ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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TRISTANA

“Tristana”, por Isabel Xavier

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Era uma noite chuvosa de Inverno. Já atrasados, como sempre, os manos Xavier fecharam a porta de casa com estrondo e correram para as escadinhas do Beco da Boa Vista, a caminho da Praça 5 de Outubro. Iam ao cinema. Aliás, rara era a semana em que não assistiam aos filmes que então (anos sessenta - setenta), passavam nas Caldas, no Teatro Pinheiro Chagas ou no Salão Ibéria.
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No cimo do primeiro lance de escadas havia, nessa altura, um candeeiro de iluminação pública. Agora ou não há candeeiros, que é o caso, ou os que há têm uma luz muito fraca. Presentemente, para andar nas Caldas, à noite, a não ser à frente do CCC, só tacteando…
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Quando estava prestes a alcançar o primeiro patamar, eu resolvi agarrar-me com veemência ao corrimão de metal, pintado de verde, molhado, com a minha mão esquerda, empenhada em ultrapassar os meus irmãos. Foi quando senti um forte esticão que da mão alastrou ao braço. Já o chapéu-de-chuva rolava pelas escadas enquanto eu, gritando e soltando-me, esfregava furiosamente a mão e o braço esquerdos com a mão direita.
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O Mário, que naquele tempo sabia quase tudo, pelo menos era o que a mim me parecia, sentenciou:
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- “Tiveste sorte por calçares essas botas de solas de borracha. Caso contrário, terias morrido, aqui e agora, à nossa frente. Nenhum de nós poderia sequer ajudar-te porque se te agarrássemos, morreríamos também.”
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Imaginei logo a cena, ou “vi logo o filme todo”, como preferirem: eu aos esticões; a Helena, desconhecedora desses mistérios científicos, procurando ajudar-me e logo impedida de o fazer; os meus irmãos impávidos e serenos, assistindo à minha morte, para espanto de todos, incluindo o meu…
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A partir daqui já não “vi” mais nada, impedida de dar largas à imaginação pela pressão do tempo. Tínhamos que escapar dali o mais rapidamente possível, se ainda queríamos chegar ao cinema a horas minimamente aceitáveis. O que vale é que costumávamos ocupar um camarote e, assim, não incomodávamos tanto os restantes cinéfilos.
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Da adolescência, nada surge a meus olhos como uma perda a não ser os filmes, a rotina da ida ao cinema e das acaloradas discussões que a seguir tínhamos sobre o filme recém-visto. Todos muito “intelectuais”, ou com pretensões a sê-lo, o que em si mesmo não é mal, pelo contrário, queríamos ser mais do que éramos e “trabalhávamos” para isso. Era uma atmosfera, uma vivência, bem giras.
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Víamos filmes de Fellini, de Ingmar Bergman, de François Truffaut, de Buñuel…
Deste último recordo com enorme nitidez o filme “Tristana”, com Catherine Deneuve no seu melhor (quando é que ela não estava no seu melhor?). Um filme sobre o amor e o ódio, sobre a vingança e o perdão. Lembro-me da determinação com que ela escolhia sempre uma de duas coisas com que se deparasse: duas ervilhas no prato, por exemplo. Só comia uma delas. Os gestos do quotidiano elevados a actos simbólicos! Que génio!
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Já nem o Pinheiro Chagas ou o Ibéria cá estão para nos “contarem” a sua história! Onde é que estão esses filmes? Porque é que só no cinema King (e poucos mais) e, agora, também nas Caldas, no CCC, às segundas-feiras, é que há filmes de origem europeia e de países para além dos E.U.A.?
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Já não sei dizer que filme vi naquele dia do choque. Sei que mantive um teimoso e coerente amuo relativamente aos meus irmãos durante toda a sessão: afinal não é todos os dias que a vida nos é salva por umas simples e adequadas solas de sapatos quando se está rodeada de irmãos por todos os lados! Mesmo que teoricamente seja esse o comportamento correcto, nós esperamos sempre mais do que o frio cumprimento das regras de conduta, ainda que sejam as que o conhecimento científico nos indica, pelo menos da parte dos nossos irmãos...
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- Isabel Xavier -
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C O M E N T Á R I O S
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João Ramos Franco disse...
A Isabel Xavier, para nos falar de “Tristana” e de Buñuel, transporta-nos primeiro ao ambiente envolvente de hábitos familiares, às Caldas da Rainha da sua juventude, as salas de cinema Teatro Pinheiro Chagas ou Salão Ibéria e com habilidade mostra-nos como não consegue ver a Cidade à noite actualmente, devido à falta de iluminação pública…
O seu texto tem uma citação a como nós na juventude começamos a partir para a tentativa do ser “intelectual”, de que gosto bastante: “Da adolescência, nada surge a meus olhos como uma perda a não ser os filmes, a rotina da ida ao cinema e das acaloradas discussões que a seguir tínhamos sobre o filme recém-visto. Todos muito “intelectuais”, ou com pretensões a sê-lo, o que em si mesmo não é mal, pelo contrário, queríamos ser mais do que éramos e “trabalhávamos” para isso. Era uma atmosfera, uma vivência, bem giras”, pois parece-me o mesmo ter-se passado comigo…Outra realidade está nos realizadores que mais a marcaram no cinema que via, filmes de Fellini, de Ingmar Bergman, de François Truffaut, de Buñuel, etc."
Todos eles marcaram na 7ª arte uma época que ainda hoje é recordada.Não vi o filme “Tristana”, mas vi outros filmes de Buñuel, tal como o «Charme Discreto da Burguesia», que senão me engano ganhou um Óscar e outros filmes dos quais recordo o conteúdo mas não nome.
Termino este comentário com uma frase que a Isabel Xavier disse sobre o filme escolhido por mim para esta série.“Qualquer dia temos que combinar umas sessões cinéfilas!”
Um abraço amigo do
João Ramos Franco
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Luis disse...
Bunuel foi um realizador fantástico e Catherine Deneuve uma grande actriz.Lembro-me melhor de Belle de Jour e o Charme discreto da burguesia.
Também vi muito cinema no Chagas e no Ibéria e lamento o desaparecimento do cinema europeu das salas portuguesas.
A história da electrocução é um pouco assustadora,foi mesmo assim?
O artigo da Isabel é muito bom e gostei de rever a família Xavier!
LUis
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João Jales disse:
Baseado numa novela de Benito Perez Galdos, Tristana é a história (triste) de uma orfã (Catherine Deneuve) seduzida por um velho e aristocrático socialista (Fernando Rey). Depois de se apaixonar por um galã da sua idade (Franco Nero), Tristana fica doente (é-lhe amputada uma perna) e regressa para o velho Don Lope com quem casa. Desta estória da coxinha (literalmente), o genial Buñuel arranca um filme fantástico (só ele o faria), como habitualmente com laivos surrealistas, em que o Catolicismo, o Socialismo das bonitas palavras e as convenções sociais saem de rastos.
De rastos ficou também a Isabel com a aparente indiferença dos irmãos perante o seu infortúnio eléctrico, mas o episódio permitiu-lhe escrever este texto magnífico (que convém, como sempre, ler duas vezes), que eu muito apreciei porque consegue fazer o que eu por vezes tento, este entrelaçado entre as recordações pessoais e as memórias históricas e culturais. O estado de espírito da Isabel naquela noite paira sobre todo o post e pinta Tristana de cores bem negras... Ou é ao contrário?
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Isabel X disse...
Só para descansar os meus amigos: este texto não se deve a nenhum "estado de espírito" particular, nem depressivo. Pelo contrário, trata-se de uma espécie de "humor um nadinha negro", que decidi colocar neste texto, por graça. Escrevi-o, depois de muito ir pensando nele, num instantinho, durante a vigilância de um exame. Já que não se pode ler, escreve-se... Os meus irmãos nunca são indiferentes comigo, nem aparentemente. Uma das melhores coisas da minha vida foi ter sido criada numa família de seis irmãos, sendo eu a número cinco. Fez-me aprender desde cedo que não sou o "centro do universo", o que é uma aprendizagem fundamental para todo o ser humano e que, por vezes, nem a vida inteira chega para ensinar a certas pessoas. Claro que os meus irmãos me adoram e que eu adoro os meus irmãos. Foi apenas um exercício de estilo. Mas sim (Luís M.), apanhei ali um belo dum choque e o Mário explicou aquela coisa das solas dos sapatos. O resto é por minha conta, agora. Sei lá o que pensei na altura!
- Isabel Xavier -

3 comentários:

João Ramos Franco disse...

A Isabel Xavier, para nos falar de “Tristana” e de Buñuel, transporta-nos primeiro ao ambiente envolvente de hábitos familiares, às Caldas da Rainha da sua juventude, as salas de cinema Teatro Pinheiro Chagas ou Salão Ibéria e com habilidade mostra-nos como não consegue ver a Cidade à noite actualmente, devido à falta de iluminação pública…
O seu texto tem uma citação a como nós na juventude começamos a partir para a tentativa do ser “intelectual”, de que gosto bastante, “Da adolescência, nada surge a meus olhos como uma perda a não ser os filmes, a rotina da ida ao cinema e das acaloradas discussões que a seguir tínhamos sobre o filme recém-visto. Todos muito “intelectuais”, ou com pretensões a sê-lo, o que em si mesmo não é mal, pelo contrário, queríamos ser mais do que éramos e “trabalhávamos” para isso. Era uma atmosfera, uma vivência, bem giras”, pois parece-me o mesmo ter-se passado comigo…
Outra realidade está nos realizadores que mais a marcaram no cinema que via, filmes de Fellini, de Ingmar Bergman, de François Truffaut, de Buñuel, etc. Todos eles marcaram na 7ª arte uma época que ainda hoje é recordada.
Não vi o filme “Tristana”, mas vi outros filmes de Buñuel, tal como o «Charme» Discreto da Burguesia», que senão me engano ganhou um Óscar e outros filmes dos quais recordo o conteúdo mas não nome. Termino este comentário com uma frase que a Isabel Xavier disse sobre o filme escolhido por mim para esta série. “Qualquer dia temos que combinar umas sessões cinéfilas!”
Um abraço amigo do
João Ramos Franco

Anónimo disse...

Bunuel foi um realizador fantástico e Catherine Deneuve uma grande actriz.Lembro-me melhor de Belle de Jour e o Charme discreto da burguesia.
Também vi muito cinema no Chagas e no Ibéria e lamento o desaparecimento do cinema europeu das salas portuguesas.
A história da electrocução é um pouco assustadora,foi mesmo assim?

O artigo da Isabel é muito bom e gostei de rever a família Xavier!
LUis

Isabel X disse...

Só para descansar os meus amigos: este texto não se deve a nenhum "estado de espírito" particular, nem depressivo. Pelo contrário, trata-se de uma espécie de "humor um nadinha negro", que decidi colocar neste texto, por graça. Escrevi-o, depois de muito ir pensando nele, num instantinho, durante a vigilância de um exame. Já que não se pode ler, escreve-se... Os meus irmãos nunca são indiferentes comigo, nem aparentemente. Uma das melhores coisas da minha vida foi ter sido criada numa família de seis irmãos, sendo eu a número cinco. Fez-me aprender desde cedo que não sou o "centro do universo", o que é uma aprendizagem fundamental para todo o ser humano e que, por vezes, nem a vida inteira chega para ensinar a certas pessoas. Claro que os meus irmãos me adoram e que eu adoro os meus irmãos. Foi apenas um exercício de estilo. Mas sim (Luís M.), apanhei ali um belo dum choque e o Mário explicou aquela coisa das solas dos sapatos. O resto é por minha conta, agora. Sei lá o que pensei na altura!
- Isabel Xavier -