João Bonifácio Serra
O meu Tio anunciava-se em finais de Agosto. Talvez se lhe tivesse esgotado o orçamento pessoal de férias quando rumava às casas das irmãs casadas, uma na Amora (Seixal), outra no Carvalhal Benfeito (Caldas da Rainha). Trazia sempre uma pequena agenda de contactos e um programa de actividades que me era destinado. Os contactos deviam ter origem em Lisboa e incluíam algumas teenagers caldenses ou que passavam o Verão nas Caldas. Perscrutava minuciosamente as deslocações do meu Pai à cidade, negociava com ele horários e, dessa forma, despachava a sua agenda. O resto do programa era ocupado com a minha educação. O meu Tio sempre levava esse tema muito a sério. Passava em revista e aconselhava leituras, falava de assuntos “sérios” e narrava histórias de pessoas e sítios distantes, comentava atitudes, corrigia a linguagem, induzia comportamentos e pontos de vista sobre o mundo. Sempre chegava com uma novidade em que considerava fundamental iniciar-me. Naquele ano foi o twist.
Depois do jantar, arredou a mesa, ordenou-me que me descalçasse, como ele, e em palmilhas de meias executasse os passos da nova dança. Não havia música, evidentemente (a casa dos meus Pais a electricidade só chegaria um ou dois anos mais tarde), pelo que o exercício era para mim particularmente difícil. De facto, o trautear do “Let’s twist again” pelo meu Tio não tinha suficiente sonoridade para vencer o meu atávico pé de chumbo para a dança. O sucesso da minha aprendizagem foi por isso muito limitado e o meu Tio prometeu voltar, no dia seguinte, aos ensaios. Mas a dúvida instalara-se no professor e no aluno. Estariam ambos condenados ao fracasso?
Três noites volvidas, era já evidente que eu atingira o nível máximo a que podia aspirar – certamente um modesto 5 numa escala de 0 a 20 – e o meu Tio inquiriu-me sobre o que é que eu queria realmente aprender. Não demorei a responder: o que eu queria mesmo mesmo saber fazer bem era nadar.
Precisamos de mais espaço, advertiu. Encostamos a mesa a uma das paredes, ficando o centro da sala liberto. De calções, ordenou o meu Tio, e deu o exemplo. Braços ao alto. Agora, flectir os joelhos, e ao mesmo tempo baixar os braços e fazer um movimento circular à altura do nariz. 1 e 2 e 3. Cinquenta vezes! Agora deitar no chão. Os mesmos movimentos, tronco para cima, braços esticados, abrir à altura do nariz, movimento circular. Ao mesmo tempo: encolher as pernas e esticar. Sincronizar os movimentos: 1 e 2 e 3. Cinquenta vezes! Amanhã de manhã vamos à Foz. Primeiro ensaiamos na areia estes movimentos. Depois na Lagoa. Não ficarás a dançar twist, mas vais ficar a nadar como os alunos do Naval, sentenciou o meu Tio, nascido e criado em Setúbal. A minha mãe olhava, desolada, o estado em que a aula deixara o tapete da sala.
Fiquei na dúvida: o meu Tio estava a transformar a aprendizagem de natação numa desforra pelo meu desinteresse pelo twist?
JBSerra
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BREVE NOTA SOBRE O TWIST
Gravado originalmente por Hank Ballard em 1958 como B-side de um dos seus singles, a canção “The Twist” tornou-se um êxito mundial na versão de Chubby Checker em 1960, dando origem a uma das danças mais populares do século XX .
“Let´s Twist Again”, do mesmo cantor, reacendeu essa loucura em 1962 e é ainda hoje, curiosamente, mais divulgada e conhecida na Europa do que a primeira versão.
Uma dança abertamente sexual, o Twist consiste num abanar pélvico sobre ligeiras rotações alternadas dos dois pés. Estão aí os dois vídeos para quem não se lembrar. Provocava apoplexias nos (sempre abundantes) moralistas norte-americanos.
Inúmeros grupos e artistas gravaram e compuseram músicas para dançar o Twist (até os Beatles gravaram uma versão de Twist and Shout). Ainda hoje há, nos EUA, mais concursos de Twist do que de Valsa ou Tango, por exemplo. É na representação de um desses concursos que surge talvez a consagração desta dança como um dos ícones do século XX, nos 3 minutos de Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994) em que John Travolta e Uma Thurman dançam o Twist ao som de “You Never Can Tell” do (verdadeiro e eterno) rei do Rock’n’Roll, Chuck Berry.
“Let´s Twist Again”, do mesmo cantor, reacendeu essa loucura em 1962 e é ainda hoje, curiosamente, mais divulgada e conhecida na Europa do que a primeira versão.
Uma dança abertamente sexual, o Twist consiste num abanar pélvico sobre ligeiras rotações alternadas dos dois pés. Estão aí os dois vídeos para quem não se lembrar. Provocava apoplexias nos (sempre abundantes) moralistas norte-americanos.
Inúmeros grupos e artistas gravaram e compuseram músicas para dançar o Twist (até os Beatles gravaram uma versão de Twist and Shout). Ainda hoje há, nos EUA, mais concursos de Twist do que de Valsa ou Tango, por exemplo. É na representação de um desses concursos que surge talvez a consagração desta dança como um dos ícones do século XX, nos 3 minutos de Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994) em que John Travolta e Uma Thurman dançam o Twist ao som de “You Never Can Tell” do (verdadeiro e eterno) rei do Rock’n’Roll, Chuck Berry.
JJ
THE TWIST
LET’S TWIST AGAIN
LET’S TWIST AGAIN
4 comentários:
Nunca imaginei que o João Serra pudesse escrever algo tão divertido ! Este é o Mr. Hyde do nosso Dr. Jekyll ? Estou a brincar, o conto é sensacional e nós já tinhamos visto um João Serra bem menos sério do que é costume, no Polícia Sinaleiro!
Luis António
Ri-me muito, li duas vezes!!! O Tio do João Serra leu a história que ele escreveu sobre ele? Espero que sim!!!
Esta série das fèrias está muito boa, ainda há mais surpresas boas destas?
Luisa
Ao ler esta deliciosa estória de João Serra, vieram-me à memória os dias em que na minha casa da aldeia do litoral, e à beira da estrada principal, assistíamos à peregrinação das pessoas das aldeias do interior para Salir e São Martinho, descendo as encostas de Barrantes para Tornada. Eram filas intermináveis de carroças e burros (mais tarde apareceram as éguas)com lotação esgotada (nos cestos, nas albardas) a caminho da praia aos Domingos de manhã e ao fim da tarde de regresso a casa. Nós, para quem nadar era algo de natural, e obtínhamos o respeito dos mais velhos quando, com total inconsciência, atravessávamos a baia, dos faróis até à extremidade do cais sem serviço de apoio e com o risco de sermos engolidos pelas ondas provocadas por uma traineira. Teria 14 ou 15 anos quando o fiz acompanhado na aventura pelo Quim Telhada, e no final estava tão exausto que ao tentar pôr-me na vertical, caí de imediato em cima das rochas. É que à chegada não havia, e não há areia.
E como bons, maus, miúdos que éramos lembro-me do desdém com que tratávamos o pessoal dos «cabeços» (era assim que apelidávamos as pessoas das aldeias do interior).
Assim se compreende melhor o desejo que João Serra tinha na altura de saber nadar, como condição, quase, sine qua non para ir para a Foz.
Mais velho voltei a fazer a mesma travessia, hoje, até para a fazer de barco a remos chegaria cansado.
Muito giro. E o comentário da São é bem apanhado, realmente dançar sem música e nadar sem água não lembra ao diabo!
O João Serra escreve muito bem , eu leio na Gazeta, e tem tido aqui no blog um estilo diferente e divertido . Parabéns .
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