ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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BABY, IT'S A WILD WORLD ( Paris, 1975 )

por José Luis Reboleira Alexandre



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Aproximava-se do fim o ano de 1975, inicio do mês de Dezembro, creio. Tez pintada dum vincado tom de moreno, resultado de 12 meses vividos em Angola, entre dramas (e que dramas, que não vou contar neste local) dos ex-colonos, e baptismos de luta armada urbana para a maioria de todos nós, membros da última vaga de militares que não tiveram direito à presença da filarmónica (entenda-se TV e outros que tais) na partida ou na chegada.
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Em Portugal o periodo do PREC estava no auge, o assalto ao poder local (alguns ainda andam por aí passados estes anos todos) da parte de alguns arrivistas era notório. Não seria na altura propriamente um jovem adolescente, mas mais um jovem adulto em que começava a instalar-se um certo desencanto por tudo o que via e sentia à minha volta.
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Possuía o meu primeiro passaporte, acabadinho de tirar em Luanda, com carácter de urgência, tudo facilitado pela troca de uns escudos da Europa por muitos de Angola. O câmbio foi péssimo, mas nesta vida tudo tem um custo, e em certos locais do globo diria que apenas de uma certa maneira se obtêm determinados serviços. Estava na hora de partir.
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O apelo da Cidade Luz era enorme, havia as razões que me empurravam para fora para qualquer lugar e as outras, muito fortes (le coeur a des raisons que la raison ne connait pas), que me chamavam para Paris. Passei pelos Claras, adquiri o bilhetinho e preparei-me para fazer aquela que seria a minha primeira grande viagem, para a qual fui de livre vontade. Mais ou menos 36 horas depois estava no local onde milhares de emigrantes lusos tinham chegado antes de mim. No meu insípido francês lá expliquei ao chauffeur de taxi, pied noir bien sur, para onde queria ir.
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Começava aqui o meu primeiro contacto, aos 24 anos, com nomes que ainda hoje defino como monstros da música. O prazer de ver, ao vivo, Léo Ferré, que só conhecia de disco, interpretar La Solitude, no Palais des Congrés foi o despertar para um tipo de existência que o meu País não me podia dar. Apesar de gostar da música deste autor, devo no entanto mencionar que foi mais por vontade da minha fiancée (agradeço-lhe lembrar-se ainda do nome da sala) que fui ao concerto, até porque a maioria dos textos me eram de dificil compreensão.
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Foi assim que em jeito de recompensa, e como o Cat Stevens também estava na cidade, que me foi oferecido um dos maiores extases musicais e uma das melhores recordações que ainda guardo. Um fim de tarde lá vamos para o Palais des Sports, na Porte de Versailles (mais uma vez agradeço à companheira o nome do local) e aí sim, perante milhares e milhares de jovens da nossa idade, ouvi ao vivo um dos meus ídolos, vestido de uma forma que denunciava o que viria mais tarde a acontecer em termos de religião. Ele que fizera despoletar, lá num baile de garagem em Salir, depois de um dia de praia de Agosto, uma história de felicidade que ainda hoje dura. Aquele que hoje se chama Yusuf Islam, e adoptou a cultura islâmica como forma de vida(e por isso é persona non grata nos States), proprocionou-me na altura o que ainda é hoje para mim o melhor momento musical da minha vida. Temas como Tea for Tillerman, Father and Son, Katmandu, Sad Lisa, Wild World, são ainda hoje presença quase constante na saída USB da minha viatura.
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Mas afinal Paris seria apenas uma etapa para uma viagem mais longa, com o atravessar do grande oceano e o estabelecimento, um pouco mais tarde, naquela que não é a minha segunda nem primeira pátria, mas apenas e tal como no que concerne o meu país de origem, a minha pátria.
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Quando no dia a dia de cada um de nós somos confrontados diariamente com a obrigação de falar duas ou três linguas simultâneamente, e de lidar diariamente com gentes de todas as latitudes, o resultado que se obtém ao fim de muitos anos não poderá de forma nenhuma ser o que se obteria se toda a nossa vida nos tivessemos apenas quedado pelo pequeno rectângulo delimitado pelo Atlântico e pela Espanha. Considero-me assim, e copiando as ideias de Amin Maalouf, que recentemente descobri (obrigado, Artur G.), o resultado de duas culturas.
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Outros concertos houve. Outros livros e alguns filmes, outras influências nos deixaram, mas nada nos marcou tanto como estes dois eventos, numa cidade que para mim, tinha muito mais luz naquela altura.
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J.L Reboleira Alexandre


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PS Podes juntar também o mail que recebi da fiancée onde ela me menciona os locais:
Olá Zé Luis,
Souvenirs, souvenirs.... Léo Ferré c'était au Palais des Congrès et Cat Stevens c'était au Palais des Sports (Porte de Versailles).
Que nous étions jeunes....
Beijinho, Mariazinha







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C O M E N T Á R I O S

Luisa disse...
Souvenirs,souvenirs...Todos temos souvenirs que o tempo vai limando,fazendo desaparecer as tragédias e deixando as boas recordações!E o Cat Stevens,que eu nunca vi ao vivo mas ouvi até saber de cor,especialmente este disco.Tenho ideia,pela referência a Salir do Porto,de já ter lido mais memórias do Reboleira Alexandre de que gostei e com que me identifiquei,temos um passado comum aí,embora eu vivesse nas Caldas.Beijinhos,Luisa.
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António disse...
O Cat Stevens(a quem chamávamos Gato Esteves) era um dos cantores e compositores que acompanhou a nossa juventude.Eu tinha poucos singles mas lembro-me de ouvir as suas músicas todas em casa de amigos e no rádio.
Mas este texto fala mais do que dos concertos,recorda um tempo difícil que alterou muitas vidas e deixou muitas cicatrizes.Não quero falar disso,mas fico feliz por saber que o autor deu a volta por cima de tudo isso.E o Canadá é um grande país!
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João Ramos Franco disse...
Caro José Luís Reboleira Alexandre, em quase toda a história que aqui contas, apesar de ter regressado de Angola em 1967, me encontro nas tuas palavras.
Quando regressei o sentimento de que este canto era apertado para mim também me assaltou e deambulei por essa Europa, um mês em Portugal uma semana em Paris, Londres ou Roma…A falta de espaço que sentia aqui era talvez diferente da tua, mas tinha de certeza em comum Angola e Caldas da Rainha e o resultado de duas culturas.
Um abraço amigo
João Ramos Franco
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jorge disse...
excelente relato,memórias muito interessantes de tempos cruciais para todas as nossas vidas.o fascínio de áfrica é só dos que conhecem,mas é para toda a vida.depois são as histórias da emigração,da saída de um país que nunca chegou para todos os que cá nascem.e a música marca sempre o tempo e acompanha as recordações.eu preferia o leo ferré...jorge
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J J disse...
O José Luis traz-nos sempre memórias muito vivas de alguém que viveu sempre a vida com entusiasmo e determinação. E ele escreve da mesma forma, não há azedume nas suas recordações dos maus momentos e respira-se alegria na sua descoberta do Mundo em Paris, incluindo os dois concertos que relata.
É esta descoberta de outros mundos que constitui esta série e por isso gostei tanto do seu depoimento.
Um abraço. JJ
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J. L. Reboleira Alexandre disse...
Quando no texto mencionava o início de Dezembro de 75, e dizia creio, a certeza das datas não existia. Para dar razão ao creio, bastou uma rápida pesquisa para encontrar este excerto do L' Express (leitura sempre actual e obrigatória) para perceber que afinal tudo se passou na última quinzena de Novembro, e este jovem teria apenas 23 anos. Razão tem a companheira quando repete que me estou sempre a fazer mais velho.
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«Une allée ouvre en deux la mer noire des 140 musiciens et choristes massés sur la scène du Palais des Congrès. Et Léo Ferré semble marcher sur les eaux. Lorsqu'il entre, il est échevelé, livide, sanglé dans un vague battle-dress couleur de suie, corseté d'arrogante humilité. Pour la première fois en France, il va diriger. Sans baguette, sans partition : "continuer d'apprendre sans savoir".
Allez ! Que caracole Coriolan, "Muss es sein, es muss sein" ("Cela doit-il être, cela est"), comme disait ce "sourdingue" de Beethoven. Voici le pianiste Dag Achatz, fidèlement manchot par respect pour Ravel et Ferré, qui concertise de la main gauche. Voilà "La chanson du mal aimé" d'Apollinaire, le bien-aimé.
Voilà d'autres chansons qu'il ne doit qu'à lui-même, poèmes rageurs et tendres qui parlent de "La Solitude", de "L'Oppression", des Amants tristes" ou de "La Mort des loups". Ces loups-là, "sans queue ni tête", ce sont Buffet et Bontems...
Le courant passe. Alors, Ferré, Saturne en chemisette, met des ailes à ses angoisses et renonce presque à la volupté de l'invective.
"la musique souvent me prend comme l'amour", a-t-il écrit. Au Palais des Congrès, jusqu'au 30 novembre, la musique, en effet, le prend, l'emporte, le métamorphose, le rend enfin "heureux comme un petit enfant candide". Et son bonheur est contagieux.
L'Express -Danièle Heymann(semaine du 17 au 23 novembre 1975)»
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O Jorge, no seu comentário, diz que preferia Ferré. A razão da minha escolha prendia-se mais com a dificuldade em entender o texto, que me impelia mais para as melodias de Brel ou Brassens, ou pela generalidade dos poetas anglo-saxónicos.
Hoje, ao abrir o album de 33 rotações La Solitude, não encontro o disco. Guardei a capa. Certamnente que, num passado já distante, tantas vezes entrou em contacto com a agulha que acabou no lixo. É que ainda hoje sou dos que pensam que não há qualidade musical como a reproduzida pelos velhos discos em vinil de 33 rotações.
Quanto ao acto de partir desse pequeno cantinho, normalmente é o resultado do somatório de várias razões que nos tiram daí, mas noto sempre que volto, que continua a existir uma certa imagem dos que se auto-exilaram, que não encontro noutras sociedades europeias. Em França por exemplo. Refiro aqui a título de informação que a maior comunidade imigrante em Montreal é recente, muito jovem, e de França. Nunca nenhum me mencionou ouvir, quando regressa a França, um certo tipo de frases, miserabilistas, que por veses escuto nas imensas visitas que faço á terra onde nasci.Penso que a razão terá a ver com os traumas que ficaram desde os inicios de 60, e ainda por cicatrizar. Será um problema mais cultural que genético.
Deixo no entanto a resposta para os especialistas, que não sou !
Abraço
J.L. Reboleira Alexandre

6 comentários:

Anónimo disse...

Souvenirs,souvenirs...Todos temos souvenirs que o tempo vai limando,fazendo desaparecer as tragédias e deixando as boas recordações!
E o Cat Stevens,que eu nunca vi ao vivo mas ouvi até saber de cor,especialmente este disco.
Tenho ideia,pela referência a Salir do Porto,de já ter lido mais memórias do Reboleira Alexandre de que gostei e com que me identifiquei,temos um passado comum aí,embora eu vivesse nas Caldas.Beijinhos,Luisa.

António J M disse...

O Cat Stevens(a quem chamávamos Gato esteves) era um dos cantores e compositores que acompanhou a nossa juventude.Eu tinha poucos singles mas lembro-me de ouvir as suas músicas todas em casa se amigose no rádio.
Mas este texto fala mais do que dos concertos,recorda um tempo difícil que alterou muitas vidas e deixou muitas cicratizes.Não quero falar disso,mas fico feliz por saber que o autor deu a volta por cima de tudo isso.E o Canadá é um grande país!

João Ramos Franco disse...

Caro José Luís Reboleira Alexandre, em quase toda a historia que aqui contas, apesar de ter regressado de Angola em 1967, me encontro nas tuas palavras. Quando regressei o sentimento de que este canto era apertado para mim, também me assaltou e deambulei por essa Europa, um mês em Portugal uma semana em Paris, Londres ou Roma…
A falta de espaço que sentia aqui, era talvez diferente da tua, mas tinha de certeza em comum Angola e Caldas da Rainha e o resultado de duas culturas.
Um abraço amigo
João Ramos Franco

jorge disse...

excelente relato,memórias muito interessantes de tempos cruciais para todas as nossas vidas.o fascínio de áfrica é só dos que conhecem,mas é para toda a vida.depois são as histórias da emigração,da saída de um país que nunca chegou para todos os que cá nascem.e a música marca sempre o tempo e acompanha as recordações.eu preferia o l ferré...jorge

J J disse...

O José Luis traz-nos sempre memórias muito vivas de alguém que viveu sempre a vida com entusiasmo e determinação. E ele escreve da mesma forma, não há azedume nas suas recordações dos maus momentos e respira-se alegria na sua descoberta do Mundo em Paris, incluindo os dois concertos que relata.
É esta descoberta de outros mundos que constitui esta série e por isso gostei tanto do seu depoimento.
Um abraço. JJ

J. L. Reboleira Alexandre disse...

Quando no texto mencionava o início de Dezembro de 75, e dizia creio, a certeza das datas não existia.

Para dar razão ao creio, bastou uma rápida pesquisa, para encontrar este excerto do L' Express (leitura sempre actual e obrigatória) para realizar que afinal tudo se passou na última quinzena de Novembro, e este jovem teria apenas 23 anos. Razão tem a companheira quando repete que me estou sempre a fazer mais velho.

«Une allée ouvre en deux la mer noire des 140 musiciens et choristes massés sur la scène du Palais des Congrès. Et Léo Ferré semble marcher sur les eaux. Lorsqu'il entre, il est échevelé, livide, sanglé dans un vague battle-dress couleur de suie, corseté d'arrogante humilité. Pour la première fois en France, il va diriger. Sans baguette, sans partition : "continuer d'apprendre sans savoir".

Allez ! Que caracole Coriolan, "Muss es sein, es muss sein" ("Cela doit-il être, cela est"), comme disait ce "sourdingue" de Beethoven. Voici le pianiste Dag Achatz, fidèlement manchot par respect pour Ravel et Ferré, qui concertise de la main gauche. Voilà "La chanson du mal aimé" d'Apollinaire, le bien-aimé.

Voilà d'autres chansons qu'il ne doit qu'à lui-même, poèmes rageurs et tendres qui parlent de "La Solitude", de "L'Oppression", des Amants tristes" ou de "La Mort des loups". Ces loups-là, "sans queue ni tête", ce sont Buffet et Bontems...

Le courant passe. Alors, Ferré, Saturne en chemisette, met des ailes à ses angoisses et renonce presque à la volupté de l'invective.

"la musique souvent me prend comme l'amour", a-t-il écrit. Au Palais des Congrès, jusqu'au 30 novembre, la musique, en effet, le prend, l'emporte, le métamorphose, le rend enfin "heureux comme un petit enfant candide". Et son bonheur est contagieux.

L'Express -Danièle Heymann
(semaine du 17 au 23 novembre 1975)»

O Jorge, no seu comentário, diz que preferia Ferré. A razão da minha escolha prendia-se mais com a dificuldade em entender o texto, que me impelia mais para as melodias de Brel ou Brassens, ou pela generalidade dos poetas anglo-saxónicos.

Hoje ao abrir o album de 33 rotações La Solitude, não encontro o disco. Guardei a capa. Certamnente que, num passado já distante, tantas vezes entrou em contacto com a agulha que acabou no lixo. É que ainda hoje sou dos que pensam que não há qualidade musical como a reproduzida pelos velhos discos em vinil de 33 rotações.

Quanto ao acto de partir desse pequeno cantinho, normalmente é o resultado do somatório de várias razões que nos tiram daí, mas noto sempre que volto, que continua a existir uma certa imagem dos que se auto-exilaram, que não encontro noutras sociedades europeias. Em França por exemplo. Refiro aqui a título de informação que a maior comunidade imigrante em Montreal é recente, muito jovem, e de França. Nunca nenhum me mencionou ouvir quando regressa a França, um certo tipo de frases, miserabilistas, que por veses escuto nas imensas visitas que faço á terra onde nasci.

Penso que a razão terá a ver com os traumas que ficaram desde os inicios de 60, e ainda por cicatrizar. Será um problema mais cultural que genético. Deixo no entanto uma resposta para os especialistas, que não sou !

Abraço
J.L. Reboleira Alexandre