ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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O RESPIGADOR

por João Bonifácio Serra


Por vezes vinha até ao recreio dos rapazes, no intervalo grande da manhã, e logo se fazia um pequeno ajuntamento em seu redor. Metade oferecia-se, com excitação mal contida, para ser hipnotizada; a outra não queria perder pitada do que se ia passar, embora receasse intimamente uma operação cuja metodologia ignorava. Com o tempo, o Padre Renato – é dele que estou a falar – tornou-se mais prudente, depois de um ou outro episódio de hipnose mais atribulado, e só aceitava candidatos cujo comportamento ao efeito do seu dom era previsível.

Eu tinha com aquele padre especial uma relação complexa. A minha inaptidão para o canto era de tal monta, que ele se vira forçado a dispensar-me das suas aulas. O seu ouvido acurado sofria tal alteração com os ruídos que eu emitia que o Padre parava abruptamente com um olhar sobressaltado, de imediato a turma se desconcentrando, a meio do ensaio. Em contrapartida, eu sentia admiração pelo seu saber e um misto de fascínio e temor pelo seu feitio algo truculento e o gosto pelos enigmas. Topava-os com um semblante carregado e olhar misterioso, em todo o lado e por vezes transmitia claros sinais de inquietação, como se perigos insuspeitos espreitassem os seus própios passos. Percebia-se que as suas relações com o Padre Albino não eram fáceis e a tensão parecia, às vezes, querer extravasar.



Quando o grupo se formava, eu aproximava-me discretamente, para espreitar por cima do ombro dos da frente e vê-lo fazer ou dizer coisas surpreendentes. Naquele dia, o Padre Renato esperou que a roda se desfizesse, abriu caminho na minha direcção e interpelou-me directamente: ouve lá, ainda haverá uvas nas vinhas do teu Pai? A pergunta deixou-me perplexo, mas respondi: Não senhor, a vindima já acabou. De facto, entráramos já pelo Outubro, as vindimas eram feitas nas duas ultimas semanas de Setembro. O padre insistia: mas ficam sempre uns cachos pequeninos nas videiras. Oh, senhor Padre, a minha mãe costuma pendurar cachos de uvas no celeiro e duram até ao Natal. Não, retorquiu, com impaciência: o que queria era mesmo ir ao rabisco, apanhar as uvas que sobrarm da vindima.

Eu estava literalmente atónito. Sim, balbuciei, quando quiser. É hoje, disse. A que horas sais? E logo ali o Padre Renato marcou a hora de partida.

De modo que quando a minha Mãe me viu aparecer, a cavalo na motoreta do Padre Renato, duas horas mais cedo do que se viesse de camioneta, temeu o pior. Ai, Sr Padre Renato, que fez o meu filho? Vamos ao rabisco, comuniquei eu todo lampeiro, enquanto o Padre encostava a motoreta e sacudia o pó do fato preto. Tinha pensado começarmos aqui pelo “vale da vaca”. E lá fomos pela encosta acima, o Padre entusiasmando-se como uma criança sempre que descobria por baixo das folhas avermelhadas duas ou três uvas quase a atingir a condição de passas.


JBSerra

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COMENTÁRIOS


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João Ramos Franco disse:
Os textos do João Serra têm um valor que é indiscutível e até me fazem recordar factos passados no ERO. Lembro-me bem dos hipnotismos do Padre Renato:
Eu e o Rainho, que na altura tínhamos o estatuto de assistentes no 5º ano Secção de Ciências, algumas vezes juntávamo-nos ao grupo dos hipnotizáveis, para desfrutar a cena, e até uma vez me ofereci voluntário para o ser, claro que ouvi uma resposta, extensiva também ao Rainho:
-Vocês hipnotizáveis já não são e no Canto Coral também já tenho os suficientes para desafinar.
E lá nos fomos, lembrando-nos que tínhamos 17/18, e que já não éramos meninos.
Obrigado João Serra pelo reavivar da minha memória,
João Ramos Franco

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Isabel Xavier disse:
Fico feliz por ser o Padre Renato quem inaugura esta nova fase do blog. O João Serra dá dele a imagem certa e a mim agrada-me particularmente esta história. Não é dificil imaginar a sua genuína alegria e espanto de cada vez que encontrava uvas para respigar. Respigar é em si mesmo um acto poético, uma espécie de jogo de busca e encontro e de encantamento também. Foi tema que artistas trataram em tela e no cinema com altíssima beleza.
O Padre Renato era um Homem Bom, sem qualquer interesse por bens materiais ou qualquer tipo de ambição pessoal que ensombrasse essa Bondade. É a única pessoa que eu acredito piamente ter possuído capacidades extra-sensoriais (chamemos-lhes assim à falta de melhor expressão), às quais o texto também faz justa referência.
Agradeço ao João Serra, do fundo do coração, ter partilhado connosco esta belíssima história que viveu com o Padre Renato, de quem eu tanto gostava.
Isabel Xavier


João Jales disse:
O texto do João Serra é magnífico, retratando com grande mestria alguém tão complexo como o Padre Renato a partir de um episódio aparentemente tão pueril.
Só pela profunda impressão que me causou se explica que uma avalanche de recordações se tenha abatido sobre mim ao lê-lo, originando um texto, que já não é só um comentário, e que publicarei a seguir.

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Zequinha Pereira da Silva disse:
Li o excelente texto do João Serra e nem sabes a pena que sinto de não ter tempo para estas contribuições. Pessoalmente gostava de poder deixar testemunho sobre vários profes...o Lopes, o Serafim, o Pe Renato, a Super...sobretudo estes. Este assunto é de tal forma importante, na perspectiva de um autêntico acervo documental e memorial para a história do ERO, que proponho que se constitua, no âmbito do blogue, como uma "secção" permanente. Isso deixa-me o conforto de pensar que, mais tarde ou mais cedo, vou poder deixar a minha contribuição...
Abraço.
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São Cx disse:
Acabei de ler o excelente texto do João Serra sobre o Sr. Padre Renato e foi com alguma surpresa e nostalgia que me senti transportada ao passado! Já não me lembrava dessa faculdade dele de hipnotizador, que eu de longe também abordava com um misto de curiosidade e respeito! Sim como professor de canto coral e das dificuldades de fazer a classe cantar em 3 vozes... (será que é assim que se diz!!), mas sobretudo como professor de desenho. Acreditava mais na minha aptidão para o desenho do que eu própria alguma vez acreditei e foi para mim sem dúvida o incentivador número Um que incansávelmente soube motivar-me a querer fazer sempre melhor. Repetia-me o seu conselho favorito de manter a humildade, tinha sempre uma palavra de encorajamento e chegou a pôr ao meu dispor os seus materiais para me iniciar em paisagens em aguarela.
Realmente devia conhecer bem a região, como o texto do João Serra indica. O sonho dele era um dia poder levar-me para desenhar no campo, dizia, e o que o impedia de o realizar eram apenas "as más línguas"! Eu ficava em silêncio, na convicção que tal aventura seria muito possívelmente apenas uma pesarosa perca de tempo...e realmente nunca aconteceu!!
Recordo-o com enorme reconhecimento e carinho! São CX

Júlia Ribeiro disse:
Excelente ideia, começar esta série pelo Padre Renato! Quase todos os que passaram pelo ERO se lembram, com certeza, do P. Renato com a sua motoreta? Ou lambreta? Mesmo quem o não teve como professor.
Ele foi talvez meu professor de canto coral nos últimos anos, mas eu sou como o João Serra, nem a 3ª voz conseguia fazer e tenho essa amnésia pois fiquei logo dispensada de cantar no meu 1º ano e ainda hoje esse trauma me acompanha!!!!!
Mas estou a vê-lo, no nosso recreio, quase a entrar pela casa de banho à procura das suas meninas do Latim, a Isabel V Pereira, a Pilar e a sua Fátinha (a Fátima Rosado Pereira, que ainda não deu sinal de vida....onde andará ela?).
E que bom recordar a sua faculdade de hipnotizar, já não me recordava mas, quando li, imediatamente me imaginei no local da mata em que o vi fazê-lo; mas saber a quem, isso seria pedir demais....
Com a sua maneira muito especial, mas engraçada, de ser, era uma excelente pessoa.
Resumo numa só frase: ERA UM HOMEM BOM.

Laura disse:
Já agora aproveito para dizer que o rapaz que a Júlia viu hipnotizar na mata, e do qual não se lembra, era o Xico Elias, primo do João Elias (este não foi aluno do ERO).

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