por João Jales
Estava já tudo preparado. As cargas das BICs fora dos invólucros transparentes, que passariam durante a próxima hora a funcionar como zarabatana, as minúsculas bolas de papel prontas a ser mastigadas e lançadas contra as presas. As raparigas, principalmente as das filas da frente, levantavam os colarinhos e entalavam o cabelo nos casacos e camisolas, protegendo o pescoço e as orelhas, os alvos mais apetecidos.
Especulava-se sobre quem entraria pela porta nos próximos momentos, era esse o motivo das conversas. Padre Xico? D. Dora? Padre Albino? As regras do jogo seriam bem diferentes conforme o árbitro designado.
Foi com surpresa que viram aparecer o professor de outra disciplina. “Oh doutor, agora é Geografia, a professora já não vem há quinze dias, a sua aula connosco é só logo à tarde!”.
E era verdade. A temível fera estava de baixa, tendo sucumbido a uma decepção amorosa, e há quinze dias que as horas de Geografia do 4º Ano eram garantidas, sem qualquer actividade didáctica, por alguém que tentava assegurar que o barulho de uma turma inactiva não perturbava as salas de aula adjacentes.
Mas não havia engano, afinal. Este era o novo Professor de Geografia. As suas primeiras palavras destinavam-se a transmitir confiança e tranquilidade. “Eu de Geografia não percebo nada, quem quiser positiva tem que saber mais que eu!”. Oh diabo, esta disciplina vai passar a ser diferente, pensaram os alunos. E foi.
Saber Geografia é interessante, engraçado e essencial à compreensão do que se passa no Mundo. Mas estudá-la é uma enorme seca, tentando encaixar café, amendoim e arroz como produções agrícolas mais prováveis de países longínquos e desconhecidos e “emparelhar” listas de capitais e países de forma a que não sobrem Budapeste e a Islândia, por exemplo, no final.
Enquanto o professor estudava mais do que os alunos, tentando abarcar uma matéria que no início do ano não lhe passava certamente pela cabeça leccionar, era necessário ganhar tempo.
Foi assim que nasceram as sabatinas. Equipas formadas por quatro especialistas de diversas áreas (capitais, produções, rios e montanhas, clima, etc.) degladiavam-se, tentando desencantar as mais irrelevantes informações contidas no manual. Capitais europeias? Esqueçam, ninguém perguntava. Mas a capital do Alto Volta essa era um must, conforme muitos daqueles alunos ainda hoje recordam: Uagadugu , pois claro (não se admirem se não sabem onde é o Alto Volta, há mais de vinte anos que esta antiga colónia francesa se chama Burkina Fasso).
Havia quem soubesse as estações do Trans-Siberiano (S. Petersburgo » Vladivostok) ao longo dos seus 9288Km e sete (sete!) fusos horários. Idem para o Trans-Canadiano (Vancouver » Toronto). Não, não estou a brincar! (pois não, Miguel?)
O professor adorava assistir a estes duelos no estrado, junto ao quadro, e limitava-se a verificar a sua “legalidade”. Dependente de três regras simples:
1-Não se usavam livros nem apontamentos escritos, quem perguntava tinha mesmo que saber a resposta correcta.
2-A resposta tinha que estar no Manual.
3-De resto, como se dizia naquele tempo,” valia tudo menos tirar olhos”.
Tudo isto durou toda essa segunda metade do ano lectivo de 1967/68, embora no terceiro período o professor, nessa altura mais bem preparado, já desse umas aulas e começasse, até, a saber mais que os alunos… Que não sei se sabiam muita ou pouca Geografia, mas sabiam tudo o que vinha no manual do 4º Ano Liceal da disciplina.
Quase esqueci tudo isto, e até o incrível esforço de memorização que muitos fizeram, essencialmente pelo prazer do jogo, até ler um interessantíssimo texto de George Steiner (O Silêncio dos Livros) em que ele reflecte sobre a vantagem do “saber de cor”. Diz ele que “a educação moderna cada vez se assemelha mais a uma amnésia institucionalizada. Deixa o espírito da criança vazio do peso das referências vividas. Substitui o saber de cor, que é também um saber do cor(ação) , pelo caleidoscópio transitório dos saberes efémeros. Reduz o tempo ao instante e vai instilando em nós, até enquanto sonhamos, uma amálgama de heterogeneidade e de preguiça”.
Não foi seguramente o nosso caso naquele ano de 1968. Interrogo-me, muitas vezes, até que ponto a Geografia que aprendi de cor, e nunca esqueci, me fez olhar o mundo de forma diferente; talvez até encarar, apreender e processar a informação (política, social, artística, etc) que diariamente recebo, de uma forma que não seria possível sem essa “camada” anterior.
Vivemos hoje tempos diferentes, seguramente, e este texto não pretende defender qualquer tese ou teoria. Apenas descrever, tão fielmente quanto a memória me permite, as aulas de Geografia do 4º Ano, no Externato Ramalho Ortigão, em 1967/68, durante os meses em que a Dra. Cristina foi substituída pelo Dr. Lopes.
João Jales
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António José Figueiredo Lopes disse:
Caro J.J.
Acabo de ler o Professor de Geografia, que me fez recuar no tempo. Foram tempos felizes. E que, por isso mesmo, são sempre muito agradáveis de recordar. Escrever bem é muito mais que simples conhecimento, é uma arte. Os meus parabéns.
Um abraço
A. F. Lopes
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João Jales respondeu:
Há comentários e comentários, não me levarão a mal os outros comentadores por responder a este de forma especial.
Este texto era obviamente dedicado ao Dr. Lopes e por isso agradeço as suas palavras, que me deram enorme prazer. Palavras que pecam por excesso de simpatia, "defeito" que lhe conheço desde o tempo em que me deu aulas.
O facto de o texto ter aparecido sem a sua foto nem a sua identificação até à última linha foi uma brincadeira propositada, embora tenha a certeza que todos os que estiveram naquelas aulas se lembraram imediatamente do que eu relato.
Caro J.J.
Acabo de ler o Professor de Geografia, que me fez recuar no tempo. Foram tempos felizes. E que, por isso mesmo, são sempre muito agradáveis de recordar. Escrever bem é muito mais que simples conhecimento, é uma arte. Os meus parabéns.
Um abraço
A. F. Lopes
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João Jales respondeu:
Há comentários e comentários, não me levarão a mal os outros comentadores por responder a este de forma especial.
Este texto era obviamente dedicado ao Dr. Lopes e por isso agradeço as suas palavras, que me deram enorme prazer. Palavras que pecam por excesso de simpatia, "defeito" que lhe conheço desde o tempo em que me deu aulas.
O facto de o texto ter aparecido sem a sua foto nem a sua identificação até à última linha foi uma brincadeira propositada, embora tenha a certeza que todos os que estiveram naquelas aulas se lembraram imediatamente do que eu relato.
3 comentários:
O texto do Jales está muito bem escrito, como sempre. Não há dúvida que o marcou aquele método de ensino baseado na competição desenfreada mas, mesmo assim, com algumas regras: "não tirar olhos!" Quanto a saber com o "coração" é fundamental, já o tenho defendido publicamente, a memória deve ser privilegiada, nomeadamente enquanto se é novo, senão é uma oportunidade perdida! Eu nem sequer me lembro de quem foram os meus professores de Geografia, mas também há professores de quem me lembro pelas piores razões, por isso, talvez não seja tão mau sinal para a disciplina como isso...
- Isabel Xavier -
Este post é divertidissimo,com uma construção e um ritmo imbatíveis,l^e-se de um fôlego,como diz a Julia.Temos aqui novamente o JJ em grande forma!
Porque será que o dr.Lopes proporciona melhores memórias que o dr.Luis?
Apesar de bom professoe nem o dr.Lopes conseguia evitar que a geografia fosse uma seca!!!Parabéns,Vitor.
Olá João
Quando comecei a ler o texto, nem sequer me lembrava de que tínhamos tido um professor diferente para "substituir" na disciplina de Geografia.
A prosa está de tal forma bem escrita que o ambiente foi de imediato recriado na minha memória.
A luz acendeu-se quando li a palavra Uagadugu.....
Parabéns João.
Estás perdoado pelos "ai" que me fizeste soltar quando sentia o "meteorito" na cabeça.
Eu estava lá...
Continua nessa forma.
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