por Mário Gonçalves
O Dr. João Vieira Pereira, recordado e solenemente homenageado no centenário do seu nascimento, foi um Médico que reuniu em si um amplo conjunto de qualidades que reconhecemos como o modelo referencial. No dia 2 de Setembro de 1908 nasceu o que viria a ser um Homem Bom que como tal se revelou bem cedo logo quando fez a opção pelo exercício da Medicina sobretudo inspirado “ pelo encanto que lhe despertou a vida dos Médicos que conheceu, não só pelo desinteresse material da vida mas pelo espírito de sacrifício e pela bondade que o Médico tinha ou parecia ter”. Foi com este chamamento que o Dr. João Vieira Pereira traçou todo o seu percurso de vida: a hombridade foi o seu atributo, cumprir a vocação a sua elevada exigência, conferindo-lhe um sentido de dádiva que foi preenchido com generosidade, abnegação, solidariedade, com verdadeira devoção.A ligação do Dr. João Vieira Pereira ao mundo rural, vivida no início da sua actividade clínica nas Freguesias de Alvorninha e de Alfeizerão(1934/1938), deixaram-lhe marca indelével naquele primeiro tempo em que foi ao encontro do seu ideal de ser Médico. Décadas decorridas, afirmava o Dr. João Vieira Pereira: “Com isto tudo e depois de 58 anos de labor, direi: Sinto saudades da Clínica Rural com as suas dificuldades, o espírito de sacrifício, as caminhadas, as chamadas nocturnas, os partos no domicílio, os perigos e as canseiras, o afogamento, duas fracturas da bacia, uma rotura tendinosa num joelho, um trabalho sem férias, sem feriados, sem horários, sempre às ordens e ao serviço do Povo, sem chegar a ser rico. Mas eu queria voltar atrás, não para querer mais nem querer melhor, só queria apenas repetir-me...”
Esta tão significativa mensagem, esta reflexão, elucida sobre a sua vontade de estar para servir a qualquer momento e em qualquer lugar, sem desvanecimentos, correspondendo ao apelo que interiorizou como sendo o seu dever, comungando das alegrias, dando vidas, a cura, partilhando também os sofrimentos, dando o conforto perante as eventuais adversidades que por vezes atormentam o exercício da Profissão.
A entrega tão franca destes bens inestimáveis evidencia a convicção e a coerência que acompanharam o Dr. João Vieira Pereira quando exerceu, com igual eficiência, a clínica rural, que aliás manteve de forma duradoura, e a clínica de feição urbana.
A sua vinda para as Caldas da Rainha ocorreu em 1938, ano em que iniciou a actividade clínica na Associação de Socorros Mútuos Rainha D. Leonor, Instituição onde criou, logo em 1939 e a expensas suas, um gabinete de electroterapia, tendo adquirido então, para além do equipamento próprio, também um gerador eléctrico, dada a então precária distribuição geral de corrente eléctrica na Cidade. O mesmo gerador proporcionou a realização dos primeiros bailes com luz eléctrica que se efectuaram no grande salão que existia no Montepio. Um sucesso, no dizer humorado do Dr. Vieira Pereira.
Desde o início da sua estada nas Caldas, foi de facto com o Montepio que estabeleceu um elo que se tornaria cada vez mais forte, numa ligação em que os aspectos profissionais se harmonizaram sempre com a sua natural afectividade.
O Dr. João Vieira Pereira complementou os seus conhecimentos clínicos por incentivo de realização profissional e também por marcado espírito de serviço. O seu curriculum clínico, formal, é revelador da diligência com que prosseguiu a sua própria formação, acrescentando-lhe competências que lhe permitiram assumir o desempenho de actividades médicas especializadas. Com a sua participação efectiva verificaram-se avanços em sectores médicos que, à época, representaram, tanto a nível local como regional, factores de inovação que resultaram em benefício das populações que, deste modo, passaram a estar assistidas com mais proximidade e melhor qualidade.
Assim e por mérito próprio, o Dr. João Vieira Pereira pôde exercer e quase sempre acumular, para além das responsabilidades próprias de Médico de Clínica Geral, as de Médico de Saúde Pública e dos Serviços Médico-Sociais, de Médico Radiologista e Anestesiologista, continuando a cumprir com denodo, sem reservas, o seu percurso de Vida sempre inspirado pela sua fé, fonte das suas convicções. “Não há melhor maneira de descansar do que a mudança de trabalho”, dizia o Doutor João Vieira Pereira.
Integrou como Anestesista, a primeira equipa cirúrgica que se constituiu no Montepio, da qual também faziam parte o Dr. Ernesto Moreira, o Dr. Mário de Azevedo e Castro e mais tarde o Dr. Jovalino Vieira Lino. A notoriedade do trabalho realizado em conjunto, propiciou que fossem distinguidos com a Medalha de Prata de Gratidão e Mérito, conferida pela Câmara Municipal das Caldas da Rainha em Sessão Solene realizada em 11 de Março de 1981, na comemoração do 121º aniversário do Montepio Rainha D. Leonor.
Sublinhe-se também, por imperativo de justiça, que o Montepio foi, nas Caldas da Rainha, a Instituição pioneira na prestação de serviços no domínio da Radiologia, por virtude da oferta do respectivo equipamento, efectuada no ano de 1943, por um núcleo de Sócios apaixonados pelo Montepio. O Dr. João Vieira Pereira foi o responsável do Serviço assim criado, assegurando-lhe todo o seu apoio, numa disponibilidade permanente confirmativa de que as competências por si adquiridas estavam efectivamente ao serviço da Instituição. Verificamos à distância que foi a generosidade de alguns Sócios conjugada com a acção compreensiva e constante de um Médico, que permitiram fundar, no Montepio, uma unidade de Radiodiagnóstico que, com o decorrer dos anos, evoluiu para uma unidade de Imagiologia de ponta, mercê de uma adequada e progressiva modernização dos seus equipamentos e da imprescindível intervenção de recursos humanos técnica e profissionalmente qualificados.
A grande dedicação do Dr. João Vieira Pereira ao Montepio foi sendo consolidada ao longo de décadas por razão de uma vivência, de uma identidade de ideais que suscitaram no Médico a vontade de contribuir para o progresso da Instituição, através de uma colaboração profissional entusiástica, ao ponto de o próprio Dr. Vieira Pereira afirmar, carinhosamente, que “Mais de metade da minha vida foi ali passada” motivo porque o Montepio se tornou “um inimigo” pois lhe roubava muito tempo, impedindo-o de estar com a Família. A compensação que aqui recebeu por este devotado labor não foi de natureza material mas antes traduzida em gestos de desvelo, em manifestações de apreço pelas qualidades de abnegação e de altruísmo que foram, afinal, as que constituíram a sua verdadeira riqueza.
Não causou assim surpresa que tenha sido o Montepio Rainha D. Leonor a tomar a iniciativa de promover a Comemoração do Centenário do Seu Nascimento, preenchendo-a de Solenidades que prestaram Homenagem ao Médico que cumpriu a Vida cultivando a fé, a probidade, o saber, a modéstia, virtudes que identificam o Homem Bom que sempre foi o Dr. João Vieira Pereira. O descerramento do seu busto, da autoria do Mestre Ceramista Herculano Lino Elias e a inauguração do mais moderno equipamento de Radiodiagnóstico no Serviço que muito justamente tem já o seu nome, representaram uma forma de o Montepio tornar perene a sua memória, lembrando que este Homem Solidário serviu, de alma e coração, esta Instituição de Solidariedade.
Os Valores que nos foram transmitidos pelo Dr. João Vieira Pereira, não se confinaram aos do seu exercício profissional: no seu legado encontramos outros talentos que reflectem a sua grande sensibilidade, a diversidade dos seus interesses intelectuais dedicados ao coleccionismo (foi um distinto coleccionador filatélico e numismático e de miniaturas dos Mestres Ceramistas Eduardo Elias e Herculano Elias), à fotografia, às actividades artísticas e culturais, ao gosto pela escrita que tão cedo se manifestou quando ainda era aluno liceal e que prosseguiu através da colaboração em Jornais e em Revistas Médicas. Nas Caldas da Rainha, conforme revelado de forma oportuna, excelente, pelo Dr. João Serra, foi o fundador de “O Progresso”; na poesia encontrou forma de exprimir sentimentos, talvez sobretudo os de índole mais íntima. O seguinte poema traduz uma síntese de vida: “Colhi rosas, colhi espinhos,/dias e noites sem descanso/percorri árduos caminhos para fazer hoje o meu balanço./Anos de clínica rural/a valer-me dos meus fracos recursos/foram a fase baptismal dos meus benéficos percursos.”; a afabilidade, o sentido de humor, a serenidade, a sua simpatia, reflectiam uma imensa capacidade de estima.
Os bens imateriais tão generosamente doados pelo Dr. João Vieira Pereira, constituem um património inestimável, uma herança colectiva que é imperioso salvaguardar. As Cerimónias que decorreram, presididas por individualidades da mais elevada representatividade e com a comparência tão expressiva e qualificada de presenças, constituíram a confirmação inequívoca de que são sentimentos como os de gratidão, de respeito, de sincera admiração, que criaram o claro consenso de louvor dedicado ao Médico que enobreceu a sua Profissão, servindo-a.
Homenagear o Dr. João Vieira Pereira no Centenário do Seu Nascimento, enaltecendo a sua dignidade, representou um perfeito acto de Justiça.
Quando, numa visão prospectiva, nos surge a dúvida sobre se será inexorável a degradação das sociedades, sentimos que a experiência ancestral acumulada conserva os ditames que, em contínuo, hão-de contribuir para obviar a deterioração das qualidades humanas. Esta expectativa firma-se quando recorremos às boas memórias, lembrando a exemplaridade das Pessoas que, à sua dimensão, nos transmitem a confiança de que vale a pena acreditar na prevalência dos Valores.
Na data memorável do seu Nascimento e para sempre, Honra ao Dr. João Vieira Pereira!!!
Caldas da Rainha, 2 de Setembro de 2008
* Mário Gonçalves
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