ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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NAUFRÁGIO NOS MARES DO TALVAI

Naufrágio nos «Mares do Talvai»,
no inicio da década de sessenta:


Como a velha Quinta do Talvai teve, em épocas mais gloriosas, a característica de ser o maior empregador da aldeia na cultura intensiva do arroz, nos tempos da minha jovem adolescência era vista como o local onde muitos dos pais dos miúdos da terra tinham ganho o sustento para muitos de nós. Se as histórias que os mais velhos nos contavam, sobre a forma como na altura se trabalhava, sobre as relações entre patrões e trabalhadores, ou entre os nativos da terra e os trabalhadores migrantes, os «bimbos», como ainda há bem pouco tempo eram chamados, muitos deles acabando por lá ficar através do casamento, não eram propriamente de embalar, o facto é que toda aquela área húmida do Chão da Parada, tinha sobre nós, miúdos, uma atracção muito especial.

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Quem passa hoje na estrada alcatroada para Salir, nota que naquela zona, os terrenos agrícolas estão num nivel inferior ao da via, hoje de alcatrão, naquele tempo de pedra e areia. A razão para a sobre-elevação da via é óbvia. Trata-se dum local de inundações frequentes.

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Ora, sendo a maior percentagem de terrenos agrícolas da aldeia possuída pela Quinta, todos os outros habitantes eram de forma geral proprietáriios de pequeníssimas parcelas de terra, geralmente de boa qualidade, mas tão distantes umas das outras, que o dia era praticamente perdido nas lentas viagens de burro de e para o brejo, os camarotos, as pôças ou o arneiro-pequeno da estação.

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Terra madrasta, como muitas outras do Portugal do inicio da década de 60, muitos dos homens adultos, viam que não seria ali que poderiam criar condições razoáveis às esposas e aos filhos. A solução era partir. Alguns atravessaram os Pirenéus, a salto, mas a maioria dos homens do Chão da Parada, emigravam para o mar. Assim, nomes como Santa Maria, Vera Cruz, Império, Infante Dom Henrique, e outros, que serviam de
êlo de ligação entre a Metrópole e as Colónias, para as gentes da terra eram sinónimos de ganha-pão e de pequenos luxos exóticos que de outra forma seriam inacessíveis às gentes humildes da minha aldeia. Basta pensar no prazer que eu sentia, quando, ao abrir as malas de meu pai, lá via umas bananas,uns ananases, algumas barras negras de puro chocolate de São Tomé, ou, luxo supremo, rolos de papel higiénico. Para não mencionar os relógios de marcas esquisitas, pequenos rádios portáteis adquiridos nos portos francos das Canárias (isto dos Off-Shores são história antiga), ou objectos de mais valor, como aconteceu com um dos meus ex-colegas da Bordalo, que, se nos ler se vai reconhecer. É que ele teve até direito a uma mota Honda de 50 Cms, a 4 tempos, vinda directamente do Japão, que debitava um som melódico maravilhoso, em nada parecido com o das nossas ruidosas Casal ou Zundapp, a 2 tempos, que faziam um barulho ensurdecedor. Finalmente, para as gentes da terra, partir, não de um aeroporto qualquer, mas do porto de Lisboa, era a coisa mais natural e fazia parte de nós.
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Como consequência desta forma de vida, eram as esposas, mães, que geriam a economia familiar, e faziam o melhor que podiam para, sòzinhas, e geralmente iletradas, educarem os filhos.

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A nossa vida de miúdos a partir dos 5 anos, chovesse ou fizesse Sol, era passada na rua. Acabadinhos de chegar da escola, aquecido e comido o prato de sopa que ficara da véspera, se houvesse «cheia» no Talvai era certo e sabido que o resto das nossas tardes seria passado a ver a água, sempre à espera que a mesma galgasse a estrada, ou então a construir barragens altíssimas em areia, no local onde hoje se encontra o edifício da Associação.

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Teria eu os meus 12 ou 13 anos, numa dessas tardes, após animada conversa com os outros garotos da minha idade sobre viagens de barcos e bateiras, eis que avistamos um velho bidão de gasóleo abandonado, num dos terrenos alagados, junto à ponte da Vala Real (hoje insignificante e quase invisivel, no meio da vegetação intensa). Incapazes de refrear impulsos próprios de miúdos daquela idade, logo ali tomàmos a decisão de ir buscar o improvisado barco e sentirmos o prazer e a liberdade de dominarmos aquilo, num equilibrio mais que instável, sobre as águas barrentas que cobriam a várzea. Sendo diminuto o espaço interior, cada viagem seria feita apenas por um passageiro de cada vez. Foram vividos momentos de prazer intenso, nas nossas curtas viagens de alguns metros, com o bidão bem dominado com o auxílio de um longo pau, que fincávamos no chão de lodo para o movimentarmos sobre as águas. Sentiamo-nos, qual Simbad, o maior de todos os marinheiros. De cada vez que partiamos ou voltávamos à margem, era como se o barco onde os nossos pais andavam, acostasse nos cais de Alcantara ou da Rocha do Conde de Óbidos.
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Mas o fim estava anunciado, e poderia ter sido bem triste, quando, estando eu em plena euforia no meio das águas turvas do «Atlântico», o barco por efeito de um qualquer movimento mais brusco começou a meter água e, claro, afundou. Encharcado dos pés à cabeça, lá me consegui dirigir para terra firme e sentei-me ao Sol de Novembro para ver se conseguia secar as roupas, antes de voltar para casa.
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Mas como os adultos têm sempre a mania de estar onde não devem, passa na altura uma conterrânea que, do alto do seu assento na albarda do burro, verificou que alguma coisa de errado se passava com o Zé Luis e, claro, fiquei logo ali a saber que a Mari Reboleira, minha mãe, teria conhecimento do sucedido. Fiquei naturalmente um pouco precocupado, mas como ainda andei mais umas horas com a roupa vestida, cheguei a casa já a noite ia alta mas relativamente bem seco.
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Ouvi um raspanete dos grandes. Eu que normalmente apanhava as gripes todas, nesse ano seria ainda pior. E depois, o que não ajudou nada foi mesmo a tentativa de ter tentado enganar a minha mãe, não lhe contando a verdade desde o inicio. E a sentença foi lida naquele instante:

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- Zé, sabes que eu nunca te bato, mas quando o teu pai regressar de viagem daqui a duas semanas ele vai ter que saber, e aí não me responsabilizo pelas consequências.

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É claro que desta vez, à chegada de meu pai não fui como habitualmente, vasculhar as malas à procura de prendas tropicais, nem vou aqui contar como se passaram as coisas nos momentos que se seguiram.

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Penso que no dia seguinte não fui à escola. É que a viagem para as Caldas ainda se fazia na altura numa velha bicicleta pasteleira, e o selim era de cabedal bem duro !

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O meu pai tem hoje 89 anos, e por vezes ainda se fala nesta aventura. Nem ele nem eu a esquecemos. O meu gosto pela água manteve-se no entanto intacto e o prazer que me continua a dar o ouvir bater as ondas na terra é o mesmo. Mas viagens em bidões de gasóleo, garanto-vos que nunca mais fiz.
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J. L. Reboleira Alexandre
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9 comentários:

Unknown disse...

Excelente Zé Luís
Soberbamente bem descrita esta tua aventura “nos mares do Talvai”. Fizeste-me reviver esses tempos de rigorosos invernos trazendo-me à memória, aquele particular inverno em 1966, que destruiu a ponte de madeira na Estrada Nacional em Tornada e a ponte sobre o rio de Salir na estrada Salir - S. Martinho, sobre as quais já referi numa estória que escrevi para o blog da Escola. E esta foi uma data que jamais esqueci porque nesse dia outro acontecimento marcou o nosso passado pois foi o dia em que “Os Magriços”, depois de estarem a perder por 3-0 com a Selecção da Coreia dos Norte, deram a volta ao resultado muito por acção do sempre recordado herói “Pantera Negra”.
Invernos esses em que S. Martinho se tornava num istmo só acessível pelo lado da Nazaré pois os campos da Quinta do Gama, Vale do Paraíso, Alfeizerão e Quinta do Talvai no Chão da Parada, por um lado e Salir do Porto por outro, até aos arredores de Tornada ficavam ligadas por água.
Crescemos nesse ambiente de embarcadiços, que na nossa zona formava um vasto triangulo que comportava Tornada, Nazaré e S. Martinho onde se incluíam todas as aldeias de permeio. Mas isto também já faz parte do passado, no tempo em que os comboios circulavam na linha do Oeste e paravam em apeadeiros e estações… agora nem em estações!
Um abraço amigo
A.Justiça

Unknown disse...

Belo texto, que me toca de sobremaneira porque a minha pool genética também tem a ver com esse lugar. O meu bisavô era do Chão da Parada e emigrou para o Pará com 13 anos, regressando com 40, o meu avô teve um casal no Bouro e imagino que muita gente com raízes aí é meu primo distante. Os jovens de hoje não podem imaginar aquele Portugal dos anos 60 de que nós nos lembramos.

Anónimo disse...

Muito bom,mesmo MUITO bom este post.Um retrato de uma época que todos vivemos mas que nem todos recordamos damesma forma.E São Martinho,Tornada,Alfeizerão eram aqui tão perto e eram tão desconhecidos para a juventude urbana?
Parabéns José Luis(que não conheço)este é um grande momento deste blogue!L

ana lucia disse...

Optimo relato de um epoca que poucos miudos e alguns graudos de hoje nao teram o prazer, sim prazer, de saber como foi. O meu pai contava-me muitas das suas peripecias de miudo eram como um embalar em recordacoes coloridas de um outrem cheio de nostalgia.

J J disse...

Esta aventura, apesar de não ser "motorizada", encerra com brilho esta série sobre trangressões. Curiosamente o autor parece ter sido o "herói" que saiu mais penalizado de todas elas...

Este post é um emotivo retrato de uma infância certamente com algumas dificuldades, mas de que o autor guarda boas recordações e transparentes afectos. Guarda e transmite com aparente facilidade, como podemos ver (ler) mais uma vez neste blogue.

Magnífico enquadramento social, económico e geográfico da narrativa, é um privilégio contar com o Zé Luis como colaborador deste blogue.

Um abraço.
JJ

vitor be disse...

Gostei muito deste post.Já outros comentadores aqui referiram o excelente casamento entre a história que é contada e a descrição dos tempos em que se passou.
Vejo os posts do JJ como se fossem filmes de aventuras,vejo os do José Luis como se estivesse a contemplar um quadro com vários planos:as pessoas,depois as casas e caminhos,ao fundo o horizonte e o mar...Excelente,Parabens!!!Vitor

João Ramos Franco disse...

Não vos vou falar, novamente, do meu conhecimento da envolvente rural de Caldas da Rainha e de que a maioria dos homens do Chão da Parada, e outras aldeias emigravam para o mar. Dou-vos umas palavras que o Zé Luís escreveu num comentário do meu blogue (Estar Presente),

J L Reboleira Alexandre disse...
Olha João afinal temos mais coisas em comum. É que se a comida era boa no Vera Cruz quando regressaste de Angola agradece ao meu pai. Se não era desculpa-lhe que a culpa não era dele. Foi muitos anos cozinheiro nesse navio e veio para o Canadá exercer a mesma profissão quando o barco encostou. Apesar de hoje estar com 88 anos (em Maio 89) ainda se lembra perfeitamente dessa época. Das melhores da vida dele.
Abraço
Zé Luis
25 de Janeiro de 2009 18:50
Um abraço amigo do
João Ramos Franco

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

Um texto com as características do «Naufrágio nos mares do Talvai» não necessita de grandes comentários. Todo ele é auto-suficiente e fala por si. A permanência do Zé Luís nas terras banhadas pela margens ocidentais do grande mar oceano não beliscou em nada a verve com que nos descreve a história trágico-marítima da sua infância. Fá-lo com grande segurança estilística e domínio de língua. Melhor do que muitos daqueles que permaneceram na margem oriental desse mesmo mar oceano, em contacto directo e continuado com o idioma que mamaram no berço. Espantoso. As minhas vivências de pouco mais ou menos 17 anos intermitentes nas CdR nunca me motivaram a conhecer em pormenor as freguesias rurais que formam o meu concelho natal. Tive e continuo a ter uma existência muito urbana. Desconheço os benefícios do campo e não me vejo a viver num outro cenário que não seja o da cidade. Terei atravessado o Chão da Parada uma meia dúzia de vezes (se tanto) ao longo de toda a minha permanência no oeste estremenho. A minha família não tem raízes na região, pelo que até as férias eram passadas noutros quadrantes geográficos. As praias eram outras, os campos eram outros. Visualizo, assim, os Mares do Talvai como um espaço perfeitamente exótico. No sentido exacto do termo: singular, estranho, raro. A leitura das desventuras do menino que esperava ansiosamente o regresso do pai dessas viagens pelo mundo repartido tocou-me muito particularmente. Fiquei com vontade de o ouvir contar outras histórias de vida vivida. Ficar a conhecer melhor esse meu colega de escola que só começo a conhecer com algum pormenor passados tantos anos e com todo um mar de permeio. Um espaço imenso a separar-nos / juntar-nos através destas navegações virtuais tão mais eficientes do que muitas das viagens reais que constituem a nossa caminhada pela vida. Fico a aguardar. Até breve...

Casa da Caldeira disse...

Gostaria de agradecer a J.L Reboleira Alexandre por esta oportunidade que me deu de ler um magnífico texto, cuja profundidade e alcance não se limita ao aparente relato da sua aventura infantil.
A par da realidade das vivências, nem sempre doces, da sua meninice, apresenta-nos uma descrição nua e crua da vida rural dos anos sessenta. Senti-me emocionada com as suas palavras e voltei atrás no tempo.
Fui uma criança, talvez mais afortunada do que o autor, no diz respeito às condições económicas em que cresci, mas também vivi toda a minha infância e adolescência numa aldeia, onde eu e os meus irmãos frequentámos a escola, convivemos indiscriminadamente com todos os meninos e meninas da nossa idade, explorámos todos os recantos dos campos, dos pinhais e da beira do rio e, em plena liberdade, corremos à solta, levados pelos sonhos. Ora piratas e índios, ora polícias e cowboys, invariavelmente criaturas aventureiras e corajosas, que retardávamos o regresso a casa e a passagem do sonho à insípida realidade. Para alguns, a realidade era mais do que insípida era mesmo muito dura e nós, embora sendo crianças, tínhamos consciência disso e aprendemos cedo a ser solidários, muito antes de conhecermos sequer tal palavra.
Ainda bem que as condições de vida mudaram e que os meninos de hoje têm acesso a uma existência com muito mais qualidade do que aquela de que usufruíam os seus avós, mas duvido que o melhor brinquedo já feito, comprado e pronto a usar, dê mais gozo do que uma viagem pelo “Mar do Talvai”, dentro dum bidão.

Ana Braga