos ímpios, com mais bonecos que palavras, enquanto os meus colegas andavam pelo B-A – BA.
.
A começar assim, o resultado só podia ser o que foi: tornei-me num viciado em livros, a necessitar de desintoxicação, entro em carência se não tenho que ler à mão, nem que sejam a lista telefónica (não é exagero, é mesmo assim).
.
O dealer que se seguiu foi o meu pai, que me abastecia com o Falcão (com histórias magnificamente ilustradas, de origem inglesa), religiosamente, ao sábado, à hora do almoço. Seguiu-se o Jacto, de que poucos se lembrarão, em tamanho Diário de Notícias antigo, acabou o Cavaleiro Andante, o Mundo de Aventuras ia mudando de formato, ora maior, ora mais económico. E todos, enfim, os que sobreviveram, estão por aí pelas estantes, para “consultas” eventuais, e mergulhos nos paraísos artificiais da minha infância e juventude real. Porque a outra infância e juventude, da escola e do dia a dia, era para mim cinzenta e chata, uma alternativa pobre e sem o sabor da imaginação, da liberdade e da aventura.
.
Olhando (muito…) para trás, agradeço aos meus pais esse legado, o melhor que me poderiam ter deixado: a única liberdade que existe é a do pensamento, qualquer outra é Matrix, ou ilusão (para que vejam que sigo as tendências, e que, além de católico e de gostar de fado, coisas que agora estão na moda, também tenho um lado budista, senão zen, como qualquer pósmoderno com pendor new age que se preze).
.
Os quadradinhos abriram-me a sede de ler, e os Cinco, Emílio Salgari, Júlio Verne foram prelúdios para outras aventuras, com o Colin de Boris Vian a ter o sabor a espuma dos dias de praia e das noites ternas das paixões adolescentes. Mas a grande literatura, a ilustrada, nunca perdeu o seu lugar, o do eterno partir ao sol poente do Lucky Luke.
.
Creio que o Corto Maltese foi um dos grandes responsáveis pelo meu período marítimo. No Mediterrâneo, cheguei a Alexandria com Cavafis, que me foi apresentado pelo meu autor preferido, Lawrence Durrell, magnífico autor de Banda Desenhada não figurativa.
.
Continuei a aprender, e no mar aprendi que os marinheiros, à imagem dos alter egos Hugo Pratt/ Corto Maltese, se inventam horizontes perdidos, como forma de vencer a monotonia dos oceanos, e procuram sempre a sua ilha nos mares do sul. E lêem, lêem muito, de tudo, todos a bordo lêem BD, ficção, ensaio ou poesia. Cada navio é uma biblioteca flutuante, onde os livros circulam, se transmitem de mão em mão, com recomendações e anotações. Os marinheiros leram Conrad, sabiam quem era Lord Jim, antes de Pratt o ter frequentado. Na prisão que é o navio, ler é ser livre, sair, ir a todos os lados. Quem por lá anda, ou andou, sabe que o chegar nunca é bastante, a realidade é a viagem. Talvez por isso, a maioria nunca mais seja capaz de a abandonar, a viagem.
.
No anos 60, a escola belga, a linha clara, impôs-se, e o que começara com Tintin e foi resistência com E.P. Jacobs, pai de Blake and Mortimer, andou pelos Michel Vaillant e outros Buck Danny, defensores do que muito bem entendiam, nomeadamente do american way of life, a quem volto, sempre que quero desopilar.
Gaston Lagaffe (não confundir…) foi 68 huitard avant la lettre, profeta da derrisão como forma de subverter o que está, libertário de forma natural e não violenta, embora, quanto a este ponto, me surjam algumas dúvidas. E mais subversivo que o Grand Duduche, só a Hara Kiri, revista também de BD, inqualificável, escatológica, monumento ao mau gosto e ao politicamente incorrecto, de tal modo que os seus mentores estariam hoje afogados em processos, provenientes de todas as cabeças bem pensantes, de todos os quadrantes socialmente responsáveis, se não presos pela ASAE…
.

Novos autores e correntes foram aparecendo, e Tardi, com Adèle Blanc Sec, entre outros, é pacifista, denunciador dos militarismos e do sem sentido de todas as guerras, mesmo das justas.
.
Tudo isto se lia por cá, à medida que ia aparecendo, menos a Hara Kiri, porque, convenhamos… Ainda está por escrever a influência subliminar da Banda Desenhada enquanto subvertora dos valores do Estado Novo, mas, na altura, eu não estava minimamente interessado na análise semiótica, ou na desconstrução de cada quadradinho. E continuo a não estar muito. Eram, continuam a ser, para mim, um todo, histórias com princípio meio e fim, com os seus heróicos anti-heróis.
.
Quanto à BD hoje, não me revejo na estética graffitti, embora a tenha acompanhado com interesse, desde o início. Como também não na zapper (tipo MTV), mas já vou gostando das manga (BD japonesa).
.
Resumindo, que isto já vai longo demais, tornei-me um reaccionário na Banda Desenhada, continuo um cromo dos livros, e, à minha cabeceira, os livros mais sérios que tenho são as BD’s. Os outros, são literatura inacabada: faltam as imagens…
.
Fernando Jorge Sousa
.

1 comentário:

laurinda disse...

Memórias despoletam memórias e este texto fez-me recordar de como descobri a leitura: com um "livro de quadradinhos".

Não me lembro de existirem outros livros lá em casa. Um dia encontrei numa gaveta um pequeno livro de banda desenhada "de cowboys" :). Lembro-me de ter olhado para os bonecos, dos quais recordo umas cenas passadas num comboio, e de ter percebido que aquelas letras eram aquilo que eu andava arduamente a aprender na escola. As coisas começaram a fazer sentido e também eu me tornei uma viciada na leitura.

A banda desenhada dá-me prazer por fazes, como os policiais... (Interessante! Deixei de achar graça e de ler outros policiais desde que descobri a Patricia Higsmith e a Ruth Rendell..)

Os livros da biblioteca das caldas da Rainha foram os meus educadores. Cinco de cada vez! Devorava-os às escondidas e, ainda hoje, tenho um pouco essa "culpa" da leitura por prazer. Como se estivesse a roubar o tempo destinado a algo mais pragmático, que nessa altura me era exigido.

Tenho um vício um pouco estranho: quando um livro me enche realmente as medidas, por vezes não leio o fim. Guardo como um tesouro de que precise para me curar de um dia mau.

Laurinda