A LARANJINHA
A "laranjinha" era um jogo fantástico e que eu adorava. Alguns de nós, recordo eu próprio, o "Semilha" (Louceiro), o "Branquinho" e o Camané, éramos jogadores frequentes. A nossa aproximação ao jogo terá sido por pura curiosidade mas, rapidamente, atingimos níveis de execução que levou a que os jogadores habituais preferissem a constituição de equipas mistas a defrontarem-nos. Eu, por exemplo, era parceiro habitual do Licínio, sapateiro, e do Zé Maria "Cara de Aço", que trabalhava no Hugo (dos caixões). Tanto um como outro eram parceiros muito difíceis já que, à medida que o jogo decorria e as "rodadas" se sucediam, o seu fulgor inicial ia declinando quase me deixando, na "mão", a responsabilidade da pontuação; claro que não prescindindo nunca da sua posição de "orientadores" severos sobre a estratégia de jogo a desenvolver.
O jogo exigia uma concentração semelhante à necessária para o bilhar; eram habituais as tentativas de desestabilização do adversário mandando uma "bocas" na altura de este jogar; era o chamado "falar à mão" e penso ser esta a origem do frase popular.
Em tributo ao jogo e ad memoriam eis uma breve descrição do jogo:
O objectivo era atingir com uma bola, de diâmetro médio à volta de 12/13 cm havendo umas mais pequenas e outras maiores que os jogadores escolhiam em função da adaptação à sua mão, uma bola mais pequena: a "laranjinha".
Ambas as bolas eram de madeira, geralmente madeiras duras como a azinho, e os jogadores traçavam a giz as suas marcas identificadoras (a forma de marcar as bolas teria dado um estudo interessante); a minha marca era um olho estilizado que ainda hoje uso nas bolas de golfe (como sou "meio cego" tenho uma confiança esotérica nesta marca).
O jogo desenvolvia-se numa caixa aberta no pavimento - o campo - com cerca de 20cm de profundidade; o pavimento era revestido com uma camada de casca de ostra, finamente moída, perfeitamente nivelada, o que implicava um trabalho de manutenção diário; as tabelas laterais da caixa eram de madeira mas as dos topos eram de cortiça (para amortecimento do impacto da bola jogada que, assim, "morria" no fim do percurso da jogada).
O campo deveria ter uma largura de 1,5 m para 6 m de comprimento e era dividido em duas metades nas quais se jogava alternadamente; dizia-se jogar "para baixo" e jogar "para cima" numa topologia referente ao placard onde se registavam os resultados (constituído por vários ábacos e um quadro de ardósia); a divisão era identificada por um boneco de ferro, o "polícia", preso à tabela por um único prego o que fazia rodá-lo quando atingido sendo, neste caso, o jogador penalizado com perda da jogada já que a bola tinha que embater na tabela antes desta marca
Jogava-se "mano a mano" ou por equipas de dois ou, no máximo, três jogadores.
A bola tinha duas técnicas de lançamento:
Dizia-se "à tira", quando o jogador a impelia de encontro à tabela perto de si comunicando-lhe o efeito (por acção dum sofisticado movimento conjugado do pulso e dos dedos) e a força necessários; era a técnica mais "estilosa", com uma colocação de pés e de corpo muito peculiar em cada jogador, e a que exigia maior perícia; usava-se, sobretudo, quando havia hipótese de impacto directo na "laranjinha" ou era necessário "abrir" a aglomeração de bolas anteriormente jogadas; do impacto resultava um movimento cujo ângulo com a tabela era pequeno.
Dizia-se "à larga", quando o jogador a impelia de encontro à tabela oposta à sua colocação; a técnica de efeito era semelhante à anterior embora, pelo facto de a jogada não implicar tanta força como nesse movimento, não exigisse tanta perícia; usava-se para ângulos de impacto mais abertos, sobretudo quando a "laranjinha" estava mais tapada ou o objectivo era apenas disputar o "tento".
A pontuação referia-se:
Ao impacto na laranjinha em trajectória directa - 1 "ponto"; se a bola tivesse tocado a tabela de fundo, "à volta", o impacto já não contava para ponto;
À maior proximidade à "laranjinha" no fim de todas as jogadas; a bola mais perto marcava "tento"; cinco "tentos" perfaziam um "ponto".
A ordem de saída na primeira jogada, era estipulada por sorteio ou, em geral, fazia-se como no bilhar: lançavam-se as bolas à tabela de fundo saindo a equipa da bola que ficasse mais perto dessa tabela; nas jogadas seguintes a saída pertencia à equipa que tivesse obtido maior pontuação na jogada anterior; a colocação da laranjinha pertencia à equipa que saía e fazia-se jogando-a para o campo de jogo (sempre para além do "polícia").
As partidas jogavam-se "à melhor" dum total de pontos previamente acordado; seriam mais curtas se houvesse muitas equipas interessadas em jogar; jogava-se, então, à "roda e bota fora" (como nos matrecos) e se houvesse rodadas (de tintol) em jogo, os campeões só poderiam ser os capazes de aliar a perícia no jogo a um forte poder de "embocadura".
Nesse tempo (69 a 74) frequentava os dois campos que existiam em actividade nas Caldas – a Floresta, magnífico sempre bem tratado, e o da taberna do "Serralha", pouco cuidado, com um piso muito irregular e com as tabelas muito danificadas; servia só para matar o "vício" quando a Floresta estava completamente "tomada" com uma lista de espera "sem esperança".
O proprietário da Floresta, o sr Cipriano ofereceu-me, há uns anos, uma dessas bolas com que me entretive por muitas, boas e saudosas horas. O meu pai fez-me o favor de a envernizar e de lhe inventar um suporte próprio e digno. E é um dos objectos pessoais que mais acarinho sendo muitas as vezes em que lhe pego e a faço rodar na mão como se me preparasse para a lançar...mas há coisas que só na nossa memória e imaginação são hoje possíveis...e é pena.
O jogo exigia uma concentração semelhante à necessária para o bilhar; eram habituais as tentativas de desestabilização do adversário mandando uma "bocas" na altura de este jogar; era o chamado "falar à mão" e penso ser esta a origem do frase popular.
Em tributo ao jogo e ad memoriam eis uma breve descrição do jogo:
O objectivo era atingir com uma bola, de diâmetro médio à volta de 12/13 cm havendo umas mais pequenas e outras maiores que os jogadores escolhiam em função da adaptação à sua mão, uma bola mais pequena: a "laranjinha".
Ambas as bolas eram de madeira, geralmente madeiras duras como a azinho, e os jogadores traçavam a giz as suas marcas identificadoras (a forma de marcar as bolas teria dado um estudo interessante); a minha marca era um olho estilizado que ainda hoje uso nas bolas de golfe (como sou "meio cego" tenho uma confiança esotérica nesta marca).
O jogo desenvolvia-se numa caixa aberta no pavimento - o campo - com cerca de 20cm de profundidade; o pavimento era revestido com uma camada de casca de ostra, finamente moída, perfeitamente nivelada, o que implicava um trabalho de manutenção diário; as tabelas laterais da caixa eram de madeira mas as dos topos eram de cortiça (para amortecimento do impacto da bola jogada que, assim, "morria" no fim do percurso da jogada).
O campo deveria ter uma largura de 1,5 m para 6 m de comprimento e era dividido em duas metades nas quais se jogava alternadamente; dizia-se jogar "para baixo" e jogar "para cima" numa topologia referente ao placard onde se registavam os resultados (constituído por vários ábacos e um quadro de ardósia); a divisão era identificada por um boneco de ferro, o "polícia", preso à tabela por um único prego o que fazia rodá-lo quando atingido sendo, neste caso, o jogador penalizado com perda da jogada já que a bola tinha que embater na tabela antes desta marca
Jogava-se "mano a mano" ou por equipas de dois ou, no máximo, três jogadores.
A bola tinha duas técnicas de lançamento:
Dizia-se "à tira", quando o jogador a impelia de encontro à tabela perto de si comunicando-lhe o efeito (por acção dum sofisticado movimento conjugado do pulso e dos dedos) e a força necessários; era a técnica mais "estilosa", com uma colocação de pés e de corpo muito peculiar em cada jogador, e a que exigia maior perícia; usava-se, sobretudo, quando havia hipótese de impacto directo na "laranjinha" ou era necessário "abrir" a aglomeração de bolas anteriormente jogadas; do impacto resultava um movimento cujo ângulo com a tabela era pequeno.
Dizia-se "à larga", quando o jogador a impelia de encontro à tabela oposta à sua colocação; a técnica de efeito era semelhante à anterior embora, pelo facto de a jogada não implicar tanta força como nesse movimento, não exigisse tanta perícia; usava-se para ângulos de impacto mais abertos, sobretudo quando a "laranjinha" estava mais tapada ou o objectivo era apenas disputar o "tento".
A pontuação referia-se:
Ao impacto na laranjinha em trajectória directa - 1 "ponto"; se a bola tivesse tocado a tabela de fundo, "à volta", o impacto já não contava para ponto;
À maior proximidade à "laranjinha" no fim de todas as jogadas; a bola mais perto marcava "tento"; cinco "tentos" perfaziam um "ponto".
A ordem de saída na primeira jogada, era estipulada por sorteio ou, em geral, fazia-se como no bilhar: lançavam-se as bolas à tabela de fundo saindo a equipa da bola que ficasse mais perto dessa tabela; nas jogadas seguintes a saída pertencia à equipa que tivesse obtido maior pontuação na jogada anterior; a colocação da laranjinha pertencia à equipa que saía e fazia-se jogando-a para o campo de jogo (sempre para além do "polícia").
As partidas jogavam-se "à melhor" dum total de pontos previamente acordado; seriam mais curtas se houvesse muitas equipas interessadas em jogar; jogava-se, então, à "roda e bota fora" (como nos matrecos) e se houvesse rodadas (de tintol) em jogo, os campeões só poderiam ser os capazes de aliar a perícia no jogo a um forte poder de "embocadura".
Nesse tempo (69 a 74) frequentava os dois campos que existiam em actividade nas Caldas – a Floresta, magnífico sempre bem tratado, e o da taberna do "Serralha", pouco cuidado, com um piso muito irregular e com as tabelas muito danificadas; servia só para matar o "vício" quando a Floresta estava completamente "tomada" com uma lista de espera "sem esperança".
O proprietário da Floresta, o sr Cipriano ofereceu-me, há uns anos, uma dessas bolas com que me entretive por muitas, boas e saudosas horas. O meu pai fez-me o favor de a envernizar e de lhe inventar um suporte próprio e digno. E é um dos objectos pessoais que mais acarinho sendo muitas as vezes em que lhe pego e a faço rodar na mão como se me preparasse para a lançar...mas há coisas que só na nossa memória e imaginação são hoje possíveis...e é pena.
.......................................................................................................................
COMENTÁRIOS:
.
.
11-05-2008
vasco disse:
muito bem, este reviver dos tempos áureos da laranjinha está perfeito, que saudades. Obrigado Zé Manel. VB
vasco disse:
muito bem, este reviver dos tempos áureos da laranjinha está perfeito, que saudades. Obrigado Zé Manel. VB
.
11-05-2008
o das caldas disse:
Que descrição fantástica! E o Hugo (dos caixões), se bem me lembro, era o pai da Emiliana. Higino Rebelo
.
11-05-2008
Guidó disse:
Gostei muito de ler a tua descrição das regras do jogo e da tua própria vivência.
Eu, no Bom Sucesso, jogava ao chinquilho, por aqui pela Caldas não se jogava?
As menina eram fãs do mata (eira da Quinta de St. António, lembram-se?)
Guidó
Guidó disse:
Gostei muito de ler a tua descrição das regras do jogo e da tua própria vivência.
Eu, no Bom Sucesso, jogava ao chinquilho, por aqui pela Caldas não se jogava?
As menina eram fãs do mata (eira da Quinta de St. António, lembram-se?)
Guidó
.
11-05-2008
Belão disse:
Mas que bela dissertação sobre laranjinha, Zequinha!Isto é quase uma tese de doutoramento!Parabéns e obrigada por este depoimento.Belão
Belão disse:
Mas que bela dissertação sobre laranjinha, Zequinha!Isto é quase uma tese de doutoramento!Parabéns e obrigada por este depoimento.Belão
.
11-05-2008
Luis António disse:
E têm a certeza que já não há onde jogar "laranjinha"? De repente fiquei cheio de vontade de jogar!!
5 comentários:
Que descrição fantástica! E o Hugo
(dos caixões), se bem me lembro, era o pai da Emiliana.
muito bem, este reviver dos tempos aureos da laranjinha está perfeito, que saudades. Obrigado Zé Manel. VB
Mas que bela dissertação sobre laranjinha, Zequinha!
Isto é quase uma tese de doutoramento!
Parabéns e obrigada por este depoimento.
Belão
Adorei a tua escrita sobre este tão praticado jogo de outros tempos.
Fez-me recordar um outro jogo que o meu avô possuía no seu estabelecimento (taberna), no Bombarral e que eu sempre que fugia um pouco das vistas de minha mãe ia até lá para assistir aqueles desafios.
Sim porque vinham de fora, de outras localidades próximas em grupo logo pela manhã. Iam ficando para almoço, porque o meu avô também servia refeições e quando surgia o tempo deles, eles lá estavam a jogar o "chinquilho".
A minha posição era sempre de quem está a ver um espectáculo, sem ter comprado bilhete, porque os adultos não gostavam de ter crianças ali por perto, era perigoso e desviava-lhes a atenção.
Abraço e obrigado.
Adorei a tua escrita sobre este tão praticado jogo de outros tempos.
Fez-me recordar um outro jogo que o meu avô possuía no seu estabelecimento (taberna), no Bombarral e que eu sempre que fugia um pouco das vistas de minha mãe ia até lá para assistir aqueles desafios.
Sim porque vinham de fora, de outras localidades próximas em grupo logo pela manhã. Iam ficando para almoço, porque o meu avô também servia refeições e quando surgia o tempo deles, eles lá estavam a jogar o "chinquilho".
A minha posição era sempre de quem está a ver um espectáculo, sem ter comprado bilhete, porque os adultos não gostavam de ter crianças ali por perto, era perigoso e desviava-lhes a atenção.
Abraço e obrigado.
Victor Pessa
Enviar um comentário