por João Jales
O facto de o meu Pai ter um consultório em Leria, onde se deslocava duas vezes por semana, permitiu-me visitar a Teresa uma dúzia de vezes no ano lectivo de 69/70. Tínhamo-nos conhecido em S. Pedro de Moel, no fim do Verão (*).
Ela estudava no Liceu de Leiria, cidade onde o pai era funcionário das Finanças ou do Tribunal, não me lembro (ou talvez nunca tenha sabido).
Leiria era muito diferente das Caldas. O ambiente era menos sofisticado, apesar da maior dimensão da capital de Distrito, o comércio menos atractivo, os espaços de convívio, como o parque e os cafés, menos animados, com menos gente nova e uma diminuta presença feminina. Uma aldeia grande, de abastados proprietários rurais, com vivências e costumes condicionados pelo bispo e a proximidade de Fátima.
Encontrávamo-nos habitualmente na Praça Rodrigues Lobo, já que o consultório do meu Pai se situava numa pequena transversal, a R. da Graça. Foi a existência desse consultório que motivou a instalação de duas lojas de óculos, que ainda hoje lá estão, uma na própria rua e outra na esquina. Logo a seguir havia o café Lereno, com uma esplanada sob as arcadas. Também continua no mesmo local, embora completamente remodelado e com outro nome. Nunca lá ficávamos muito tempo, a Teresa não queria ser ali vista comigo.
Atravessávamos a rua e íamos até ao parque, meia-dúzia de canteiros com duas ruas no meio e dois campos de ténis do outro lado do rio. Havia uns barcos para alugar e até alguns pescadores mas, em 1969, o Liz já estava muito poluído devido aos curtumes instalados a montante da cidade. Só mais tarde foram desactivados, mudando-se para a zona de Alcanena. Havia pouco que fazer naquele espaço, a “esplanada” existente por trás do edifício do Turismo era ao nível dos “tábuas” que eu costumava ver nas praias e tinha como clientes dois ou três idosos etilizados. O ténis estava habitualmente deserto, como confirmavam o Tó Zé Hipólito e o Jorge Pedro, habituados a jogar nas Caldas, onde os campos eram disputados e marcados com dias de antecedência; aqui bastava aparecer e jogar.
Os motivos de interesse em Leiria resumiam-se quase só ao castelo, que estava nessa época em muito mau estado de conservação, com pedras caídas e ervas por todo o lado. Depois de visitar um desolado salão e subir a duas muralhas, nada mais havia para ver. Tenho ideia de estar entregue ao exército, já que havia sempre soldados por todo o lado. Era um dos destinos dos nossos passeios.
As nossas conversas incidiam sobre as nossas leituras, éramos ambos leitores compulsivos, e sobre as músicas que ouvíamos … para ser mais exacto sobre música falava eu, já que a Teresa nem se atrevia a dizer o que ouvia e do que gostava, depois de ter sabido as minhas extremas e radicais opiniões sobre o que passava no Rádio Clube Português ou na Emissora Nacional em Onda Média. Só em FM se ouvia boa música mas, nessa altura, pouca gente tinha acesso à Frequência Modulada, à sua qualidade de emissão e melhores programas. Falávamos também das aulas, dos professores, dos colegas, dos estudos. Soube com espanto que o Liceu de Leiria não tinha turmas mistas, excepto nalgumas disciplinas do 6º e 7º Ano, que tinham muito poucos alunos. Soube, mais tarde, que só após o 25 de Abril esta prática foi abandonada, o que mostra o conservadorismo reinante na capital do distrito. A Teresa nem queria acreditar que num colégio “de padres”, como o Externato Ramalho Ortigão, eu nunca tinha conhecido turmas unisexo, enquanto ela, no Liceu, nunca tinha estado numa turma mista!
Nunca soube exactamente onde morava, ela fugia dessa área, com medo da família e dos vizinhos, passeávamos sempre na zona central, lanchando ocasionalmente na Pastelaria Soraya, com um ambiente bem diferente da Zaira apesar da presença de algumas senhoras, e onde rareavam, ou nem existiam, casais da nossa idade. Mas, diga-se em abono da verdade, nunca me pareceu sermos alvo de qualquer curiosidade ou coscuvilhice dos frequentadores, talvez o facto de sermos ambos desconhecidos naquele meio nos fizesse passar despercebidos. Só o velho empregado, fardado, parecia exibir delicadezas e cerimónias exageradas, mas éramos imunes a esse tipo de ironia, motivada pela nossa idade.
Além da Soraya havia o Lísea, em frente ao Parque, frequentado pelos proprietários rurais e políticos locais, mas não era um local para gente nova. O Café Santiago, com restaurante em cima, era semelhante no conceito, mas ficava a milhas da qualidade do “nosso” Capristanos! Situava-se na zona do mercado, para onde a cidade se começava a expandir. Em frente havia o Colonial, com bilhares, mas nunca lá fui com a Teresa, as meninas não jogavam bilhar.
A minha relação com a Teresa evoluiu de forma estranha já que as nossas cartas, frequentes, nos revelavam um perante o outro de uma forma que, cara a cara, nunca teria acontecido. Mas essa intimidade intelectual chocava com o desconforto físico das minhas raras visitas a Leiria. Eu lia nesse ano Dostoievsky (conforme previsto) mas começava a apaixonar-me pelos romances “góticos” de Anne Ward Radcliffe e Charles Maturin e os seus sucessores: “Dr. Jekyll e Mr. Hyde” (R L Stevenson), “O Retrato de Dorian Gray” (Oscar Wilde), “Dracula” (Bram Stoker), “Frankenstein” (Mary Shelley) e as novelas de Henry James, Hoffman, H.G. Wells, acabando no que se revelaram as minhas eternas paixões da literatura “negra”: H. P. Lovecraft e Edgar Allen Poe. A Teresa lia Pearl Buck e, aos “meus ingleses”, preferia Jane Austen; nunca percebeu como é que, quando se falava das irmãs Bronte, alguém (eu!) preferia o “Monte dos Vendavais” a “Jane Eyre”... E aqui, ao contrário da música, ela não cedia, e era destas discussões, escritas ou faladas, que se alimentava uma relação onde, notoriamente e da minha parte, pouca paixão existia (notoriamente digo eu hoje, na altura só sentia um inexplicável mas crescente desinteresse).
Leiria não ajudava. Não me lembro de haver um museu em Leiria, o parque era minúsculo e pouco frequentado, a sua esplanada era parecida com as barracas do Levy existentes no Parque D. Carlos I, nos anos 40, e que eu só conheci em fotografias, claro. Os cafés eram soturnos, ver montras era um exercício entediante, havia um só cinema (inaugurado em 66; quando lá fiz a 4ª classe, em 64, só existia um barracão de madeira). Diziam-me os amigos que lá moravam que às oito horas a cidade morria, não se via vivalma. Nunca fui obviamente aos bailes do Ateneu nem do Ginásio de Leiria (onde residia então o já famoso Orfeão, uma excepção numa cidade culturalmente adormecida). Mas todos me garantiam que esses bailes não tinham a animação e a frequência do Lisbonense e do Casino. Muitos leirienses faziam uma hora de caminho para os frequentar nas décadas de cinquenta e sessenta. Como vinham também às compras à Góia , à Tertúlia, à Tália e ao Turita, por exemplo.
A malta nova encontrava-se na sede da Mocidade Portuguesa, junto ao Hotel Liz, frente ao velho Hospital, do outro lado do rio. Muitos deles fardados, o que era, para mim, um espectáculo inusitado nessa época. Vi juntarem-se ali jovens do Liceu e da Escola, apesar da rivalidade que se dizia existir entre eles. Mas quando soube que se “insultavam” de “papo-secos” (Liceu) e “broas” (Escola), percebi que não era grave…
A malta nova encontrava-se na sede da Mocidade Portuguesa, junto ao Hotel Liz, frente ao velho Hospital, do outro lado do rio. Muitos deles fardados, o que era, para mim, um espectáculo inusitado nessa época. Vi juntarem-se ali jovens do Liceu e da Escola, apesar da rivalidade que se dizia existir entre eles. Mas quando soube que se “insultavam” de “papo-secos” (Liceu) e “broas” (Escola), percebi que não era grave…
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Deixei de ir a Leiria, depois de lá passar uma última, e triste, tarde na Quinta-Feira da Páscoa de 1970. Era incapaz de sentir grandes emoções perante aqueles belos olhos negros e de apreciar, ainda menos elogiar, naquela idade, a ternura, a rara cumplicidade intelectual e a doçura de carácter da Teresa; eram difíceis para mim os elogios a aspectos que não a beleza física, os únicos que tinha aprendido como fazer nos livros e nos filmes. Acabei por desistir das minhas visitas, “regressando” a um mais tumultuoso amor caldense.
Em Fevereiro de 1971, quase um ano depois, um conjunto de circunstâncias colocou-me dentro do Fiat do João Manuel Sales, em direcção a um Baile de Finalistas em Leiria. Faziam parte da organização desse evento dois antigos colegas meus do ERO, entretanto emigrados para aquela cidade, o Zé Luís e o Jorge Pedro. O conjunto anunciado era o 1111, cujas “Balada para El-Rei D. Sebastião” e “Balada para D. Inês” tinham feito grande sucesso no final da década de sessenta. O seu primeiro LP, intitulado simplesmente Quarteto 1111, acabara de ser editado e imediatamente proibido pela Censura. Receio ter lá ido mais pelo grupo musical que pelos amigos organizadores, que me perdoarão seguramente esta tardia confidência. Fiquei com a ideia, durante trinta e sete anos, que o conjunto tinha sido trocado à última hora, mas sei hoje que foi o 1111 que actuou, só que sem o José Cid, vítima nessa altura do acidente rodoviário que o deixou sem um olho. Daí a minha impressão.
O Baile foi no Hotel Eurosol, que constituiu para mim uma das primeiras demonstrações de que Leiria crescia enquanto as Caldas começavam a estagnar. Uma magnífica unidade hoteleira, com boite, piscina e restaurante panorâmico surgia enquanto os hotéis caldenses começavam a ficar completamente decrépitos.
Entrámos, tinhamos viajado sete ou oito no sobrelotado Fiat 1200, e dirigimo-nos ao Bar, para “apalpar” o ambiente, como era habitual. Estava muita gente, quase todos, menos nós, de casaco e gravata. Leiria era mais formal, mesmo entre os teenagers, do que Caldas.
Ainda me lembro do Tó Zé Hipólito, sempre muito afoito nestas ocasiões, levar uma “tampa” ou duas antes de nós termos tempo sequer de pedir a primeira cerveja. Mas já dançava antes de nós a bebermos: a fortuna sorri aos audazes!
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Mais tarde, enquanto bebia mais uma cerveja junto ao Bar, ouvi alguém perguntar:
- Então hoje não tens ninguém a quem falar da Anna Karenina?
Voltei-me e dei de caras com a Teresa. Isto é, e para ser mais exacto, demorei vários segundos a descobrir que era ela. Vestida a rigor, com um fato comprido e escuro, os olhos negros mais risonhos e irónicos do que eu me lembrava de os ver, esta era uma versão verdadeiramente cinematográfica da minha apagada companheira de há um ano atrás. Arrastou-me para a pista de dança e lembro-me de ter lamentado as Jeans e camisa colorida que vestia, ela era uma boa dançarina e eu, aos dezassete anos, também não fazia má figura, mas ela merecia certamente um par com uma indumentária mais cuidada. Não pareceu ligar a isso e as horas seguintes passaram em minutos, com ela a incendiar em instantes um coração que, um ano atrás, longas horas de conversa e passeios não tinham sequer amornado…
Não houve muitas conversas nessa noite mágica, apenas me lembro de dançar e de lhe dizer coisas como:
- És tu a Anna Karenina, hoje sou eu que quero ouvir a tua estória! - e outras baboseiras desse género.
Ela respondia com graças e gargalhadas que nunca lhe tinha ouvido, nunca me permitindo saber o que se tinha passado durante este último ano e se a alegria de me rever era realmente o motivo da sua boa disposição. Mas os rapazes não têm software para compreender as modificações das mulheres, as suas transformações ao longo de um ano (nem de um dia...) ou para prever o que as leva às lágrimas ou à inexplicável alegria. Não percebia o que transformara a minha melancólica Teresa nesta radiosa Karenina (como eu insistia em chamar-lhe).
Fui arrastado mais tarde (pareceu-me pouco depois) pelos meus companheiros para o carro, não me lembro a que horas, mas demasiado cedo para a vontade que tinha de ficar!
Nos dias seguintes usei um telefone de contacto que tinha de outros tempos (um primo cúmplice) e deixei um recado. Como não obtive resposta, insisti. No final da semana recebi uma curta e delicada carta agradecendo-me a “esplêndida noite” e esperando que eu não tivesse ficado com uma impressão errada, porque só a ausência do seu actual namorado, devida a um mal-entendido passageiro, a tinha deixado livre naquele baile.
João Jales
. (*) ver ANNA KARENINA (Férias de 1969)
Leiria é uma ilustração de Rute Florlinha ..............................................................................................
farofia disse...
oh! destino cruel, oh! coração estilhaçado! no, not again!
E não é que me deixei levar por estes amores doce-amargo, como se fora história a sério, o eterno retorno das Aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry Finn, versão 1969 !!!De tantas e tantas pérolas incrustadas nesta jóia preciosa retenho que «os rapazes não têm software para compreender as modificações das mulheres, as suas transformações ao longo de um ano (nem de um dia...) ou para prever o que as leva às lágrimas ou à inexplicável alegria»...
Acrescento que nem as próprias mulheres trazem esse software incorporado, como se sabe.
1 comentário:
oh! destino cruel, oh! coração estilhaçado! no, not again!
E não é que me deixei levar por estes amores doce-amargo, como se fora história a sério, o eterno retorno das Aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry Finn, versão 1969 !!!
De tantas e tantas pérolas incrustadas nesta jóia preciosa retenho que «os rapazes não têm software para compreender as modificações das mulheres, as suas transformações ao longo de um ano (nem de um dia...) ou para prever o que as leva às lágrimas ou à inexplicável alegria»
... acrescento que nem as próprias mulheres trazem esse software incorporado, como se sabe.
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