ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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MUNDOS PARALELOS

2ª parte de A MEMÓRIA DOS LIVROS (João B Serra)
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Mundos Paralelos. Exemplos.
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Recapitulando: se a ficção, por mais realista que se apresente, é constituinte de mundos paralelos, os livros ensinaram-me a transitar entre eles. Com essa chave, que comecei a aprender a manejar em livros aos quadradinhos adquiridos por força de artimanhas várias, tornei-me progressivamente um bibliodependente. Intelectualmente, emocionalmente. Fisicamente. Não é recomendável, eu sei, mas não consegui evitar. Conforme combinado, chegou a hora dos exemplos. Escolhi três. Se já conhecerem algum deles (com a idade, a auto-vigilância sobre a repetição das memórias abranda), passem de imediato ao seguinte.
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Amor de Perdição
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Nunca antes me sentira assim perturbado pela leitura de um livro. Entusiasmara-me com as histórias de Os Cinco e deixara-me encantar pelas aventuras de Gulliver, de Robinson Crusoé ou do Rei Artur com os seus cavaleiros da Távola Redonda. Mas aquele era um livro absolutamente diferente, falava de pessoas e de problemas que eu jamais imaginara e cuja significação, aliás, estava longe de atingir por completo. Uma mulher absolutamente adorável irradiava a sua beleza e o seu amor sobre os homens de uma cidade fascinante, Paris. Um jovem, Armando Duval, enamorava-se dela, e a sua paixão, ingénua mas vigorosa, incómoda mas pura, vencia todos os obstáculos com a coragem que só o amor pode alimentar. Mas não lograva evitar a morte da sua amada, Margarida Gautier, vítima de tuberculose, uma doença incurável no século XIX. Armando aplicou o resto da sua vida a recordar esse seu amor dorido pela mulher cuja beleza o autor do romance (Alexandre Dumas, Filho) espelhava na face de pele aveludada como um pêssego que permaneceu intocado, nos grandes olhos negros, nas sobrancelhas em arco, no nariz fino e direito, nas narinas ligeiramente abertas por uma aspiração de vida sensual (fosse o que fosse que isso pudesse querer dizer), numa boca cujos lábios se abriam graciosamente sobre dentes brancos como leite. À medida que progredia na leitura, apercebia-me confusamente que estava a franquear uma porta até aí fechada, dando entrada num mundo novo, de personagens e de sentimentos até aí ignorados. Ocultava cuidadosamente o livro e só me atrevia a lê-lo à noite, depois de me assegurar que os meus Pais se tinham recolhido ao quarto. No silêncio da velha casa, eu incarnava Armando perdido de amores por Margarida.
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Suspenso da trama, nem me dei conta, um dia, que o meu Pai abrira a porta do quarto, inquirindo do motivo da luz acesa a hora tão tardia. Não tive tempo de esconder o livro, antes que a lesta mão paterna o tomasse. O meu Pai nem queria acreditar: o seu filho com A Dama das Camélias debaixo do travesseiro. Num misto de estupefacção e irritação, perguntou: onde é que foste buscar este livro? – No sótão, Pai, na arca dos livros que eram do Tio Padre – respondi com a inocência dos 12 anos. Num gesto brusco, o meu Pai recolheu o livro e rumou ao seu próprio quarto, no passo hesitante de quem se interroga sobre como lidar com o incidente.
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O Tigre do Atlântico
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As notícias, vincadas pela voz grave do locutor da Emissora Nacional, não punham em dúvida que se tratava de um acto da mais despudorada pirataria. Um navio de transporte de passageiros, um paquete, tinha sido ocupado pela força e obrigado a desviar o seu rumo. Os motivos dos assaltantes eram pouco explícitos. Sentia-me vagamente tocado pela indignação das autoridades, mas intrigava-me a classificação de piratas dada aos autores.
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Estávamos em finais de Janeiro de 1961 e eu acabava de dar passos na minha educação literária sobre o fenómeno da pirataria. Emílio Salagari entrara, pelo Natal, na minha estante, conquistando de imediato uma prateleira de primeiro plano. As extraordinárias aventuras relatadas nos seus livros decorriam nos mares distantes da Malásia, onde o corso teria sido prática corrente.
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Os piratas de Salgari moviam-se por razões nobres, a autonomia e liberdade do povo de Monpracem, subjugado por um poder colonial dominador, servido por governadores sem escrúpulos.
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Era difícil assimilar ao caso do Santa Maria o que aprendera com a leitura do Tigre da Malásia. Eu procurava encontrar as similitudes, mas as incógnitas superiorizavam-se às certezas. Que território queriam, neste caso, os piratas libertar? Acaso as autoridades portuguesas podiam ser equiparadas às da Inglaterra do século XIX? A pergunta era em si mesma perturbadora, e eu estremecia só de pôr a hipótese.

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O episódio acabaria depressa, nos primeiros dias de Fevereiro, quando os supostos piratas entregaram o navio às autoridades brasileiras. Pareceu-me então desproporcionada a auto-satisfação do Governo pela vitória alcançada. A verdade é que, tal como os ingleses nunca conseguiram aprisionar Sandokan, a recuperação do Santa Maria não foi acompanhada da detenção nem de Henrique Galvão, o comandante da operação, nem de Humberto Delgado, o chefe dos revoltosos.
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Pedro Grande
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Quando ele apareceu, logo no primeiro volume, eu soube que ele seria o meu herói. Era um homem grande e desajeitado, que entrava nos salões da aristocracia russa como um elefante na loja das porcelanas. Como todos os meus heróis, a partir daí, era bom e infeliz, generoso e por isso desfrutável, apaixonado e consequentemente incompreendido, absolutamente amável mas destinado a sofrer perante a indiferença e frieza de amantes e falsos amigos.
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Pedro estava disposto a sacrificar-se até ao fim da vida pelos mais sublimes ideais: o derrube dos tiranos e dos opressores, a paz e a harmonia entre os homens, a igualdade e a fraternidade, a irrecusável liberdade da pátria. Não era um militar mas era um valente, não era um estratega mas era um puro.
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Encontrei-me com Pedro, aliás Pierre Bézoukhov, em dias que precediam provas exigentes. Guerra e Paz era o que a professora Branquinha tinha para me emprestar quando lhe pedi uma sugestão de leitura naquele momento esquinado. – Preciso de ler qualquer coisa para contrariar o nervosismo, expliquei. Ao entregar-me os cinco volumes da edição Minerva, preveniu-me: - É um grande romance, mas talvez esta altura de exames não seja a mais indicada para o ler. Porque não o guardas para as férias?
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Não esperei, evidentemente. Pierre não me deixou. Ele sentia-se instrumento de um destino e com essa segurança enfrentava os maiores riscos e desafios. Ao pé dos dele, os meus eram bem mais simples e fáceis.
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Herdeiro de uma imensa fortuna, que realmente não sabia gerir segundo as regras da acumulação da fortuna, lançou-se na utopia de transformar o mundo. Entendeu começar pelo que estava ao seu alcance: o mundo rural, onde afinal se sentia mais à vontade. O objectivo de emancipação do homem aplicou-o então aos seus camponeses, a quem ofereceu ilustração, liberdade e dignidade. Foi animado por esse exemplo que enfrentei os exames do 5º ano do liceu.

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João Serra
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C O M E N T Á R I O S
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VT disse...
Excelente! Excelente! Excelente!
O João de "uma assentada" faz análise sociológica e histórica de uma época - em paralelo com as descobertas e emoções do jovem de então. Faz eco dentro de cada um de nós porque habilmente nos relembra também a qualidadade quase mágica com que vivíamos, na altura, certas situações.
Parabéns
Abraço
VT
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Luisa disse.
As palavras do João Serra retratam com fidelidade os sentimentos de quem lê os primeiros livros e descobre o mundo maravilhoso que lá existe dentro.
Não li o Sandokan,lembro-me só da série televisiva,mas sofri com a Dama das Camélias e vibrei com o regresso aos valores básicos do cristianismo e da solidariedade que Tolsti apregoava.
Obrigado por estes momentos de grande prazer ao ler estas palavras. L
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J.L. Reboleira Alexandre disse...
Sublime, esta análise de uma época por parte de João Serra. Como menciona o assalto ao Santa Maria, e eu, na inocência dos meus 10 anitos da altura, ainda não lia as aventuras de Sandokan (não tardou muito no entanto, logo que iniciei o secundário no ano seguinte),o evento chocou-me imenso ao pensar quanto um dos meus familiares mais próximos, embarcadiço no mesmo, poderia sofrer com a acção dos «bandidos» (as aspas estão talvez a mais).
Foram momentos muito complicados para os meus primos, sobretudo o Zé, mais velho, e para a minha tia, na altura. Como aliás para outros habitantes da aldeia, tantos eram os colegas do meu tio no navio.
Sem querer entrar em polémicas, entendo no entanto que, hoje como ontem, ninguém tem o direito de pôr em risco a vida de inocentes, por mais nobres que sejam as razões que movem tais actos.
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João Ramos Franco disse...
Como amigo e nas circunstância em que nos conhecemos, tenho mantido uma convivência salutar, respeitando-o com consciência de que com quem falo na realidade é o que diz: “tornei-me progressivamente um bibliodependente. Intelectualmente, emocionalmente. Fisicamente.”
O João Serra nestes “MUNDOS PARALELOS”, consegue transportar-nos aos tempos da sua juventude, ao que leu, como o viu e sentiu, com a sensibilidade própria a que já nos vem habituando. Apesar de ter um pouco de mais idade encontro-me com ele no acesso a determinada literatura; na leitura do romance a Dama das Camélias eu poderia citar certas obras de Eça de Queirós em que me aconteceu o mesmo com o meu Pai.Emílio Salagari também li, as aventuras do Sandokan o Tigre da Malásia, só que anos antes, e quando se deu o caso do Santa Maria eu tenho já 19 anos e consciência do que se passa.
O que nos descreve do efeito nele provocou a leitura do Guerra e Paz é talvez semelhante ao que se passa comigo ao ler A Selva e Os Emigrantes, na altura do meu 5º ano do Liceu.
O sempre amigo
João Ramos Franco
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Manuela Gama Vieira disse...
Nesta trilogia o autor dá conta da descoberta através dos livros, de três estádios- “mundos paralelos”- o Amor/paixão, a Aventura (esta, a do S.ta Maria, permitiu-lhe interrogar-se...), e a Magnanimidade do carácter.
O saltitar insaciável entre estes mundos escritos por outros, e logo por si imaginados ao correr das letras,deu-lhe a "chave" para nunca mais parar!"Alcança quem não cansa"...já dizia Aquilino Ribeiro.Muitos parabéns!
Manuela Gama Vieira
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Fátima Clérigo disse:

Muito interessante este relato do João Bonifácio Serra, fazendo jus à qualidade da sua escrita - sábia e cuidada.

Fátima

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João Jales disse:

Mascarada sob a forma de uma crónica literária temos o relato de uma época, de um regime, de um conceito de educação, da literatura como forma de libertação dos condicionalismos temporais e geográficos e de uma forma de ver o mundo.
Um texto notável, como sempre, fazendo-nos lamentar que o João não "apareça" mais vezes, ele que tem sido um dos grandes responsável por este blogue não ser um mero mostruário de velhas fotografias e anedotas. E digo isto não só pelos seus textos mas porque ele, mais do que uma vez, elevou a fasquia e os objectivos deste espaço, levando muitos outros a darem o melhor de si próprios, resultando num blogue colectivo que ultrapassou as expectativas.
Aqui lhe desejo boas férias e lhe mando um abraço. JJ

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Isabel Esse disse...

Os posts de João Bonifácio Serra,que também sigo no seu site,são sempre muito cheios de significado e resultado certamente de profundas reflexões.Nunca são simples descrição de uma coisa apenas,tem razão o JJ que sabe dizer isto melhor do que eu.
Eu sei que gostei muito e ainda bem que ele atendeu o nosso pedido para continuar o post anterior! IS

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5 comentários:

VT disse...

Excelente! Excelente! Excelente!
O João de "uma assentada" faz análise sociológica e histórica de uma época - em paralelo com as descobertas e emoções do jovem de então. Faz eco dentro de cada um de nós porque habilmente nos relembra também a qualidadade quase mágica com que vivíamos, na altura, certas situações.
Parabéns
Abraço
VT

J.L. Reboleira Alexandre disse...

Sublime, esta análise de uma época por parte de João Serra. Como menciona o assalto ao Santa Maria, e eu, na inocência dos meus 10 anitos da altura, ainda não lia as aventuras de Sandokan (não tardou muito no entanto, logo que iniciei o secundário no ano seguinte),o evento chocou-me imenso ao pensar quanto um dos meus familiares mais próximos, embarcadiço no mesmo, poderia sofrer com a acção dos «bandidos» (as aspas estão talvez a mais).
Foram momentos muito complicados para os meus primos, sobretudo o Zé, mais velho, e para a minha tia, na altura. Como aliás para outros habitantes da aldeia, tantos eram os colgegas do meu tio, no navio.

Sem querer entrar em polémicas, entendo no entanto que, hoje como ontem, ninguém tem o direito de pôr em risco a vida de inocentes, por mais nobres que sejam as razões que movem tais actos.

João Ramos Franco disse...

Como amigo e nas circunstancia em que nos conhecemos, tenho mantido uma convivência salutar, respeitando-o com consciência de que com quem falo na realidade é o que diz: “tornei-me progressivamente um bibliodependente. Intelectualmente, emocionalmente. Fisicamente.”
O João Serra nestes “MUNDOS PARALELOS”, consegue transportar-nos aos tempos da sua juventude, ao que leu, como o viu e sentiu, com a sensibilidade própria a que já nos vem habituando.
Apesar de ter um pouco de mais idade encontro-me com ele no acesso a determinada literatura; na leitura do romance a Dama das Camélias eu poderia citar certas obras de Eça de Queirós em que me aconteceu o mesmo com o meu Pai.
Emílio Salagari também li, as aventuras do Sandokan o Tigre da Malásia, só que anos antes, e quando se deu o caso do Santa Maria eu tenho já 19 anos e consciência do que se passa.
O que nos descreve do efeito nele provocou a leitura do Guerra e Paz é talvez semelhante ao que se passa comigo ao ler A Selva e Os Emigrantes, na altura do meu 5º ano do Liceu.
O sempre amigo
João Ramos Franco

Manuela Gama Vieira disse...

Nesta trilogia o autor dá conta da descoberta através dos livros, de três estádios- “mundos paralelos”- o Amor/paixão, a Aventura (esta, a do S.ta Maria, permitiu-lhe interrogar-se...), e a Magnanimidade do carácter.
O saltitar insaciável entre estes mundos escritos por outros, e logo por si imaginados ao correr das letras,deu-lhe a "chave" para nunca mais parar!
"Alcança quem não cansa"...já dizia Aquilino Ribeiro.
Muitos parabéns!
Manuela Gama Vieira

Isabel Esse disse...

Os posts do Dr. João Bonifácio Serra que também sigo no seu site,são sempre muito cheias de significado e resultado certamente de profundas reflexões.Nunca são simples descrição de uma coisa apenas,tem razão o JJ que sabe dizer isto melhor do que eu.
Eu sei que gostei muito e ainda bem que ele atendeu o nosso pedido para continuar o post anterior! IS