Durante semanas desfiámos aqui evocações das Caldas de outros tempos. Recordamos histórias que, afinal, não esqueceramos e reconstituimos laços de cumplicidade que deixaram marcas. Demos testemunho dos locais onde crescemos.
De um modo geral, os nossos depoimentos foram serenos. Podem talvez acusar-nos de termos ocultado situações menos felizes ou apontar-nos uma excessiva benevolência connosco próprios. Mas não somos os “contentinhos” que passam pela vida sem se deterem no mundo que os interpela. Também não temos que carregar todas as dores do que não correu bem. Decidimos encarar o nosso passado com uma leve distância bem humorada. Penso que o conseguimos. O ERO já passou à história e fez jus à tranquilidade. Por isso, à primeira (e única) tentativa de toldar o ambiente, reagimos com vigor.
Obtivemos assim uma boa amostra de pontos de encontro devidamente comentados. Alguns faziam parte da herança das gerações anteriores. Como na canção da Elis Regina, seguimos aí os passos dos nossos pais. Alguns outros fomos nós a descobri-los, a inventá-los. Houve descoberta sempre que fomos ao encontro de outros grupos, de outros espaços, distintos dos que nos legaram as gerações precedentes. Houve invenção sempre que transmitimos novos valores ao património que nos legaram, ou usámos a imaginação para criar novas possibilidades. Conseguimos, por estas vias, multiplicar os pontos de encontro. Como no milagre das bodas de Canaan, dirão os mais íntimos das Escrituras. Como no caso do macaco que do rabo fez navalha e da navalha fez sardinha, observarão os que cultivam saberes de lengalenga.
Prescrutando os depoimentos acumulados no blogue, concluimos que falar dos antigos alunos do Externato Ramalho Ortigão como se um todo homogéneo se tratasse pode induzir em erro. Houve descontinuidades no tempo, aliás notadas pelo João Jales na história do ERO que aqui publicou. Há um ambiente nos anos 50 que difere significativamente do dos anos 60. Há uma mudança nos costumes em finais da década de 60 que ressalta claramente dos textos e das imagens. Aquela fotografia de alunos do ERO reunidos num restaurante de S. Martinho do Porto, em 1962, é eloquente - reunião de rapazes, com a presença de professores, todos de fato e gravata. Que distância abissal separa este grupo das fotografias da viagem de finalistas de 1971/72, menos de uma década volvida - aqui rapazes e raparigas, vestidos de forma prática, em atitudes descontraídas, sem a presença dos professores. Ao ler muitas das histórias narradas pelos participantes maioritários do blogue, seis a dez anos mais novos do que eu, perguntei muitas vezes a mim próprio se as Caldas e o ERO a que se referiam seriam os meus.
Um dos aspectos em que as mudanças civilizacionais dos finais da década de 60 mais se fizeram sentir foi nas diferenças de comportamento entre géneros. As raparigas tinham, em geral, movimentos muito mais limitados que os rapazes nos anos 50 e primeira metade da década de 60, as suas saídas de casa tinham que ser justificadas caso a caso, e os seu pontos de encontro eram restringidos pela família e pelo ambiente social. Na transição dos anos 60 para 70, estes padrões foram postos em causa, muitas das anteriores barreiras familiares e sociais foram abatidas, os pontos de encontro para rapazes e raparigas tornaram-se mais abertos e intercomunicáveis, e até partilhados.
O grupo de alunos do ERO também não é um grupo socialmente homogéneo, embora, como seria de esperar, sempre tenham predominado no colégio os jovens oriundos das classes médias da cidade. Afinal tratava-se de um estabelecimento que preparava para o acesso à Universidade e, até muito tarde no século XX, a Universidade manter-se-ia como uma área de ingresso socialmente muito restrito. Mas também aqui, na década de 60, se iniciou um movimento lento de mudança, com famílias de menor rendimento e menor capital cultural a fazerem um enorme esforço para colocar os seus filhos num Curso Superior. Nas Caldas, onde não havia liceu, esse esforço foi certamente muito mais exigente. De qualquer forma, a frequência do colégio reflectiu as mudanças no mundo rural e nas relações entre mundo rural e urbano. Vários depoimentos sinalizam a presença de jovens que fazem regularmente o percurso entre uma aldeia e a cidade. No meu caso, essa possibilidade foi concretizada pelo próprio Externato, que montou um serviço de transporte para os estudantes oriundos das freguesias do nordeste do concelho.
Houve quem questionasse a tendência de alguns bloguistas referirem pontos de encontro mais ou menos exclusivos de certos estratos sociais, como se se tratassem de locais frequentados por todos os jovens. Evidentemente que há jovens e jovens e que, como defendia o meu Mestre Adérito Sedas Nunes, a condição de jovem oculta por vezes as fracturas sociais. Entre os jovens que se viram forçados a terminar os seus estudos na escolaridade primária obrigatória, os que se matricularam na Escola Comercial e Industrial para tirar um curso de serralheiro ou electricista ou mesmo comercial, e os que se matricularam no liceu como degrau para a Universidade, existiam capacidades económicas, expectativas de vida e visões do mundo muito afastadas. Pontos de encontro igualmente diferenciados, poucos traços de união.
Mas os depoimentos do blogue também mostram que estes mundos paralelos estavam a sofrer transformações e os corredores entre eles a alargarem-se sob a pressão de um número crescente de jovens que neles transitava. No final da década de 60, começaram a chegar às Caldas os prenúncios de uma cultura global que já foi designada por “jeans e rock”. Essa cultura, inicialmente partilhada por reduzidos sectores urbanos, ampliou-se rapidamente, esbatendo as rígidas fronteiras sociais entre jovens. A força homogeneizadora desta cultura residia no facto ser difundida através de imagens, como se comprova em diversos depoimentos, pelo cinema, pela televisão, sobretudo pela música, e no facto de ser uma cultura que na origem tinha base popular e não elitista. Talvez tenha sido aqui que nos começamos a desencontrar dos pontos de encontro dos nossos país. Mas essa é uma linha de raciocínio que os testemunhos do blogue até ao momento não permitem aprofundar.
Não quero forçar a paciência dos meus antigos colegas prolongando esta análise sensaborona a uma expontânea e animada recuperação da memória. Mas não posso deixar de me referir a um ponto de encontro de que todos nós nos esquecemos.
E no entanto esse foi verdadeiramente o nosso ponto de encontro, o nosso comum ponto de encontro. Durante anos, foi lá que nos encontrámos, nas aulas de canto ou de latim do Padre Renato, de matemática do Dr. Azevedo ou do Prof. Figueiredo Lopes, de ginástica do Professor Bastos ou de Filosofia da Dr.ª Deolinda e do Padre Fernando Maria. As histórias que ali vivemos, os sonhos que ali desfizemos e refizemos! Os companheiros que escolhemos, as decepções e as descobertas que nos iluminaram, as humilhações que nos iam abatendo e os gestos salvíficos que nos surpreenderam, os amores que quase nos destruiram ou quase nos salvaram, as alegrias e dores de crescimento que ali sofremos!
O Externato Ramalho Ortigão foi esse ponto de encontro principal para tantas geraçãos de jovens caldenses.
João Bonifácio Serra
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COMENTÁRIOS
24-06-2008
Vasco Baptista disse:
Obrigado João por mais uma vez nos brindares com estes supremos pedaços de escrita - um abraço. Vasco
24-06-2008
Júlia disse:
Esta iniciativa foi muito engraçada, teve imenso êxito, revivemos muitos dos bons momentos e iremos continuar a vivê-los....Um grande Abraço. Júlia Ribeiro
24-06-2008
Luís António disse:
Esta é uma grande análise do que se escreveu, talvez nos antípodas do romantismo dos textos do Jales. E da saudade que apareceu com o Zé Carlos Nogueira, a Belão, o Chico Cera….Mas é o somatório de tudo isto que fez destes LOCAIS um grande (re)encontro!
Next?
25-06-2008
Maria João Gomes disse:
Obrigada "Joões".
Este é sem dúvida, para mim, o texto que resume, e que bem, a actividade do blog até agora.
Mas sem a história e as estórias contadas na primeira pessoa, nada deste brilhante escrito faria sentido. Portanto, obrigada a todos.
BJS.MJoãoGomes
24-06-2008
Higino Rebelo disse:
Felicito o Bonifácio por este retrato literário que, certamente, terá sido escrito à pressa, porque não imagino sequer onde consegue tempo para tantas actividades.
Igualmente felicito o Jales pela mestria que colocou na administração do blogue até agora e que, seguramente, lhe custou muitas horas de descanso nocturno, pois várias vezes trocámos mails a altas horas da noite sobre vários temas.
24-06-2008
João Jales disse:
Termina esta série com um texto que sintetiza, como só o João Serra sabe fazer, o que aqui foi escrito durante três meses por mais de quarenta colaboradores em cerca de sessenta artigos. Foram ultrapassadas, em quantidade e qualidade, as melhores expectativas que tínhamos quando lançámos este desafio aos bloguistas.
Obrigado a todos: os que escreveram, os que comentaram, os que leram e os que divulgaram. Muitos não foram sequer alunos do ERO mas encontraram aqui motivos de interesse que interpreto como um cumprimento ao Blog e uma prova de que as nossas recordações não estão nostalgicamente enterradas num velho sótão, elas respiram no tempo que vivemos. Escrevo isto porque penso que todos os textos falaram não só do passado, mas também de quem são os seus autores hoje.
Teremos uma nova série no “regresso às aulas”, em Setembro. Iremos recordar personalidades que marcaram as nossas vivências de estudantes: não só professores (do Colégio, da Escola, das escolas primárias) mas todos os caldenses que nos impressionaram durante o tempo de estudantes. Vão pensando nisso os que quiserem colaborar, alunos do ERO ou não, vamos estar novamente abertos a todos.
1 comentário:
Obrigado João por mais uma vez nos brindares com estes supremos pedaços de escrita -um abraço Vasco
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