ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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AULAS DE HISTÓRIA (?)

por João Jales

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A voz, monocórdica, enfadonha e enfadada, vai debitando uma lenga-lenga insípida sobre umas, noutras circunstâncias, empolgantes viagens dos fenícios, primeiro pelo Mediterrâneo, depois, ultrapassando Gibraltar, pelo Atlântico, chegando até às Ilhas Britânicas. Alguns dos ouvintes dormem; de olhos abertos claro, porque o perigo espreita e fechá-los “é a morte do artista”.

Algumas desgraçadas moscas saltitam pelo chão, tentando inutilmente voar. Um “biólogo amador” testa a sua capacidade de sobreviver sem asas e sonha com a possibilidade de domesticar uma delas. Algumas espectadoras encolhem-se, enojadas, já que as moscas-cobaias têm tendência a agarrar-se-lhes às pernas nuas... Eu observo, é de longe o mais interessante que se passa na sala, apesar de já ter visto esta experiência antes e saber que as moscas não aprendem a viver no solo nem se deixam domesticar.

A voz muda, há um ligeiro sobressalto entre os presentes, mas rapidamente o novo leitor se ajusta ao registo do anterior e tudo volta ao normal. O tédio respira-se, espesso, quase líquido, enchendo, avassalador, os pulmões, o cérebro, a alma destes pobres adolescentes.

Como é que é possível que uma matéria como a História Antiga, sobre a qual há livros e filmes formidáveis, seja transformada neste pesadelo? Há dois suspeitos… Mas quais suspeitos! São culpados e estão identificados, passo a nomeá-los para que conste: António Gonçalves Mattoso, advogado e professor de história natural de Leiria e Albino Cândido Lopes, Padre, Director do ERO e professor (falhado) de História Universal do 3º Ano do Liceu. O primeiro escreveu um intragável compêndio de História, o segundo convenceu-se que a melhor forma de o estudar é lê-lo, em voz alta, às segundas, quartas e sextas, durante cinquenta minutos.

O resultado? Alunos em coma tedioso, moscas sem asas e duas dúzias de adolescentes que odeiam a cadeira de História Universal.

Mas o “combate” contra a situação começará cedo, mal se apercebem as vítimas do que as espera durante um ano. Quando a leitura começa, no primeiro aluno da fila lateral e continuando por ordem, a zona contrária da sala, longe de “entrar em acção”, inicia imediatamente as hostilidades: batalha naval, duelos de Bics Boomerangs, azucrinar a cabeça do colega da frente com picadelas de objectos vários, escrever-lhe no pescoço, fazer-lhe cócegas… Há até um jogo em que se aperta lentamente a cadeira e carteira de um colega que, empurrado por trás e pela frente, fica “esmagado” entre os dois objectos. Enfim, tudo o que permite alegrar um pouco uma aula interminável.

O padre Albino é um professor inexperiente mas um homem inteligente, rapidamente se apercebe que a turma está descontrolada. Só ouvem a matéria os dois ou três próximos leitores, o resto dorme, sonha e brinca. E ele ainda tem que ter atenção ao livro porque, se não, alguns artistas mais expeditos saltam linhas para terminar mais rapidamente a sua quota parte.

Na fase seguinte ele sai do estrado e encosta-se à parede traseira, um olho no burro outro no cigano, neste caso tentando ler o manual e ver o que os alunos fazem. A ordem de leitura passa a ser aleatória, determinada no momento pelo Padre, que com uma das famosas canas da Índia dá um pequeno toque nas costas do que deve parar e outro nas costas do próximo a ler. Não pode chamar os alunos pelo nome porque provoca respostas de “Sim, Sr. Padre”, “Diga.Sr. Padre”, com o nomeado a fitá-lo candidamente nos olhos, alegando depois que essa distracção o impede de saber exactamente onde vai a leitura da matéria…

Resultou numa aula, ou talvez duas. Depois, quando o professor muda o leitor, meia-dúzia de fora-da-lei, sempre atentos aos seus gestos pelo canto do olho, batem nas costas do colega da frente e meia dúzia de enganados começam, com ritmos diferentes e por vezes em pontos diferentes do livro, uma nova leitura. Um caos.

Curiosamente o Padre Albino era muito menos disciplinador na sala de aulas do que fora dela, e até menos soturno. Nestas aulas houve “perseguições” a alunos que fugiam por baixo das carteiras dos colegas, em cenas que nenhum outro professor permitiria. O Antero, pequeno e ginasticado, sempre muito falador, era exímio e frequente actor destas “touradas”, impensáveis em qualquer outra aula e nada coerentes com a filosofia que a mesma pessoa impunha no ERO. Só tenho para isso um explicação, o Director só sabia manter a disciplina recorrendo à rigidez extrema e exagerada que lhe era familiar, fora disso era um homem perdido.

A única coisa que o punha realmente fora de si eram as “dúvidas”. Lembro-me do Miguel BM, certamente influenciado pelo pai (esse sim, professor de História), perguntar um dia “O Sr. Padre concorda que a guerra é a higiene do Mundo?”. Perante a descontrolada resposta, apareceram depois outras perguntas, sobre a democracia grega, os nomes dos generais de Aníbal (que o mesmo Miguel nomeava, ou inventava, nunca percebi), os amores de Júlio César e Cleópatra, tudo questões que ficaram sempre sem resposta…

Nunca aprendemos nada, mas as notas lá foram aparecendo, sempre mais ou menos de acordo com a média de cada um. Houve colegas que nunca recuperaram deste trauma e odiaram História para sempre. Eu reconciliei-me, pela admiração que tive pela Ermelinda, a (excelente) professora da disciplina que esteve no ERO nos dois anos seguintes.

Numa das últimas tentativas de dar uma aula diferente, julgo que no terceiro período, o Padre Albino trouxe um dia uns vidros fenícios para mostrar à turma. Eram pequenos fragmentos, pareciam os restos de um colar. Correram toda a turma, ordenadamente, de carteira em carteira até que o último aluno os depositou cuidadosamente em cima da secretária do professor. Ele olhou-os longamente, depois olhou para a turma e, demonstrando um conhecimento dos alunos melhor do que era esperado, disse ”Flores, dá cá os vidros!”. O Luís Filipe Flores Antunes dos Santos levantou-se do seu lugar e entregou-lhe os verdadeiros vidros fenícios, que tinha no bolso, não se esquecendo de reaver os berlindes pelos quais os tinha substituído, na sua vez de os examinar...
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JJ
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COMENTÁRIOS
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jorge disse...
há aqui uma observação que me impressionou logo à primeira leitura:"o Director só sabia manter a disciplina recorrendo à rigidez extrema e exagerada que lhe era familiar, fora disso era um homem perdido". eu nunca tinha pensado nisso mas é verdade,quando não era o todo-poderoso director do colégio o p albino não sabia falar nem brincar com os alunos.não me lembro nunca dele como uma pessoa normal,como me lembro de professores com quem falava fora das aulas.
gostei dos dois relatos da mesma história,mas nota-se que o jales estava lá!
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farofia disse...
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JJ, fascinante, genial! hilariante!
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Que filme! não, nenhum filme conseguia passar esta história de modo mais convincente do que esta escrita. Estas aulas de História ultrapassam a própria História, os heróis no livro a sucumbir desinteressantes vencidos pelos heróis na sala, vivíssimos de sangue na guelra.
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As armas, as estratégias, as técnicas, as tácticas! Uma delícia! A maestria com que os alunos driblam o enjoo e o (co)matoso e o professor!
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Fantástico! apetece aplaudir a equipa e agitar os cachecóis! “Jales, Jales, Jales! Antero, Antero, Antero! Miguel Miguel Miguel! Flores, Flores, Flores! Jales, Jales, Jales! EEERO! ”
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Isabel X disse...
Subscrevo inteiramente o que diz a Farófia (nunca me passou pela cabeça vir a chamar assim à Dra. Inês!). Há palavras que fazem ver mais do que as imagens. É desse modo que se atinge o Princípio da Imaginação. Parabéns JJ, muito sinceramente!.
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Luis disse...
Os episódios são mais ou menos verídicos,embora talvez as acções não fossem tão organizadas com o João apresenta.
Começando na descrição do tédio como um nevoeiro que invadia a sala vamos até à mais delirante subversão,num texto que é empolgante e com muito humor.E o Albino,quando não podia ser um ditador não sabia mesmo o que fazer,bem observado.
Quem era o biólogo que arrancava as asas às moscas?L
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A.J.Neto disse:
Caro João Jales,
O teu texto sobre as aulas de história como o Padre Albino está fabuloso.Envio também um sobre as tentações amorosas do Padre...
Abraço
António José Neto
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Jaime Serafim disse:
Olá Jales
Parabéns pelo seu texto, que eu já conhecia, mas que uma vez publicado no blogue me pareceu ainda mais bem conseguido, dando um retrato autêntico e muito fiel, porque vivido, dos tormentos porque passavam alguns alunos naqueles tempos e das estratégias que engendravam para tornar menos monótono o fluir do tempo.
Um abraço
Jaime Serafim
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João Jales disse:
Aproveito a intervenção do Dr. Serafim, que era mais uma mensagem do que um comentário, para esclarecer que a publicação sucessiva dos dois textos que referem o mesmo episódio (o colar fenício) foi propositada, já que ambos foram escritos sem que qualquer dos autores conhecesse o outro relato. Pareceu-nos pois esta a forma ideal de os apresentar, com as diferenças de pormenor naturais em crónicas de factos com mais de 40 anos e escritos de perspectivas diferentes, o que é sempre enriquecedor para o Blog.
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João Ramos Franco disse...
Toda a prepotência desse director que li em "O princípio da revolta (J B Serra)", leva-me, apesar de gostar do que escreves e do modo como relatas as aulas de História, a um sentir ainda mais negativo do personagem questão.
João Ramos Franco
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Anabela Miguel disse:
João, o teu relato das aulas de História do Padre Albino foi tão extraordinário e pormenorizado que conseguiste transportar-me àquela época. Que esforço eu fazia para estar atenta e não adormecer nas suas enfadonhas aulas que, se não fossem algumas brincadeiras entre os alunos, seriam de uma completa monotonia.
Ana Miguel
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Luisa disse:
Morria-se de aborrecimento naquelas aulas,não era possível gostar de História assim. Alguém falou de exageros aqui nos comentários,mas a tua descrição não tem nenhum exagero-aquilo era uma chatice tal e qual tu descreves!E que bem descreves,os teus textos são de um realismo incrível e parecem um filme tal como diz a dra Inês.L
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Miguel BM disse:
O tema "História" sempre me agradou e muito graças aos ensinamentos do meu Pai.Falado de modo simples mas vivo,com hipótese de diálogo,discussão e troca de ideias, é sem dúvida um assunto fascinante.Ou seja,precisamente o inverso do que eram as execráveis aulas dadas pelo Conde.
O texto do superbloguista JJ é uma verdadeira aula ao vivo.Não me lembro rigorosamente dos nomes dos generais de Aníbal nem sequer de os saber,e ainda menos da pergunta que me é atribuída pelo autor, o que é natural,pois no final da cada aula era preciso esquecê-la rapidamente.
E se o professor,ou lá o que era aquilo, tivesse resolvido dar matemática ou física ?MBM
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Flores disse:
Depois de ler estes dois textos magníficos, entrei numa espécie de letargia que me impediu de reagir imediatamente ao ritmo das emoções que me provocaram.Ainda agora não me ocorre uma forma que julgue à altura do estilo rigoroso e divertido dos seus autores.
Todos sabemos que a memória é selectiva e eu, em particular, considero a minha excessiva nesse atributo.Embora me lembrasse bem o episódio das pedras fenícias, ocasionalmente recuperado em tertúlias familiares ou de amigos mais próximos, confesso que não esperava mergulhar tão intensamente no ambiente das aulas daquele tempo, numa profusão de detalhes, alguns que julgaria perdidos para sempre.A melhor forma de corroborar o tédio e a irrelevância daquelas aulas de História é talvez reconhecer que, para além da memória do episódio, tudo o resto se me tinha varrido da consciência.
Passados tantos anos é um prazer recordar, através de duas prosas vivas, juntas num cânone tão harmonioso, um dos tantos momentos hilariantes que vivemos juntos. Mas é sobretudo um privilégio, quando elas brotam em sintonia das penas de um colega e de um professor, sem desprimor para os outros, de absoluta eleição!
Abraço
Luís Filipe Santos
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António disse:
Não sei se estava um ou dois anos à frente do autor mas também tive direito a aulas destas.O Albino era um péssimo professor de história,sem qualquer preparação,vocação e imaginação para dar aulas.Até as aulas de moral dele eram chatas!!!
A descrição está muito bem conseguida e o episódio do colar é muito engraçado.Mais engraçado é que eu já o tinha ouvido a outro colega com outro protagonista e noutra turma!Mas os testemunhos do Dr serafim,JJ e Flores são todos coincidentes e não me deixam dúvidas.

7 comentários:

jorge disse...

há aqui uma observação que me impressionou logo à primeira leitura:"o Director só sabia manter a disciplina recorrendo à rigidez extrema e exagerada que lhe era familiar, fora disso era um homem perdido". eu nunca tinha pensado nisso mas é verdade,quando não era o todo-poderoso director do colégio o p albino não sabia falar nem brincar com os alunos.não me lembro nunca dele como uma pessoa normal,como me lembro de professores com quem falava fora das aulas.
gostei dos dois relatos da mesma história,mas nota-se que o jales estava lá!

Anónimo disse...

JJ, fascinante, genial! hilariante!

Que filme! não, nenhum filme conseguia passar esta história de modo mais convincente do que esta escrita. Estas aulas de História ultrapassam a própria História, os heróis no livro a sucumbir desinteressantes vencidos pelos heróis na sala, vivíssimos de sangue na guelra.

As armas, as estratégias, as técnicas, as tácticas! Uma delícia! A maestria com que os alunos driblam o enjoo e o (co)matoso e o professor!

Fantástico! apetece aplaudir a equipa e agitar os cachecóis! “Jales, Jales, Jales! Antero, Antero, Antero! Miguel Miguel Miguel! Flores, Flores, Flores! Jales, Jales, Jales! EEERO! ”

Isabel X disse...

Subscrevo inteiramente o que diz a Farófia (nunca me passou pela cabeça vir a chamar assim à Dra. Inês!). Há palavras que fazem ver mais do que as imagens. É desse modo que se atinge o Princípio da Imaginação. Parabéns JJ, muito sinceramente!

Anónimo disse...

Os episódios são mais ou menos verídicos,embora talvez as acções não fossem tão organizadas com o João apresenta.
Começando na descrição do tédio como um nevoeiro que invadia a sala vamos até à mais delirante subversão,num texto que é empolgante e com muito humor.E o Albino,quando não podia ser um ditador não sabia mesmo o que fazer,bem obdervado.Quem era o biólogo que arrancava as asas às moscas?Luis

João Ramos Franco disse...

Toda a prepotência desse director que li no, O princípio da revolta (J B Serra), leva-me, apesar de gostar do que escreves e do modo como relatas as aulas de História, a um sentir ainda mais negativo do personagem questão.
João Ramos Franco

Anónimo disse...

Morria-se de aborrecimento naquelas aulas,não era possível gostar de História assim. Alguém falou de exageros aqui nos comentários,mas a tua descrição não tem nenhum exagero-aquilo era uma chatice tal e qual tu descreves!E que bem descreves,os teus textos são de um realismo incrível e parecem um filme tal como diz a dra Inês.Luisa

Anónimo disse...

Não sei se estava um ou dois anos à frente do autor mas também tive direito a aulas destas.O Albino era um péssimo professor de história,sem qualquer preparação,vocação e imafinação para dar aulas.Até as aulas de moral dele eram chatas!!!
A descrição está muito bem conseguida e o episódio do colar é muito engraçado.Mais engraçado é que eu já o tinha ouvido a outro colega com outro protagonista e noutra turma!Mas os testemunhos do Dr serafim,JJ e Flores são todos coincidentes e não me deixam dúvidas.Tó