ALMOÇO / CONVÍVIO

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Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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O Padre Renato – 4 histórias, uma nota de leitura, uma breve reflexão e uma “velha” fotografia

por João Serra

Os comentários generosos dos militantes deste blog estimulam-me a voltar à figura singular do Padre Renato André Ramos. Permitam-me pois que partilhe convosco quatro histórias curiosas e exemplares, uma nota de leitura, e algumas interrogações que esta personalidade me suscita.

1ª história – ainda o hipnotismo

Às histórias engraçadas, por vezes com traços cómicos, aqui contadas tenho algo a acrescentar. O Padre também fazia demonstração das suas capacidades invulgares sem, aparentemente, recorrer à hipnose. Para isso, fechava a mão em concha e cruzava-a por cima de uma das nossas, a cerca de 4/5 centímetros de distância. Ao fim de algum tempo, variável, a “cobaia” sentia nas costas da mão, num local para onde convergiriam hipoteticamente os “raios” concentrados da mão sobreposta, uma espécie de alfinetada. Nalguns casos, essa picadela provocava uma ligeira inflamação, detectável a olho nu.
Frequentei as aulas de Latim integrado na turma de Germânicas. A nossa colega Ema sofria de asma e muitas vezes chegava às aulas, na primeira hora da manhã, em dificuldade respiratória. O Padre Renato mandava-a sentar à frente, e fazia com ela a operação que atrás descrevi. Continuava a dar a aula enquanto a sua mão de dedos grossos e peludos quase ocultava a da aluna. Ao fim de algum tempo, a Ema serenava e a aula retomava o seu ambiente e ritmo habituais.

2ª história – aulas extra-curriculares

Recuperei a “honra perdida” junto do Padre Renato quando fui seu aluno a Latim, no 6º e 7º anos. No derradeiro período do 7º, enquanto procedia a revisões da matéria dada e insistia em procurar colmatar os pontos fracos dos alunos, o professor dispensou-me de assistir a aulas. - Vai ter comigo, depois de jantar, à residência paroquial, ordenou-me. No último trimestre do ano lectivo de 1965/66 eu ficava durante a semana nas Caldas, num quarto alugado na Rua da Electricidade. O Padre Renato recebia-nos (a mim e ao José António Ribeiro Lopes que estava a preparar a alínea de direito) numa sala e punha-nos a transcrever para português o De Bello Gallico de Caio Júlio César. Antes lia, em voz alta, teatral e enlevado, aquela prosa latina, como se de literatura se tratasse. Depois escolhia um capítulo e deixava-nos entregue ao nosso trabalho de o traduzir. Absorvidos naquela espécie de puzzle, era sempre em sobressalto que éramos despertados por uma das suas ruidosas gargalhadas. O Padre Renato era um apaixonado de banda desenhada e ria até às lágrimas com as aventuras do Tim-Tim.

3º história – o Latim que me ensinou

Foi tão proficiente no ensino do Latim, que vim a tirar no exame uma classificação impensável. Como se nesta língua morta eu tivesse encontrado uma compensação para o inêxito do canto coral.
Seja como for, essa habilitação veio a constituir para mim uma oportunidade inesperada. Percebendo como eram bem pagas as explicações de Latim, abalancei-me a essa tarefa em Lisboa. Em breve tinha uma pequena turma de alunas do Colégio Sagrado Coração de Maria a quem ajudava a fazer a sua preparação para o exame de Latim. O Padre Renato habilitara-me, com aquela língua morta, com o primeiro instrumento de trabalho intelectual que exercitei.

4ª história – o amigo corajoso

Em 14 de Julho de 1971, o José António Ribeiro Lopes foi preso pela PIDE/DGS. Segundo um comunicado da época, a polícia foi prendê-lo em casa, às 7 da manhã, e, como sempre acontecia, sem mandato de busca nem de captura. Era então estudante finalista (5º Ano) do Curso de Agronomia. Compareceu a julgamento no Tribunal Plenário da Boa Hora, a 17 de Fevereiro de 1972. Entre os que corajosamente fizeram depoimentos em sua defesa, ergueu-se um homem diferente, na indumentária e nas expressões, de todas as restantes testemunhas. Era padre. O Padre Renato André Ramos.

Uma nota de leitura

Em Julho de 1997, veio a lume, nas Caldas da Rainha, uma obra intitulada Redigir Correctamente. Estudo Através duma Narrativa Cheia de Cenas Imprevisíveis. Livro de 160 páginas, contendo desenhos, vinha assinado, na ficha técnica – “Renato André Ramos, Pároco de Tornada, Caldas da Rainha”. Para que se compreenda o propósito da publicação e o espírito que presidiu à sua elaboração, transcrevo um trecho do apontamento final dirigido a um “jovem, bom amigo”:
Julgo que já foi banido o antigo sistema: “… e o trabalho de casa será uma redacção sobre isto ou aquilo …”
Penso que se evoluiu. Que os alunos inclinados para a iniciativa, são estimulados a investigar …ou a procurar dados, informações, etc. Tudo fora da Escola e em ordem a uma redacção a fazer na aula. Na aula e com o senhor professor presente. Presente e disponível para atender cada aluno que lhe peça ajuda.

Interrogações

Todos os depoimentos surgidos neste blog sublinharam a imagem forte e a personalidade rica e complexa do Padre Renato. Mas é verdade que nenhum de nós o conheceu bem, nem podia conhecer. Afinal todos o conhecemos quando tínhamos idades compreendidas entre os 10 anos e os 17 (no máximo) e ele era um homem feito. Nenhum de nós foi seu confidente ou amigo e nenhum de nós manteve com ele um relacionamento intenso para lá da fase em que foi seu aluno.
De qualquer modo, todos nos apercebemos hoje de que estivemos perante um homem de múltiplos talentos: a música (canto e instrumentos, nomeadamente piano e órgão), o desenho e a pintura, as humanidades clássicas, o português. Tivemos diversos padres como professores, mas nenhum, creio, com a preparação cultural e a polivalência do Padre Renato. A pergunta que se segue é: porque motivo este Padre, que poderia ser professor do Seminário ou Maestro de coros ou organista em Lisboa, foi colocado numa modesta paróquia provincial, ali permanecendo décadas?
Haverá certamente quem pense que na raiz do afastamento do Padre Renato de um grande centro, como Lisboa, pode estar o seu feitio truculento, esse “demónio” que alguns testemunharam à solta em certos momentos nas suas aulas. Talvez tenha razão. Mas poder-se-á também tentar inverter os dados da equação e tomar as irrupções temperamentais como consequência e não como causa. Se assim fosse, associaríamos o desterro do Padre Renato a uma condenação humilhante infligida a uma personalidade cujo brilho terá parecido a muitos como ofuscante e porventura excessiva. Muitas vezes me ocorreu que a humildade a que o Padre Renato se condenava poderia ser assimilada à auto-flagelação a que algumas comunidades monásticas se dedicavam.

3 comentários:

Anónimo disse...

Confesso que ainda ando um bocadito à toa, perdida no blog. Já tinha passado por aqui, mas não 'comentei' e retornei. Para dizer que estas 4 histórias do Padre Renato me encantaram.

Aliás, todas as entradas sobre o Pe Renato merecem 20 valores!

Se é aqui que deixo uma anotação, é porque a figura que conheci tinha, a par de uma grande humanidade, uma aura de mistério. E, de certo modo, este belíssimo texto responde a perguntas que gostaria de ter feito ao meu Amigo Padre Renato. Obrigada, João Serra!

Anónimo disse...

Que saudoso, relembrar o meu grande amigo Sr. Padre Renato... hoje as saudades levaram-me a escrever o seu nome numa pesquisa que julgava infertil, nem queria acreditar... um blog de memórias, histórias e saudades. Hoje ao ler estas "memórias" quanse que senti a sua mão em "forma de concha" que tanta curiosidade e admiração nos trazia.
Saudades
Susana Lindinho Azevedo- Tornada

Francisco (freguesia de Tornada) disse...

Por um acaso lembrei-me de fazer uma pesquisa com o nome do Padre Renato Ramos. E tive esta agradável surpresa. É muito difícil conseguirmos quantificar a importância que alguém tem na nossa vida mas posso com toda a certeza afirmar o seguinte: o Padre Renato foi uma das presenças mais marcantes e positivas na minha vida. Penso nele como um avô espiritual. Tive a honra de conviver com ele entre os meus 10 e 15 anos e posso afirmar que a sua generosidade e cultura eram extraordinárias. Podia dizer tantas coisas sobre esse homem, que foi meu catequista, meu explicador de francês, meu amigo.
Ele inspirou-se em mim para uma das personagens de "Redigir Correctamente". Eu era o rapaz do rato, o comediante de serviço, que ele tão bem caracterizou.
Lembro-me do dia em que faleceu. Lembro-me que ainda não o tinha ido visitar e ia fazê-lo e sei que cheguei ao hospital pouco tempo depois de ele fazer e soube que ele tinha partido.
Obrigado pela memórias.