Presumo que, por serem consideradas potencialmente mais perigosas do que os ringues, para a boa conservação dos vidros, não eram permitidas bolas no recreio masculino e pronto! Vai daí, perfilou-se a inevitável alternativa: ai não se pode com bolas? Então vai mesmo com calhaus!
Tabelas de básquete, velha aspiração do Prof. Silva Bastos, só apareceriam, finalmente, para aí nos idos do meu 5º ano; balizas de andebol, idem, aspas. Donde que nem sequer era muito de espantar a aversão do Director às redondinhas. A sina estava traçada: de pedras nos serviríamos, com pedras se jogaria. Os resultados não demorariam a fazer-se sentir. O primeiro deles manifestou-se logo nas contas de sapateiro a aumentar exponencialmente. Eis porquê botas resistentes (de ilhós, de cano alto, de salto de prateleira, etc.) eram tão indispensáveis e recomendadas como as blue-jeans. Em jeito de complemento, depois das aulas, também se disputavam, na Mata, assanhadas futeboladas, agora com bola e tudo, primeiro em regime de muda aos 5 e acaba aos 10, mais tarde com prévio ajuste da duração da partida. (O efeito combinado destas duas performances revelar-se-ia desastroso para os calcantes e para a economia familiar).
A evolução técnica intramuros não tardou: das rudes arestas do calcário de calçada passou-se para os seixos (a sonhar com a suavidade do couro ou da borracha), seixos esses nos quais dedicados garimpeiros tinham procurado a perfeição tendencial da esfera e uma consistência mineralógica imaculada, sem veios, apta a garantir que as pelotas não se fenderiam. (É de espantar como esta vocação recolectora não foi aproveitada, por exemplo, para aulas práticas de Geologia, mas enfim...)
Aqui chegados, como descrever a saga de épicas batalhas campais, sem limite de intervenientes nos dois campos que se enfrentavam? Estes confrontos, do género «mais velhos contra o resto do mundo», e que apelavam a um misto de futebol, rugby e luta livre, eram pretextos para exercícios auto-regulados (não havia árbitro), de rija e democrática pancadaria, disfarçados de actividade lúdica em que todos molhavam o bico, com doses maciças de adrenalina e testosterona à solta. Porém, no meio desta barbárie, emergiram os virtuosos de inato talento, capazes da façanha de recolher no ar o «esférico» e pelo ar o cruzar para a zona de área, a cuja, em boa verdade, já que não havia guarda-redes (pudera!), era mais uma convenção mental do que espaço definido, uma espécie de terra-de-ninguém ou de toda a gente, tudo à molhada e fé em Deus, que, entre vivos e mortos, alguém há-de escapar! E claro, do projéctil pelos ares, mais a fúria assassina emprestada aos lances, resultaram os primeiros feridos em combate - cabeças partidas, dentes quebrados, pernas fracturadas... Os vidros de portas e janelas, no entanto, permaneciam impecáveis, testemunhas eloquentes, dando fé da não ocorrência de danos patrimoniais. As sacrossantas vidraças, preservadas como se de vitrais de igreja se tratasse, eram a prova provada do receio manifestamente exagerado que tinha presidido à interdição da «chincha» nos nossos folguedos. As ventanas estavam bem; cabeças, dentes, pernas, joelhos, canelas e artelhos, por acaso (só por acaso), nem por isso, mas não passavam de meros danos colaterais.
Evidentemente, quando o número de baixas declaradas se tornou gritante, o Director apercebeu-se de que tinha que tomar medidas quanto antes, dado que a situação passara a ser insustentável. Que diabo, se a coisa se soubesse na sua verdadeira dimensão na cidade, como é que se iria justificar a proibição de rapaziada nova jogar à bola, mais a mais no recreio? Complicado!... E as consequências catastróficas originadas pelo absurdo veto? Muito complicado!... De igual modo, não se podia perder a cara, porque a Autoridade estava, evidentemente, acima de tudo. Como proceder? Muito, muito complicado!... (É nestas conjunturas que se pode avaliar melhor, coitados deles, a angústia dos detentores do Poder - «se soubessem o que custa mandar, gostariam de obedecer toda a vida», como dizia o Manholas de Santa Comba). A solução, inspirada e Providencial (seja aqui permitida a maiúscula), rompeu como a luz nas trevas, sob a forma de um objecto da família das raquetes, que apresentava a peculiaridade de lhe ter sido introduzido um buraco destinado a licenciar apenas e tão só as bolas que passassem pelo seu interior. Aquele aro com punho era pois um instrumento aferidor e teve direito a périplo pelas salas de aula com exibição, explicação e demonstração abrilhantada pelo Padre Albino. Era a pequena bitola da grande Ordem instituída. Forçada esta a ceder, mitigava o que era possível, esforçando-se por nunca perder o pé... Sabe-se que o ridículo mata, mas infelizmente os seus efeitos letais não são fulminantes. Portanto, lá se teve que aguentar durante uns tempos tão obnóxio dispositivo, o qual viria a desaparecer rapidamente de cena, tal era o desajuste com a realidade. Da dimensão e das implicações desta inegável vitória creio que nem nos apercebemos muito bem. A gente só queria poder jogar em paz e até isso, pelos vistos, constituía um potencial delito!
Hoje em dia, quando se abusa do mais despudorado e imbecil recurso à violência gratuita através de videojogos, talvez se pudesse adaptar e transpor para as consolas, esta nossa prática, sem dúvida bem mais inocente e excitante, comercializada com um título apelativo: «Rockball - A Street Game»! Se calhar, era a nossa fortuna...
João Jales disse:
A proibição da utilização de bolas no recreio é talvez um dos exercícios de autoridade mais idiotas a que assisti na minha vida no Colégio. A quebra eventual de um ou outro vidro não justificava que se privassem uma centena de rapazes do direito de jogar futebol nos intervalos. Fechar os olhos a que isso se fizesse com pedras não tem adjectivos…
O texto do Zé Carlos é realmente muito divertido e retrata bem o que se passava. Espero que lho digam, para que ele atenda mais vezes os pedidos de colaboração.
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Fernando disse:
Não conheço o José Carlos Faria, mas com este texto demonstra ser um bom e bem humorado prosador..
Felicito-o e pode continuar que os leitores agradecem.
Fernando Santos.
05-06-2008
Alberto Reis Pereira disse:
Brilhante, simplesmente brilhante!
Alberto Pereira
Miguel B M disse:
Fiquei siderado com o que o ZCFaria escreveu. Mas o ERO não era aquele sítio em que só havia betinhos, meninos copo de leite e mariquinhas (além de futuros fachos)? Que nos intervalos faziam costura e discutiam roupas? Pensei que esse desporto tivesse sido praticado na Escola, por verdadeiros machos, pés descalços e esfomeados (em quem é que me inspirei para escrever isto?).
ZC, estiveste brilhante. O teu texto relata bem as sevícias a que fomos sujeitos e a absurda autoridade que existia na altura. Mas os alunos do ERO afinal de mariquinhas não tinham nada e se houvesse dúvidas bastava ler o que escreveste. Não eram quaisquer uns que tinham cabedal para aguentar aquela violência, continuar inteiros e no dia seguinte estarem prontos para mais. Acrescento que em minha casa também houve aumento da conta do sapateiro onde a minha mãe encomendou inclusive um modelo de botas reforçado especialmente para o efeito.
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06-06-2008
Maria João Gomes disse:
“Cada terra com seu uso”
Na falta de bola, nas Caldas usavam-se bolas de pedra e, segundo consta aqui em Maputo, o Eusébio usava bolas de trapo.
Gostei muito Zé, já tinha saudades da tua escrita, tens que te tornar um “escritor” mais assíduo. Bjs. MJoãoGomes
Bjs. Isabel Caixinha
1 comentário:
Terá sido pelo facto de já não aguentar das canelas a guarda-redes que o Tó-Quim depois se dedicou à actividade de árbitro? E com tanto desvelo que não se livrou de outras "caneladas", estas verbais e em bom português vernáculo, inclusive minhas, que acabei por reconhecer (algum tempo depois, diga-se em verdade) que o Tó-Quim dominava as regras, ao contrário de mim e que, regra geral, tinha razão.
Quanto ao texto do Zé Carlos, mais não é do que o retrato fiel de uma época e da forma como nós, adolescentes de então, torneávamos com bastante criatividade algumas regras que nos eram impostas e que não tinham qualquer sentido.
Ah, é verdade... nem vos digo das contas do sapateiro nem dos raspanetes (não me lembro se acompanhados de um ou outro tabefe) que apanhei dos meus pais.
Um abraço
Oscar
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