por João Jales
Sempre fui um indefectível adepto da Foz do Arelho, poucas vezes aqui vinha durante o Verão. Mas, nesse dia, surgiu uma boleia inesperada que me permitiu ir visitar meia-dúzia de amigos que lá estavam desterrados durante dois ou três meses. Felizmente a minha família nunca alugou casa em S. Martinho ou na Foz, nessa altura a vida nocturna de qualquer das localidades era para nós pouco apelativa.
Sendo o mais recente dos estabelecimentos de restauração, o Samar, onde estávamos, era frequentado por malta nova e veraneantes recentes. Os banhistas veteranos continuavam nos estabelecimentos tradicionais, na rua dos cafés. Aí a frequência era menos diferenciada, misturando gerações e grupos sociais, só o “Clube dos Betinhos”, situado na esquina dessa rua com uma transversal que subia a íngreme encosta, tinha o acesso reservado aos filhos dos novos-ricos, maioritariamente lisboetas, que chegaram a S. Martinho na segunda metade da década de sessenta. Mais ou menos ignorados nos locais “in” das Caldas (Casino, Azenha, Ferro-Velho), tinham aqui o seu pequeno mundo privativo. Os veraneantes mais antigos, maioritariamente alentejanos e ribatejanos, mantinham habitualmente uma relação mais descomplexada com a população local e com os caldenses, convivendo e misturando-se nos vários cafés e esplanadas existentes. Outro local nessa mesma rua, o “Delírio”, tinha um Rés-do-chão com pingue-pongue e bilhares (e até jogos electrónicos, a partir de 1971 ou 1972); e um primeiro andar, tenho ideia que reservada a sócios ou, pelo menos, a clientes habituais e mais velhos, que ali jogavam cartas. Como no Casino das Caldas, a maioria eram senhoras.
Num microcosmos tão pequeno como S. Martinho, em que o principal passatempo era olhar para os outros, os meus amigos não tinham muitos locais de encontro alternativos aos dos seus pais e o Samar era, neste início da década de setenta, um deles.
Enquanto tomávamos o café, o resto do pessoal começou a aparecer. O Luís sugeriu uma ida ao cinema para “matarmos” estas horas mortas até à meia-noite. Ninguém sabia qual era o filme, mas a noite, com “muita humidade no ar” porque “estava a cacimbar” (eufemismos que os veraneantes ainda hoje usam quando chove à noite, o que é frequente), tornava o conforto do cinema atractivo.
Mas a realidade era bem diferente já que, verdadeiramente, não existia “cinema” e muito menos “conforto”. O termo cinema refere-se normalmente a uma sala de espectáculos com as condições mínimas para a projecção e visionamento de um filme. O barracão onde me encontrei em S. Martinho do Porto não tinha nada a ver com isso: parecia uma velha arrecadação, com as paredes exteriores de cor amarelada, muito sujas, e com o interior forrado a madeira. Sentámo-nos numas duras cadeiras sem qualquer almofada ou forro. Soube depois que estávamos na “geral”. A parte de trás, a “plateia” propriamente dita, tinha sete ou oito filas com cadeiras um pouco mais confortáveis mas, como eram mais caras, não foi lá que ficámos.
- A diferença do preço do bilhete dá para beber uma imperial a seguir – explicou-me o Mário.
A inclinação do chão era insuficiente para garantir o integral visionamento do ecrã, sempre meio tapado pelas cabeças dos outros espectadores. Excepto para os da 1ª fila, que estavam tão próximo dele que poderiam usar a tela como lenço sem se inclinarem demasiado e até sem que ninguém desse por isso. Claro que ninguém o fazia, até porque a cor castanho-amarelada da tela sugeria que outros já a teriam usado dessa forma, muitos anos atrás.
Lembro-me de pensar que, mesmo a chuviscar, seria bem mais agradável estar lá fora, na esperança de uma troca de olhares mais prolongada com uma das garotas que se exibiam no cais ou nas esplanadas, mas o dinheiro do bilhete já era irrecuperável, pelo que decidi ficar.
Estranhei que, mal as luzes se apagaram, aparecesse imediatamente um bando de barulhentos índios a cavalo perseguindo várias caravanas que seguiam por um estreito caminho, ladeado por uma perigosa ravina, a uma velocidade vertiginosa.
A imagem era tão má que limpei duas vezes os óculos, julgando-os embaciados, mas não, era mesmo assim a projecção, nebulosa e com as cores muito desmaiadas. Ao longo da hora seguinte tivemos direito a muitos tiros, sangue e cavalgadas, o nosso herói impediu o massacre de toda uma família e salvou a donzela raptada pelos peles-vermelhas, com quem depois se casou. Tirando isso, tudo acabou em bem, com as palavras The End a sobreporem-se a um casto e longínquo beijo. Acenderam-se as luzes e preparava-me para sair quando fui informado que era apenas o intervalo. Intervalo? Outro filme? Pelo preço de um bilhete? Não estava habituado a esta generosidade no Chagas ou no Ibéria.
Fumámos um cigarro no estreito pátio exterior e regressámos, ao som de uma roufenha campainha. Desta vez o filme começou normalmente, com títulos, nomes e ficha técnica, mostrando uma família em dificuldades financeiras a ser ameaçada de ser expulsa das suas terras por um agiota de mau carácter. O banqueiro vilão era parecido com os actuais e, num ápice, executava a hipoteca e despejava a família. Esta decidia rumar para Oeste, com todos os seus parcos haveres arrumados numa caravana, em busca de melhor vida. Eu entretanto começara a protestar, já que os actores e as personagens eram os mesmos que nós víramos ser perseguidos, raptados e até assassinados pelos índios antes do intervalo: estávamos a ver a primeira parte do mesmo filme!
O Luís conseguiu acalmar-me com o argumento de que tanto fazia, ia acabar por ver o mesmo tempo de cinema e sair à meia-noite, hora de beber uma imperial. Afinal, passar o tempo da digestão do jantar era o objectivo da ida ao cinema… E, como eu podia facilmente verificar, mais nenhum dos espectadores que enchiam a sala estava incomodado com aquela pequena inversão na projecção. E filosofou:
- A ordem pela qual a história é contada é arbitrária e indiferente, o banqueiro fica com o Rancho, a família melhora de vida com uma propriedade maior e melhor no Oeste, os índios são todos mortos pelo cowboy e os heróis casam. Que importa que tudo isto aconteça na primeira ou na segunda parte?
Comi um prego no prato e bebi duas imperiais com o João, enquanto esperávamos pelos nossos amigos, que jantavam a essa hora, oito e meia, com as famílias nas casas alugadas onde passavam o Verão em S. Martinho.
Sempre fui um indefectível adepto da Foz do Arelho, poucas vezes aqui vinha durante o Verão. Mas, nesse dia, surgiu uma boleia inesperada que me permitiu ir visitar meia-dúzia de amigos que lá estavam desterrados durante dois ou três meses. Felizmente a minha família nunca alugou casa em S. Martinho ou na Foz, nessa altura a vida nocturna de qualquer das localidades era para nós pouco apelativa.
Sendo o mais recente dos estabelecimentos de restauração, o Samar, onde estávamos, era frequentado por malta nova e veraneantes recentes. Os banhistas veteranos continuavam nos estabelecimentos tradicionais, na rua dos cafés. Aí a frequência era menos diferenciada, misturando gerações e grupos sociais, só o “Clube dos Betinhos”, situado na esquina dessa rua com uma transversal que subia a íngreme encosta, tinha o acesso reservado aos filhos dos novos-ricos, maioritariamente lisboetas, que chegaram a S. Martinho na segunda metade da década de sessenta. Mais ou menos ignorados nos locais “in” das Caldas (Casino, Azenha, Ferro-Velho), tinham aqui o seu pequeno mundo privativo. Os veraneantes mais antigos, maioritariamente alentejanos e ribatejanos, mantinham habitualmente uma relação mais descomplexada com a população local e com os caldenses, convivendo e misturando-se nos vários cafés e esplanadas existentes. Outro local nessa mesma rua, o “Delírio”, tinha um Rés-do-chão com pingue-pongue e bilhares (e até jogos electrónicos, a partir de 1971 ou 1972); e um primeiro andar, tenho ideia que reservada a sócios ou, pelo menos, a clientes habituais e mais velhos, que ali jogavam cartas. Como no Casino das Caldas, a maioria eram senhoras.
Num microcosmos tão pequeno como S. Martinho, em que o principal passatempo era olhar para os outros, os meus amigos não tinham muitos locais de encontro alternativos aos dos seus pais e o Samar era, neste início da década de setenta, um deles.
Enquanto tomávamos o café, o resto do pessoal começou a aparecer. O Luís sugeriu uma ida ao cinema para “matarmos” estas horas mortas até à meia-noite. Ninguém sabia qual era o filme, mas a noite, com “muita humidade no ar” porque “estava a cacimbar” (eufemismos que os veraneantes ainda hoje usam quando chove à noite, o que é frequente), tornava o conforto do cinema atractivo.
Mas a realidade era bem diferente já que, verdadeiramente, não existia “cinema” e muito menos “conforto”. O termo cinema refere-se normalmente a uma sala de espectáculos com as condições mínimas para a projecção e visionamento de um filme. O barracão onde me encontrei em S. Martinho do Porto não tinha nada a ver com isso: parecia uma velha arrecadação, com as paredes exteriores de cor amarelada, muito sujas, e com o interior forrado a madeira. Sentámo-nos numas duras cadeiras sem qualquer almofada ou forro. Soube depois que estávamos na “geral”. A parte de trás, a “plateia” propriamente dita, tinha sete ou oito filas com cadeiras um pouco mais confortáveis mas, como eram mais caras, não foi lá que ficámos.
- A diferença do preço do bilhete dá para beber uma imperial a seguir – explicou-me o Mário.
A inclinação do chão era insuficiente para garantir o integral visionamento do ecrã, sempre meio tapado pelas cabeças dos outros espectadores. Excepto para os da 1ª fila, que estavam tão próximo dele que poderiam usar a tela como lenço sem se inclinarem demasiado e até sem que ninguém desse por isso. Claro que ninguém o fazia, até porque a cor castanho-amarelada da tela sugeria que outros já a teriam usado dessa forma, muitos anos atrás.
Lembro-me de pensar que, mesmo a chuviscar, seria bem mais agradável estar lá fora, na esperança de uma troca de olhares mais prolongada com uma das garotas que se exibiam no cais ou nas esplanadas, mas o dinheiro do bilhete já era irrecuperável, pelo que decidi ficar.
Estranhei que, mal as luzes se apagaram, aparecesse imediatamente um bando de barulhentos índios a cavalo perseguindo várias caravanas que seguiam por um estreito caminho, ladeado por uma perigosa ravina, a uma velocidade vertiginosa.
A imagem era tão má que limpei duas vezes os óculos, julgando-os embaciados, mas não, era mesmo assim a projecção, nebulosa e com as cores muito desmaiadas. Ao longo da hora seguinte tivemos direito a muitos tiros, sangue e cavalgadas, o nosso herói impediu o massacre de toda uma família e salvou a donzela raptada pelos peles-vermelhas, com quem depois se casou. Tirando isso, tudo acabou em bem, com as palavras The End a sobreporem-se a um casto e longínquo beijo. Acenderam-se as luzes e preparava-me para sair quando fui informado que era apenas o intervalo. Intervalo? Outro filme? Pelo preço de um bilhete? Não estava habituado a esta generosidade no Chagas ou no Ibéria.
Fumámos um cigarro no estreito pátio exterior e regressámos, ao som de uma roufenha campainha. Desta vez o filme começou normalmente, com títulos, nomes e ficha técnica, mostrando uma família em dificuldades financeiras a ser ameaçada de ser expulsa das suas terras por um agiota de mau carácter. O banqueiro vilão era parecido com os actuais e, num ápice, executava a hipoteca e despejava a família. Esta decidia rumar para Oeste, com todos os seus parcos haveres arrumados numa caravana, em busca de melhor vida. Eu entretanto começara a protestar, já que os actores e as personagens eram os mesmos que nós víramos ser perseguidos, raptados e até assassinados pelos índios antes do intervalo: estávamos a ver a primeira parte do mesmo filme!
O Luís conseguiu acalmar-me com o argumento de que tanto fazia, ia acabar por ver o mesmo tempo de cinema e sair à meia-noite, hora de beber uma imperial. Afinal, passar o tempo da digestão do jantar era o objectivo da ida ao cinema… E, como eu podia facilmente verificar, mais nenhum dos espectadores que enchiam a sala estava incomodado com aquela pequena inversão na projecção. E filosofou:
- A ordem pela qual a história é contada é arbitrária e indiferente, o banqueiro fica com o Rancho, a família melhora de vida com uma propriedade maior e melhor no Oeste, os índios são todos mortos pelo cowboy e os heróis casam. Que importa que tudo isto aconteça na primeira ou na segunda parte?
João Jales
4 comentários:
Não tenho muito tempo para isto, mas diverti-me imenso a ler esta excelente crónica do JJ
Um abraço.
J. Carlos Abegão
Passei dois verões em São Martinho, dois ou três anos antes desta história.Era exactamente assim,a terra era gira mas havia poucas distracções.e estou mais de acordo com o Jales, tirando aquele Clube reservado(e algo esquisito)o ambiente era de abertura e confraternização.
Está muito bem escrito, foi um prazer ler e reler. Ana
O Jales já nos habituou a textos de grande qualidade,capacidade de observação e humor.Não sou leitor assíduo,não percebo bem a diferença destes contos e o diário,mas leio sempre com prazer.
Isto era S. martinho,embora eu nunca lá tenha visto nenhum filme ao contrário!!!Mas eu também era fâ da Foz,como o escritor.
Quando é que a malta mais velha perde a vergonha e começa a contar as suas histórias também?
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