ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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ANNA KARENINA (Férias de 1969)

por João Jales



- Sim, a Anna Karenina suicida-se no fim do livro, mas eu penso que mais por causa das críticas da sociedade do que por remorsos…

Foi com esta ideia, e estas palavras, que iniciei um provavelmente pretensioso resumo do famoso livro de Tolstoi, que um preguiçoso Julho de 1969 me tinha permitido ler. O Agosto estava mais preenchido e prometedor, como mostravam os luminosos olhos da Lucha, que me analisavam, enquanto ela ouvia as minhas impressões sobre o livro.

Conhecera-a na véspera. Como a sua família tinha casa na Foz há já alguns anos, tinha-me cruzado várias vezes com ela ao longo dos anos sem a ver; mas aos quinze anos as garotas crescem dez anos entre dois verões, e este ano eu tinha-a visto… Na véspera a Ana, amiga comum, tinha-nos deixado à beira-mar a conversar e hoje já estávamos aqui os dois, perto da bandeira, representando um para o outro os dois adultos intelectuais que ambos fantasiávamos ser.


- Tens que me emprestar esse livro, só trouxe de Tomar umas revistas – respondeu a Lucha, “pendurada” nas minhas palavras sobre os amores adúlteros de Anna.


Eu tinha desistido da habitual futebolada junto à aberta para ficar aqui, hipnotizado por aqueles difusos olhos azuis… verdes… ou cinzentos… a minha falta de visão deixava-me na dúvida e obrigava-me a uma aproximação talvez exagerada da minha interlocutora, que ela parecia não estranhar nem recear.


Sou muito míope desde os dez anos, idade em que comecei a usar sempre óculos. Mas não na praia, onde esses incómodos adereços deixam brancas marcas indeléveis no carregado bronzeado da Foz do Arelho (dizia-se na altura que esse intenso “bronze” era da praia ter muito iodo, sabemos hoje que eram a névoa e o vento que nos permitiam estar horas sem fim ao Sol sem uma rápida sensação de desconforto). De qualquer forma a ausência dos óculos transformava a realidade circundante, melhorando-a, não me permitindo ver as imperfeições e obstáculos (eu pisava invariavelmente a nafta que ficava na linha da maré alta, chegando sempre a casa com os pés “alcatroados”) ou obrigando-me, como era o caso, a ter o nariz em cima do que queria ver bem. Ainda hoje tenho esse hábito, não usar óculos na praia, e estranho muito quando, com eles postos e no pleno uso das minhas faculdades visuais, visito as praias que frequento habitualmente, descobrindo sujidade na areia, horríveis construções nas arribas, atentados arquitectónicos variados e a celulite da maior parte das veraneantes que se passeiam em trajes reduzidos. O mundo é muito mais belo visto através do manto diáfano da miopia, acreditem.


Continuámos a falar dos clássicos russos, com que o meu Pai este ano me enchera a estante do quarto, embora eu ainda só tivesse lido A Mãe de Gorky e algum Tolstoi. Dostoievsky (Os Irmãos Karamazov, Crime e Castigo) aguardava a sua vez, talvez lá mais para o Outono.


Entretanto era quase meio-dia, decididamente hora de ir ao mar, mas a zona de banho estava invadida pelo Dr. Calheiros Viegas, orientando com um apito as matronas caldenses no seu banho terapêutico, que incluía mergulhos, gargarejos e inalações. O habitual bando de garotos rodeava-o, divertindo-se a aliviar disfarçadamente as bexigas na água em que ele realizava estas manobras em prol da saúde orofaríngica.

Algumas amigas da minha irmâ dirigiam-se para o banho como se preparassem uma travessia Foz do Arelho-Berlengas. Com as toucas postas, constituíam um espectáculo inolvidável!

Os “futebolistas” tinham entretanto terminado o derby e mergulhavam ruidosa e espalhafatosamente nas ondas, brancas com a espuma da rebentação (quem não gosta de ondas vai para S. Martinho, o ”bidé das marquesas”, como é aqui conhecida a baía). As raparigas que, pressentindo a sua chegada, se tinham entretanto também aproximado da beira-mar, fingiam-se indignadas com os salpicos de água fria ou por serem levadas ao colo para dentro de água. A escolha das vítimas destes actos não era inocente, e configurava verdadeiros rituais de acasalamento dos adolescentes envolvidos, o desenrolar do Verão iria mostrá-lo.
A combinação da turma de ginástica aquática com as previsíveis “bocas” a que iria ser sujeito por parte dos meus amigos, ao ir ao banho com uma nova companhia, fizeram-me olhar para as rochas. Do lado oposto à “aberta”, a maré baixa, como era o caso hoje, deixa até seis pequenas praias consecutivas, em que a ondulação é quebrada por anéis de rochedos circundantes, proporcionando pequenas baías naturais que quase parecem piscinas. Normalmente duas ou três estão acessíveis, só nas marés vivas é possível chegar à sexta.

-Queres ir às rochas tomar banho? – perguntei

-A maré está a encher ou a vazar? Temos que ver se dá para passar – respondeu ela.
E lá se deixou convencer, sem grande esforço, a acompanhar-me nessa excursão, fingindo até algumas pequenas surpresas com anémonas, polvos e peixes que lhe fui mostrando e que ela, como veraneante habitual, deveria conhecer perfeitamente. Teve até dificuldades (in)esperadas para ultrapassar alguns obstáculos, obrigando-me a auxiliá-la, enquanto explorávamos a verdadeira maravilha que são, efectivamente, “as rochas”.

Algumas colegas do ERO, um pouco mais mais velhas que eu, posavam para uma fotografia enquanto aproveitavam, como nós, os prazeres do local. Ficámos um pouco a olhar para elas, mas não nos ligaram qualquer importância, aparentemente mais interessadas, quais sereias, em encantar a fotografia (ou o fotógrafo, não sei).



Depois do banho e uns poucos minutos ao sol voltámos, a maré subia e podia tornar efectivamente perigoso o regresso.



As “bocas” habituais nestas circunstâncias, que tinha evitado indo tomar banho longe dos meus amigos, tinham sido apenas adiadas, já que o regresso ao nosso poiso habitual foi seguido por vinte ou trinta pares de olhos e igual número de línguas afiadas, que nos esperavam no local habitual, junto à bandeira e à bóia do ISN. Não pareceu nada intimidada a Lucha, que ficou entre eles, enquanto eu fui negociar à barraca familiar a permanência na Foz até ao final do dia, em vez do regresso com eles para almoçar nas Caldas. Apesar da praia ser grande, as pessoas são poucas e a bisbilhotice muita, pelo que o meu pedido foi recebido com largos sorrisos…


-Então não ias jogar ténis hoje?


-Amizades novas?


-Não te vi no banho…


Ignorei, claro. Concordei que, se perdesse a última camioneta, às seis e meia, deveria telefonar do Hotel do Facho para o meu Pai me vir buscar. E regressei ao grupo, entretanto reduzido, a maioria tinha ido almoçar a casa. Os “donativos” da família, amigos e vizinhos de barraca, tinham-me garantido várias sandes, fruta e sumos, que fomos comendo durante a tarde, sempre em pequenas quantidades, para poder ir tomando sempre banho.


O gravador/leitor de cassetes portátil da minha irmã, uma novidade na altura, tocava incessantemente baladas românticas que eu gravara para ouvir nas férias: “Hello How Are You”, dos Easybeats, “Melody Fair” dos Bee Gees…
...ainda me lembro do conteúdo da fita. Que, nessa altura, era monofónica e com pouca qualidade. Só dois anos depois, em 1971, os aparelhos de cassetes estereo revolucionariam definitivamente a nossa forma de ouvir música.


- Não sei onde pus as uvas…


-Espera, parece-me que estão aqui.


Uma desajeitada oferta de fruta acabou num entrelaçar de dedos, e depois mãos, supostamente com discrição sob a toalha de praia, mas realmente motivo de atenção e galhofa entre todo o grupo presente. O Verão é muito curto, todas as cerimónias da corte têm que ser abreviadas e as reservas, normalmente femininas, devidamente atenuadas, não temos nesta altura longos meses de Inverno pela frente…


E o Verão é mesmo muito curto! Os dias na Foz eram passados em intermináveis conversas sobre a chegada da Apollo 10 à Lua (tinha sido em Julho, incredulamente encarada por alguns) mas também sobre os últimos discos dos Beatles ("Get Back", "Ballad Of John And Yoko"),especulações sobre se o lançamento do single "Give Peace A Chance" por John Lennon no princípio de Julho prenunciava o fim dos Fab Four (prenunciava mesmo). "Mais populares que Jesus Cristo" os Beatles eram um assunto importante, nunca antes ou depois um grupo musical teve tal influência na forma de viver, pensar, vestir e agir da juventude. Eu esperava ansiosamente a saída do LP "Abbey Road", anunciada para Setembro.

Tenho uma ideia de tentar perceber, das conversas dos mais velhos, o que significavam as demissões de De Gaulle em França e Dubcek na Checoslováquia, amplamente relatadas na imprensa nacional, sempre empenhada em mostrar a "agitação" que se vivia no estrangeiro por contraste com a "paz e ordem" nacionais. A RTP tinha dedicado um "Títulos de Caixa Alta" precisamente à Checoslováquia, onde pela primeira vez ouvi o "Hino a Jan Pallach", uma canção da ultra-direita portuguesa (normalmente pouco dada às artes musicais...). Tudo isto era tema de conversa no círculo dos meus pais, mas eu era novo de mais para compreender o que se passava.

Soube, com espanto, que a minha Mãe tinha simpatias monárquicas quando a ouvi, nesse Verão, aplaudir a nomeação, por Franco, de Juan Carlos para seu sucessor. Para mim, isso dos reis era coisa do passado. Para o meu Pai também, pelo que fiquei a conhecer "ao vivo e em estereo" os diversos argumentos da polémica monarquia/república.

A falta de mais encontros, apenas a dois, entre mim e a Lucha era substituída por longos olhares, mudos mas supostamente significativos (que eu imitava dos filmes do Omar Sharif, muito em em voga na altura), mas havia sempre alguns momentos de ternura roubados ao convívio do grupo (que reagia sempre mal e de forma ciumenta aos namoros externos, que lhe roubavamm unidade e estabilidade).

À festa de anos da Lucha desse ano foram alguns dos meus amigos, aumentando uma lista já muito sobrecarregada de convidados. Mas isso não pareceu perturbar a sua família, cosmopolita e habituada a receber, que se mostrou até agradada com o acréscimo de animação que nós levámos à festa e ao baile, para o qual contribuí, como habitualmente com a minha colecção de singles e EPs (os LPs, os poucos que tinha, não os levava a festas, em resultado do que ainda hoje os posso ouvir).

Houve ainda algumas, poucas, noites em conjunto no Casino. Mas tudo acabou no final de Agosto.

Em Setembro fui para Mondim de Basto, em Trás-os-Montes, e só regressei às Caldas uns dias antes do reinício das aulas. Três semanas a banhos no Tâmega e a tentar ler “clássicos”, que abandonava um após outro. Com o coração destroçado, como só é possível aos quinze anos, só a sugestão da minha tia Teresa para ler Pitigrilli me tirou desse bloqueio. Não sei com que prazer leria hoje “A Decadência do Paradoxo”, mas esse livro salvou a minha vida em Setembro de mil novecentos e sessenta e nove! Juntamente com as cassetes que levei para mostrar aos meus primos as novas músicas que me apaixonavam: Beatles, Jimi Hendrix, Cream, Jefferson Airplane, Byrds, Bob Dylan , Leonard Cohen … sempre Cohen, que ainda hoje ouço, e leio, em todos os momentos de solidão ( With Annie gone / Whose eyes to compare / With the morning sun / Not that I did compare / But I do compare / Now that she’s gone ).

Uma longa carta para o meu amor de Verão não tinha recebido qualquer resposta, mas ao regressar às Caldas obtive um número de telefone que me permitiu saber que a sua família passava este final de férias em S. Pedro de Moel.

O meu Pai, que só reabria o consultório em Outubro, condoído pelo meu sofrimento (ou farto de aturar um adolescente insuportável), ofereceu-se para passar um dia nas famosas piscinas de S. Pedro. Acompanhados pelo meu amigo Tó Zé Hipólito, lá fomos os três no Citroen DS, mania e orgulho do meu Pai, que teve sempre carros desses enquanto conduziu. E que muito satisfeito ficou com os elogios do Tó Zé, eterno amante de automóveis, à excelente suspensão do Citroen, que nos permitia circular no péssimo piso da florestal do Pinhal de Leiria como se estivéssemos numa auto-estrada.

Havia pouca gente na piscina, nessa manhã já de Outono, e da Lucha nem sinal. Almoçámos no restaurante do complexo e deixámos o meu Pai a ler o seu “Primeiro de Janeiro” (hábito de homem do Norte), enquanto fomos ao Bambi, um café existente no parque, onde nos tinham dito que "toda a gente" ia tomar café depois de almoço. Mas também aí não tivemos sorte e regressámos para dar um último mergulho. Subitamente o Hipólito puxou-me o braço:

-Olha a Luxa, ali sentada naquela espreguiçadeira!

Eu olhei e vi-a, até me pareceu que lia o “Anna Karenina” que eu lhe emprestara! Com o coração aos saltos, descalcei-me e despi-me, ficando apenas com o fato de banho, entreguei a trouxa ao meu amigo e corri para a Luxa. Lá chegado disse:

-Ainda não acabaste o Tolstoi ? Que é que tens andado a fazer?

Mesmo sem óculos, mal ela levantou a cabeça, percebi que aqueles olhos negros não eram os da Lucha (e o livro era da Pearl Buck, muito popular na época, como vi mais tarde). Sem saber bem o que dizer, embrenhei-me numa titubeante desculpa em que referia o empréstimo de “Anna Karenina” a uma amiga. A Teresa, soube entretanto o seu nome, conhecia a obra e sabia até haver um filme, que terminava em suicídio da heroína por causa dos seus sentimentos de culpa. Subitamente interessado, sentei-me na cadeira ao lado e, mergulhando lentamente naqueles olhos negros, comecei a contar-lhe:

- Sim, a Anna Karenina suicida-se no fim do livro, mas eu penso que mais por causa das críticas da sociedade do que por remorsos…
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João Jales
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Pode ler a 2ª parte em : ANNA KARENINA 2 ( Regresso às aulas)
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