.
.
Profissão de Fé, 1966
Esq»Dir: Rui Medina, Alberto R P, Óscar,
Padre X, António Rodriguez,Zé Carlos Faria.
Renato - o nome alude a um renascimento, como que nascido duas vezes, para o serviço de Deus e dos Homens.
Os seus dotes hipnóticos, em tempos de Santo Ofício, ter-lhe-iam valido, decerto, acusações de «bruxaria e feitiçaria». E recordo-me de, ainda muito pequeno, acompanhar a minha Mãe a uma visita de estudo ao Aquário Vasco da Gama. Padre Renato, mesmo sem capa de mágico, tão só o sempiterno e surrado fato de sacerdote, decidiu encantar a morsa (essa, the Walrus, a dos Beatles). O problema foi reanimá-la. O bicho em letargia, para crescente alvoroço dos funcionários, repuxava profundos suspiros a tresandar a carapau e nada, nadinha de nada. Por fim, discretamente, mas já em aflição, o nosso querido senhor dos sortilégios, para alívio geral, lá conseguiu corrente magnética suficiente para libertar a bela adormecida, levando-a a um gracioso mergulho, toda ela em refegos de gordura, nas águas do tanque.
Na pessoa do Padre Renato, travava-se um combate interior, tão humano afinal, entre Santo e Demónio. De fúrias ciclópicas eruptivas, estilhaçando com força de titã, livros de ponto, canetas, ponteiros, óculos, caído em tentação com pequenas fraquezas de doces ou um bom licor e, em paralelo, aguarelista sensível (que me ensinou a aproveitar o branco do papel para captar a luz), talentoso improvisador como organista, com sólidos conhecimentos de harmonia e contraponto e sábias utilizações dos registos do teclado e pedaleira, homem de pobreza Franciscana e votado ao culto dos desamparados, à chuva e ao vento na sua desconjuntada caranguejola Vespa, solidário/solitário, bom e digno, mesmo naquilo que alguns tomavam por facetas pícaras.
Os seus dotes hipnóticos, em tempos de Santo Ofício, ter-lhe-iam valido, decerto, acusações de «bruxaria e feitiçaria». E recordo-me de, ainda muito pequeno, acompanhar a minha Mãe a uma visita de estudo ao Aquário Vasco da Gama. Padre Renato, mesmo sem capa de mágico, tão só o sempiterno e surrado fato de sacerdote, decidiu encantar a morsa (essa, the Walrus, a dos Beatles). O problema foi reanimá-la. O bicho em letargia, para crescente alvoroço dos funcionários, repuxava profundos suspiros a tresandar a carapau e nada, nadinha de nada. Por fim, discretamente, mas já em aflição, o nosso querido senhor dos sortilégios, para alívio geral, lá conseguiu corrente magnética suficiente para libertar a bela adormecida, levando-a a um gracioso mergulho, toda ela em refegos de gordura, nas águas do tanque.
Na pessoa do Padre Renato, travava-se um combate interior, tão humano afinal, entre Santo e Demónio. De fúrias ciclópicas eruptivas, estilhaçando com força de titã, livros de ponto, canetas, ponteiros, óculos, caído em tentação com pequenas fraquezas de doces ou um bom licor e, em paralelo, aguarelista sensível (que me ensinou a aproveitar o branco do papel para captar a luz), talentoso improvisador como organista, com sólidos conhecimentos de harmonia e contraponto e sábias utilizações dos registos do teclado e pedaleira, homem de pobreza Franciscana e votado ao culto dos desamparados, à chuva e ao vento na sua desconjuntada caranguejola Vespa, solidário/solitário, bom e digno, mesmo naquilo que alguns tomavam por facetas pícaras.
Vindo uma vez de S. Martinho com os meus Pais, deparámos, em Tornada, com um espectáculo insólito. Um funeral, na estrada a caminho do cemitério, avançava, a pé, em ritmo de marcha Olímpica. Os acompanhantes, de respiração acelerada e a arfar, tentavam não perder contacto com o féretro. A família do defunto, às corridinhas, esforçava-se por ir equilibrando uma panóplia de velas, coroas e ramos de flores. A carreta funerária deslizava veloz, como as diligências do Velho Oeste nas rotas das pradarias, puxada por dois sujeitos afadigados, de língua de fora e boné às três pancadas. Os sacristães com turíbulo e crucifixo,suavam as estopinhas. À frente, o Padre Renato, a quem não era simpática a proximidade com os mortos, em passo estugado, as vestes e paramentos religiosos em torvelinho, sprintava valentemente para resolver o quanto antes aquela ingrata missão.
Nas aulas de Latim, o grupo era jeitoso e assinalável - a Eca e a Paulinha Gouveia, excelentes alunas e meninas dos olhos do velho Mestre e, depois, os «excomungados», que nem por isso: Pedro «Jorze» «Semilha», Rui Ferreira da Silva, Vasquinho Baptista, Zé Manuel Simões (Simonal) e este escriba. Como é óbvio, éramos alvo de marcação apertada. Um dia, na primeira aula da manhã, fomos surpreendidos com uma frase no quadro: «Camaroeiro Real - A perdição da Juventude», alusão claríssima à predilecção pela sala de estudo comum. Ora o nosso Padre costumava lanchar o seu galão com bolo de arroz naquilo que era, à época, um modesto e honrado estabelecimento de bairro. A réplica deu-se na aula seguinte. No quadro, a giz, lia-se: «Café Avenida - O antro do Vício!». Pleno de «fair-play», o professor apagou a inscrição e começou a lição como se nada fosse.
E havia declinações, a Selecta Latina com os clássicos, e também algumas piadas didácticas sobre a língua morta como o/ «ludere me putas»/, que ao contrário do que se possa pensar, não tem rigorosamente nada a ver com divertimentos em casas de meninas, mas sim com o «julgas que estou a brincar» de Plínio.
Nas aulas de Latim, o grupo era jeitoso e assinalável - a Eca e a Paulinha Gouveia, excelentes alunas e meninas dos olhos do velho Mestre e, depois, os «excomungados», que nem por isso: Pedro «Jorze» «Semilha», Rui Ferreira da Silva, Vasquinho Baptista, Zé Manuel Simões (Simonal) e este escriba. Como é óbvio, éramos alvo de marcação apertada. Um dia, na primeira aula da manhã, fomos surpreendidos com uma frase no quadro: «Camaroeiro Real - A perdição da Juventude», alusão claríssima à predilecção pela sala de estudo comum. Ora o nosso Padre costumava lanchar o seu galão com bolo de arroz naquilo que era, à época, um modesto e honrado estabelecimento de bairro. A réplica deu-se na aula seguinte. No quadro, a giz, lia-se: «Café Avenida - O antro do Vício!». Pleno de «fair-play», o professor apagou a inscrição e começou a lição como se nada fosse.
E havia declinações, a Selecta Latina com os clássicos, e também algumas piadas didácticas sobre a língua morta como o/ «ludere me putas»/, que ao contrário do que se possa pensar, não tem rigorosamente nada a ver com divertimentos em casas de meninas, mas sim com o «julgas que estou a brincar» de Plínio.
E daí, em homenagem e lembrança ao Latim aprendido com o Padre Renato, recebam pois um abraço /«ex toto corde»/, ou seja, de todo o coração...
José Carlos Faria
.
.
.......................................................................................................................
ERA IRRESÍSTIVEL SUGERIR ESTA MÚSICA PARA ACOMPANHAR A LEITURA DO TEXTO DO ZÉ CARLOS FARIA.COMO SE NO PADRE RENATO TAMBÉM HOUVESSE ALGO DE PSICADÉLICO...
.
.
.COMENTÁRIOS
Manuela Gama Vieira disse:
BEM ESCRITO, CONTA UMA HISTÓRIA ENGRAÇADÍSSIMA.
OH JALES, VEJO QUE TAL COMO EU, TAMBÉM TUA MULHER SERIA UMA DAS "ALUMNA DILECTA MEA" DO SAUDOSO P.E RENATO.
CORRIA NOS FUNERAIS….TALVEZ COM RECEIO DAS SUAS QUALIDADES ESOTÉRICAS…NÃO FOSSE O DEFUNTO RESSUSCITAR!
.
.
João Jales disse:
O Zé Carlos traz sempre uma nota de humor muito pessoal quando nos visita, embora menos vezes do que todos gostaríamos. E há um desenho especial na forma como escreve, como se houvesse um grafismo diferente nas suas palavras, mas quando confirmei vi que não, estão todas em ARIAL, como o resto do Blog...
Ri-me com gosto da morsa hipnotizada, do funeral contra-relógio e das trocas de acusações sobre os locais de perdição. Porque é que temos todos tantas estórias do Padre Renato?
O comentário da Manuela GV está à altura do texto! Os poderes esotéricos do Padre Renato poderiam efectivamente alterar os planos de um funeral? Nunca o saberemos.
.
Isabel Xavier disse:
O Zé é um contador de histórias impagável, mas estas duas nunca lhe tinha ouvido. O Padre Renato era uma padre cheio de surpresas, tantas são as memórias que todos dele temos. Estas duas, da morsa e do funeral apressado, são inultrapassáveis, de facto.
Além dos factos, o Zé é um contador de imagens: um homem do teatro, é o que é! Nem me atrevo a pedir-lhe que continue. Digo-lhe só que faz muita falta neste blog. Para mais com a posição única de ter sido aluno e, simultaneamente, filho e neto de professoras do colégio. Vá lá Zé... faz-nos a vontade! - Isabel Xavier -
.
Luis disse:
O Faria reconhece-se facilmente na fotografia porque é o único que tem os atacadores dos sapatos desapertados.
Vejo com satisfação que o Zé Carlos recorda estes tempos com um invejável humor e os descreve com uma prosa fluida.
Como diz o JJ, vê lá se apareces mais vezes! Luis
.
Zé Carlos Faria disse:
Olá! A pessoa que falta identificar na foto é o Óscar. Por acaso lembro-me bem de quando esta fotografia foi tirada, já ao fim da tarde, no recreio feminino, junto ao Ginásio (e também já tinha reparado no pormenor dos atacadores desapertados; nunca primei muito pelo aprumo, o que é que se há-de fazer? De qualquer maneira, o pior de tudo são mesmo os laços... as figuras que a gente fazia, Santo Deus!).
O que estraga a recordação perfeita desse dia, foi a coincidência com a morte do meu Avô, da qual fui informado quando cheguei a casa para jantar...Abraço.ZCF
.
Ana Nascimento disse:
Já muito foi dito sobre o Padre Renato, chorei a rir com a descrição do Zé Carlos sobre o funeral …e as imagens passaram à minha frente como se nesse momento o presenciasse …
Com o Bonifácio recordei outros, como o acalmar da asma da Ema e o tirar as dores de cabeça à minha irmã Luisa utilizando o mesmo método…. o nosso Padre Renato era um homem muito à frente do seu tempo… já utilizava o reiki , só que nessa altura isso era desconhecido para nós…
2 comentários:
o Faria reconhece-se facilmente na fotografia porque é o único que tem os atacadores dos sapatos desapertados.
Vejo com satisfação que o Zé Carlos recorda estes tempos com um invejável humor e os descreve com uma prosa fluida.
Como diz o JJ, vê lá se apareces mais vezes! Luis
O Zé é um contador de histórias impagável, mas estas duas nunca lhe tinha ouvido. O Padre Renato era uma padre cheio de surpresas, tantas são as memórias que todos dele temos. Estas duas, da morsa e do funeral apressado, são inultrapassáveis, de facto. Para além dos factos, o Zé é um contador de imagens: um homem do teatro, é o que é! Nem me atrevo a pedir-lhe que continue. Digo-lhe só que faz muita falta neste blog. Para mais com a posição única de ter sido aluno e, simultaneamente, filho e neto de professoras do colégio. Vá lá Zé... faz-nos a vontade!
- Isabel Xavier -
Enviar um comentário