Estive ao serviço do Externato Ramalho Ortigão, nos últimos anos da sua longa existência, sendo eu, por isso, o último dos seus Directores. Infelizmente, não na época de esplendor e de papel relevante na vida da cidade de Caldas da Rainha, mas do seu definhamento progressivo. Em cada um dos quatro últimos anos, uma parcela foi amputada. É natural, pois, que a esmagadora maioria dos alunos, hoje dispersa pelos mais variados campos da vida, desconheçam o final da sua história.
Não terei sido certamente suficientemente cuidadoso em recolher por escrito dados que seriam úteis para este depoimento. Algumas fotografias e uns escassos registos foi o que restou. Mas confio em que a memória não me atraiçoe por completo!
Em Outubro de 1971, regressei às Caldas depois de uma estada de dois anos em Tomar. Por iniciativa do Director, Padre Francisco Duarte dos Santos, vim com a incumbência de apoiar as disciplinas de Português e Latim, assim como a catequese dos mais novos, de parceria com a Helena Vieira Pereira. No fim deste ano lectivo, devido à criação da Secção das Caldas do Liceu de Leiria, terminaria o Curso Complementar dos Liceus no Externato Ramalho Ortigão. Lembro-me que, nesse ano, nas férias da Páscoa, com o Director, as professoras Júlia e Cármen Nogueira e outros, realizámos uma agradável excursão ao Sul de Espanha de que guardo diversos registos fotográficos.
O meu segundo ano ao serviço do Colégio coincidiu com o último ano de Director do Padre Xico. Nesse ano, por solicitações várias, funcionou, à noite, um regime de aulas intensivas para adultos, o que se revelou de relevante utilidade social. Mas mais uma parcela não resistiu: o Curso Geral dos Liceus (3.º, 4.º e 5.º anos) passou a ser leccionado na Secção Liceal. Restava o Ciclo Preparatório (1.º e 2.º anos) e o Ensino Primário. No final deste ano, o Senhor Cardeal Patriarca deslocou o Padre Xico para a Paróquia da Ajuda, em Lisboa.
Em Outubro de 1973, depois de nomeado pelo Patriarcado, requeri ao Secretariado do Ensino Particular do Ministério da Educação Nacional o Diploma de Director. Soube, logo a seguir, que a PIDE teve o cuidado (!) de se informar junto de algumas entidades e pessoas da cidade sobre o novo Director. O resultado foi nunca me ter sido atribuído qualquer diploma. O Patriarcado deve ter mantido a sua decisão e julgo ter sido, até ao fim, um Director ilegal…
No início do meu mandato, convidei os últimos professores em funções no ano anterior para um almoço-convívio no edifício do Colégio, em que todos lamentaram o que estava a acontecer. Lembro-me do testemunho emotivo do professor Figueiredo Lopes em clima de confidência. Deu-se, depois, o 25 de Abril. Ainda foi leccionada a primeira aula da tarde desse dia, mas não mais, porque os familiares dos alunos vieram gradualmente buscar os seus filhos, assustados como estavam com a situação. Durante esse ano, na continuidade do que já se fazia anteriormente, promovemos, à noite, aulas de explicações intensivas de preparação dos exames do chamado curso propedêutico de entrada na Universidade. Esta iniciativa foi realmente considerada pela generalidade das pessoas como um bom serviço prestado a toda a região, que no ano seguinte – certamente devido à sua projecção social - havia de ser parcialmente boicotado por um grupo de professores do liceu, sob a liderança do dr. Perpétua, que ousou instalar, num estabelecimento de ensino público - que, por definição, é gratuito! - aulas à noite a expensas dos alunos… Tudo se permitia naquele tempo e com intenções óbvias…
O último dia de aulas do Ciclo Preparatório foi vivido normalmente, mas, ao terminar, lembrei-me de convidar alguns alunos para um breve passeio até junto de um moinho, no Chão da Parada, de que é testemunho uma fotografia que tive o cuidado de tirar sem que revelasse a ninguém as minhas intenções.
Só pouco antes do ano escolar seguinte é que convoquei os encarregados de educação para lhes dar contar da decisão de fechar o Ciclo. Todos deploraram a situação dada a conhecer às pessoas presentes, mas dessa reunião surgiram diversas sugestões sobre algumas actividades a desenvolver ao nível de tempos livres após as aulas na escola oficial.
Entretanto, na paróquia, procurava-se há algum tempo reactivar uma instituição denominada “Patronato de S. José” que funcionava num espaço hoje ocupado pelo Centro Social Paroquial, antiga residência do dr. Pires de Lima, há muito disponível apenas quanto ao seu usufruto. O pároco, o Padre José Guerra, promoveu a mudança do estatuto legal desta instituição para “Centro Social Paroquial” e pensou-se, então, na sua instalação no edifício do Colégio.
Em Outubro de 1974, restava apenas o ensino primário. Dei formalmente ao Patriarcado conta do que se adivinhava: o fecho definitivo do Externato no ano seguinte. Perante a situação, o Cardeal Ribeiro consultou a Congregação dos Salesianos para a continuidade deste estabelecimento de ensino. Por esse motivo, recebi uma delegação desta instituição que procurou informar-se sobre a situação, documentou-se com fotografias, abriu um “dossier”, mas nada mais eu soube sobre os seus contactos com o Patriarcado. Neste último ano, além ainda da manutenção do Ensino Primário, começou a funcionar o Jardim de Infância do Centro Social Paroquial. Foi extremamente oportuna esta instalação, para preservar o edifício, apesar de, nos primeiros anos, o Director do Centro, o Padre José Guerra, ser obrigado a admitir, na Direcção, elementos impostos pelas forças políticas vigentes na cidade. Com muito empenho, conseguiu manter a instituição sob a alçada da Igreja.Entretanto, emergia a convulsão social no país. Grassava a era das “ocupações”. Foi neste contexto que tive de enfrentar duas “delegações” no sentido de “ocuparem” o Colégio. A primeira soube que a tinha de receber por parte do pároco da cidade a quem o sr. Artur Capristano comunicara a pretensão do Ministério. Foi então que tive de acolher na sala dos docentes do Colégio um conjunto de professoras do Ciclo Preparatório (actuais 5.º e 6.º anos), de que me lembro fazerem parte, além de um representante do Ministério, a professora Ana Luísa, esposa do Mestre Mateus da Escola Industrial. Informei sobre o reduzido número de salas disponíveis perante a instalação recente do Jardim de Infância do Centro Social Paroquial. Pareceu-me terem saído convencidos, o que mais tarde não me foi confirmado, nem ocasionalmente pela professora Margarida Ribeiro, nem, depois, pelo bispo auxiliar de Lisboa, D. António Marcelino, a quem foi feito um reparo por parte do Ministério. A outra delegação foi recebida, não por mim, mas pelo Presidente Velhinho, no edifício da antiga Câmara Municipal. Além do Presidente (da Comissão Administrativa da Câmara?) e de mim próprio, estiveram presentes Marcelo Morgado, José Luís Lalanda Ribeiro e os professores Mário Tavares e Norte. Estes dois últimos propunham a entrega do Colégio, ao que me opus dizendo que, se a revolução de Abril era pela liberdade, tinha também de se preservar o ensino livre fora do âmbito do Estado. Mário Tavares respondeu-me dizendo não compreender onde eu queria chegar com esse tal “ensino livre”. No entanto, esta opinião era corroborada pelo professor Norte. Tomou, depois, a palavra Marcelo Morgado que afirmou desejar que os seus filhos fossem educados num ensino livre como, por exemplo, no da Igreja, de preferência ao do Estado. E assumiu essa posição afincadamente, o que não deixei de sublinhar mais tarde quando presidi às suas exéquias. A certa altura, o Presidente abandonou a reunião, julgo que propositadamente por não concordar com a “ocupação” do edifício do Colégio. Sinceramente não me lembro como acabou a reunião, mas nada de relevante ficou decidido.
Os anos após o encerramento do ensino foram de aproveitamento do espaço pelo Centro Social, embora muita coisa estivesse ainda ao meu cuidado, nomeadamente algum recheio que passava a ser requerido por estabelecimentos de ensino do Patriarcado e outros como o Colégio do Planalto, de Lisboa, pertencente à Prelatura do Opus Dei, que passou a utilizar parte dos laboratórios. Lembro-me ter sido este Externato que levou o célebre esqueleto… Mas garantiram que ofereceriam um outro completamente novo, se o Colégio Ramalho Ortigão reabrisse.
Começou, depois, a surgir, a ideia da instalação da Universidade Católica. E diga-se com toda a justiça, graças à insistência, e talvez à teimosia, do pároco, Cónego José Guerra, apoiado pelo Presidente da Câmara. Cheguei a pertencer a uma incipiente Comissão Instaladora, de que faziam parte o Pároco, o Presidente da Câmara e o dr. Rogério Caiado e não me lembro de quem mais. Nesta qualidade, chegámos a ser recebidos, em Lisboa, por D. José Policarpo, na altura bispo auxiliar de Lisboa e Reitor da Universidade Católica. Da minha parte, além de outros trabalhos pastorais, passei a dar aulas na Secção Liceal, para logo me afastar e enveredar pela carreira universitária, em Lisboa.
PADRE MANUEL AUGUSTO NAIA DA SILVA
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COMENTÁRIOS
João Jales disse:
É um privilégio ter aqui este último capítulo da história do Colégio narrado pelo seu Director na altura. Como o próprio reconhece, este é um período mal conhecido e sobre o qual nenhum elemento tinha ainda surgido aqui no Blog. Completa, e corrige, a breve história do ERO que aqui publicámos em Janeiro
Coincide com um período conturbado da nossa História recente, com alguns actores muito conhecidos, a maioria felizmente vivos. Mas é de notar que o fim do Colégio como estabelecimento de Ensino Liceal é anterior ao 25 de Abril, motivado pela abertura do Liceu nas Caldas da Rainha e não pela Revolução.
Gostaria de ver aqui comentários de alunos desta época, algum deles visita o Blog? E tem memórias desta época? Fico a aguardar.
Teremos aqui a seguir o outro depoimento de uma aluna desta época, mas que não constitui um comentário, já que os dois textos foram escritos em simultâneo e sem mútuo conhecimento.
Manuela Gama Vieira disse:
Li com muito interesse este artigo.
Apesar de ter ingressado na Faculdade em 1969/1970,o meu irmão mais novo frequentou uma parte da "Instrução Primária" no ERO; até 1975,se não estou em erro,ano em que fomos residir para Coimbra.
Isabel Esse disse:
Bom,este depoimento é sem dúvida uma honra para o nosso blogue,já que quem melhor que o Director para contar o que se passou?
Eu até julgava que o Colégio tinha acabado em 1972,como o Jales dizia na sua crónica.
As peripécias de 1975 são típicas da época!
Obrigada,PadreNaia.
Ana Carvalho disse:
Olá
Eu, nesta altura já não estava no ERO. Já li o que o Padre Naia escreveu e com muito prazer, mas eu já não passei por estes anos de transição do Colégio para o Liceu .
Eu saí do Colégio para Leiria em 69 ou 70, já não me lembro bem, e nesta altura já estava em Lisboa. Bjs PP
Luís disse:
Toda esta história é um bocado triste,realmente.Mas ainda bem que é contada na primeira pessoa,assim sabemos exactamente como aconteceu.Durou trinta anos o colégio como tal,antes de passar a infantário.Para o próximo Almoço devias juntar tudo o que foi escrito e editar(em papel) a HISTÓRIA DO ERO!Guarda-me um exemplar.Abraço.Luis M
João Ramos Franco disse:
Com o devido respeito pelo sentir do Padre Naia e de todos os colegas que viveram este momento da história do Colégio narrado pelo seu Director na altura, está presente em mim que foi aí no ERO que estudei Camões e dele retiro estas palavras, que penso serem válidas neste contexto:
“Mudam-se os tempos
Mudam-se as vontades
Todo o mundo é composto de mudanças…”
2 comentários:
Li com muito interesse este artigo.
Apesar de ter ingressado na Faculdade em 1969/1970,o meu irmão mais novo frequentou uma parte da "Instrução Primária" no ERO; até 1975,se não estou em erro,ano em que fomos residir para Coimbra.
Bom,este depoimento é sem dúvida uma honra para o nosso blogue,já que quem melhor que o Director para contar o que se passou?
Eu até julgava que o Colégio tinha acabado em 1972,como o Jales dizia na sua crónica.
As peripécias de 1975 são tipicas da época!
Obrigada,PadreNaia.
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