por Jaime Serafim
Não posso resistir sem meter a minha colherada…
A Sr.ª D. Dora foi sempre muito minha amiga (e eu dela, claro), tratou-me sempre com muita simpatia e amizade e até mesmo com um carinho como se de família se tratasse.
Era uma Senhora de apresentação impecável, sempre muito bem vestida, bem maquilhada, bem penteada, unhas bem tratadas, sapatos elegantes, de saltos em agulha, altíssimos. Como as capas dos saltos eram minúsculas, desgastavam-se facilmente e, para prevenir constantes idas ao sapateiro, a Sr.ª D. Dora conseguia caminhar em bicos dos pés, praticamente sem pousar as capas no chão. Esta atitude dava-lhe um andar engraçado, saltitante, mas que até lhe ficava bem… pelo menos eu sempre achei interessante – era como uma imagem de marca, como hoje se diz.
A propósito dos seus famosos sapatos, quase sempre comprados numa das melhores sapatarias de Lisboa, a sapataria “Hélio”, lembro-me de um acontecimento algo insólito, que passo a relatar:
Quase no final do intervalo grande da manhã, entrou na sala de professores a Madame Nicole, que na hora seguinte iniciava o seu dia de trabalho, com uma aula ao 5.º ano. Estávamos vários professores a tomar o nosso café, e alguém repara que a Madame trazia um sapato de cada cor – um preto e outro castanho claro. A referida Senhora usava SEMPRE saltos rasos e sapatos enormes, bem confortáveis.
Então e agora? Como iriam reagir os alunos ao verem a professora de Francês entrar com um sapato de cada cor?
Todas as senhoras presentes tinham aulas na hora seguinte, excepto a Sr.ª D. Dora. De imediato, esta se ofereceu para emprestar os seus sapatos à Madame Nicole, ficando ela descalça, durante esta hora, na sala de professores. O oferecimento foi aceite.
Soube depois, porque me foi contado pelos alunos dessa turma do 5.º ano, da perplexidade em que ficaram quando viram a professora de Francês aproximar-se, agarrada à parede, algo cambaleante, mas não perceberam o que se estava a passar.
Ao chegar à porta da sala, a professora mandou os alunos entrar e, em seguida, apoiando-se nas mesas, foi penosamente rumando até à secretária, sentando-se na cadeira tão rapidamente quanto lhe foi possível.
Os alunos interrogavam-se da razão daquele procedimento algo estranho e, ao longo da aula, tudo fizeram para que a professora se levantasse, para poderem aquilatar do que se estaria a passar. Mas nunca o conseguiram.
Terminada a aula, mandou sair os alunos, o que não foi fácil, porque todos queriam, sem o dizer, ver sair a professora. Mas acabaram por sair, permanecendo a professora sentada. Algumas alunas, que propositadamente ficaram para trás, viram então a professora sair da sala e, com grande espanto, reconheceram que estava calçada com os sapatos da D. Dora!
Mas não quero terminar esta minha intervenção sem me referir à grande disponibilidade que a Sr.ª D. Dora sempre manifestava para ajudar um colega, defender um aluno ou uma aluna. Poderia parecer, perante os alunos, que era ríspida e por vezes pouco tolerante, mas na hora da verdade, os alunos tinham nesta Senhora uma defensora acérrima e uma verdadeira amiga e muitos deles nem o suspeitavam.
Lembro as discussões acaloradas entre a Sr.ª D. Dora e o Sr. Padre Renato, durante a hora do café. Era uma competição de amigável, aguerrida, desconcertante, inteligente, como só é possível entre duas pessoas de muito valor, muita educação e, principalmente, com uma enorme amizade mútua.
Lembro a grande satisfação com que a Sr.ª D. Dora nos comunicou que iria ver o Papa, em visita a Fátima, num lugar privilegiado da colunata, e que esse lugar lhe tinha sido oferecido pelo Dr. Paulo Rodrigues. Nunca soubemos bem se essa enorme satisfação se referia à colunata, ou à visita do Papa, ou à origem do oferecimento.
Lembro as muitas tardes que comigo passou nos laboratórios de Física e de Química, em vésperas dos exames. Como certamente se lembrarão, o júri vinha do Liceu de Leiria e, sem que eu lhe pedisse, todos as anos ficava comigo várias tardes e, enquanto eu ia preparando reagentes e material específico, a Sr.ª D. Dora lavava escrupulosamente todo o material de vidro e puxava-lhe o lustro, encerava o material de madeira e areava os metais, sem se importar com a beleza das suas mãos nem com o verniz das suas unhas. Dizia que queria que os professores de Leiria reconhecessem que os nossos laboratórios eram muito mais limpos e bonitos que os deles e que, em consequência, os nossos alunos eram também muito melhores.
Era uma grande Senhora, a Sr.ª D. Dora! Eu tinha nela uma grande amiga, que recordo com muito carinho e saudade.
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Jaime Serafim
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C O M E N T Á R I O S
Jaime Serafim disse:Olá João Jales
Agorinha mesmo, a mexer nuns papeis, encontrei uma foto de um jantar, onde está a Sr.ª D. Dora ao pé de mim e da minha mulher.Se entender que ainda poderá ter cabimento...
Um abraço. Jaime
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Belão disse...
Brillhante! Brilhante esta estória contada pelo Dr. Serafim!Neste momento estou na escola, num momento de pausa, na sala dos professores. Posso dizer que, com as minhas gargalhadas a ler a cena dos sapatos da Mme Nicole, cinco ou seis colegas apareceram junto de mim, admirados com tão boa disposição logo pela manhã.O Dr Serafim sempre teve um sentido de humor fantástico. Obrigada Dr.Serafim.
Brillhante! Brilhante esta estória contada pelo Dr. Serafim!Neste momento estou na escola, num momento de pausa, na sala dos professores. Posso dizer que, com as minhas gargalhadas a ler a cena dos sapatos da Mme Nicole, cinco ou seis colegas apareceram junto de mim, admirados com tão boa disposição logo pela manhã.O Dr Serafim sempre teve um sentido de humor fantástico. Obrigada Dr.Serafim.
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LS disse...
Não sou vosso colega ERO mas fui colega de Escola do Dr. Serafim,a quem aqui dou os parabéns pelo talento literário.
Não sou vosso colega ERO mas fui colega de Escola do Dr. Serafim,a quem aqui dou os parabéns pelo talento literário.
Aproveito para um aviso à Belão:os olhos e ouvidos da ministra andam aí,vivemos tempos perigosos para se permitir declarar assim que tem momentos de pausa na sua actividade...LS
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Manuela Gama Vieira disse:
Dr. Serafim, que delícia de texto!Ai aqueles saltos altos! Que elegância, para o olhar, que tormento para andar!
Eu arriscaria que a satisfação da Srª D. Dora na sua visita a Fátima se ficou a dever, não só ao facto de ir ver o Papa- a Srª D. Dora tinha profundas convicções religiosas- mas também ao gesto, próprio de um gentleman, do Dr. Paulo Rodrigues. Do significado do gesto, só o próprio poderia falar..."Le coeur a des raisons que la raison ne connais pas".
Manuela Gama Vieira
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João Jales disse:
Este texto, escrito de uma forma precisa e clara, com aquele ar casual com que se contam estórias em família (e que só aparentemente é fácil de reproduzir por escrito), alia humor a uma genuína ternura e afecto pela D. Dora.
As memórias do Dr. Serafim são brilhantes e a cores e é assim que ele consegue que nós as vejamos. JJ
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Isabel X disse...
É particularmente significativo este testemunho do Dr. Serafim! A D. Dora era uma daquelas pessoas que se dedicou ao Colégio como poucas e que sofreu, também como poucos, quando se deu o seu fim, como é natural!
É particularmente significativo este testemunho do Dr. Serafim! A D. Dora era uma daquelas pessoas que se dedicou ao Colégio como poucas e que sofreu, também como poucos, quando se deu o seu fim, como é natural!
É fantástica esta história! Uma vez mais a realidade supera largamente a ficção! É quase impossível imaginar a Madame Nicole calçar, quanto mais andar, ainda que cambaleante, os sapatos da D. Dora.
Este blogue é um achado!
Afinal o lugar da D. Dora em Fátima era na colunata, bem bom!
- Isabel Xavier -
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São Caixinha disse:
Espectacular este texto do Dr. Serafim! Também me fartei de rir!!! Eu que sempre pensei que o andar peculiar da D. Dora se devia à dificuldade de encontrar o equilíbrio em cima dos "stilettos"! Encontrar o equilibrio... e conseguir andar, o que só por si já demonstra capacidades sobrenaturais... mas pensar que ela ainda se dava ao luxo de andar aos pulinhos para poupar as capas...desafia-me os limites da compreensão! É admirável!!
Estou a lembrar-me daquela frase que alguém disse sobre a Ginger Rogers : "She did everything Fred Astaire did, but she did it backwards and in high heels!" Ora bem!
Bjs, São
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farofia disse...
Caro Serafim, esta é uma estória imperdível de hilariante! … só você! ...e eu fico com saudades do seu humor-amor de traços fortes e multicores, dessa sua química existencial que sempre fascina os que têm a sorte de o conhecer de perto.
Caro Serafim, esta é uma estória imperdível de hilariante! … só você! ...e eu fico com saudades do seu humor-amor de traços fortes e multicores, dessa sua química existencial que sempre fascina os que têm a sorte de o conhecer de perto.
‘Ouvi-o’ falar com orgulho do seu orientador de estágio pedagógico, Rómulo de Carvalho, e esta sua fotografia da Dona Dora recorda-me insistentemente um texto do seu mestre:
"A descoberta da fotografia é uma das realizações mais extraordinárias que o génio do Homem tem conseguido. Por meio dela eternizamos o que é passageiro, tornamos a ver o que já passou, continuamos vivos depois de mortos. Pega-se na pequena caixa preta, dirige-se para a pessoa que se estima, para o objecto que nos agrada ou a paisagem que nos encanta, move-se uma pequena alavanca e está o milagre realizado."
Rómulo de Carvalho, in "História da Fotografia", Ciência para gente nova - nº 2, Atlântida - Coimbra, 1960
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Anabela disse:
Genial! Fartei-me de rir... e fiquei a saber, quarenta anos depois, porque é que a Srª D Dora andava aos saltinhos!
Já não sei quem é que aqui disse que se calhar não conhecemos bem a D. Dora, mas estou agora convencida que tinha razão. Obrigada por isso Dr. serafim.
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Anabela Miguel disse:
Vou utilizar as mesmas palavras da Dra. Inês, imperdível e hilariante o texto do Dr.Serafim.Conseguiu fazer-me rir durante uns bons minutos.Tenho acompanhado a sua escrita e sinceramente foi para mim uma revelação pois desconhecia,por completo o seu sentido de humor e o óptimo narrador que é.
Que bom haver este blog para podermos constatar , mesmo muitos anos depois, o lado engraçado que existia em alguns dos nossos ex-professores, o que na época passava ao lado............
Quanto à D.Dora, acho que tem sido muito bem retratada, com subtileza e carinho.Eu começava logo o dia a lidar com esta Senhora, pois ela apanhava também a carrinha no Borlão,que nos transportava até ao Colégio. Claro que, durante o trajecto, assisti a muitas peripécias com a D.Dora, que nos faziam rir e que por vezes eram dificéis de disfarçar, mas sempre com respeito.Lembro-me que o jeito do seu penteado era o que mais nos chamava a atenção, muito ripado e cheio de laca.
A foto que acompanha o artigo, bem escolhida João!!!!!!Uma bonita perna com um bonito sapato de salto alto é muito sensual.......!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Um abraço. AMiguel
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Isabel Knaff disse.
Não quero deixar por dizer que adorei os artigos sobre a D.Dora, tanto da Paula como do Dr. Serafim.Trouxeram ao presente imagens quase caricatas dum passado que é tão agradável de rever.E revê-lo a poder ver também o que se passava com tanto humor nos bastidores, a sala de professores, é sem dúvida um surpreendente extra! Imaginar a Madame Nicole com os sapatos da D.Dora a tentar chegar á sala de aula, e imaginar a D.Dora descalçadinha à espera dos "stilletos" dela, com os sapatos da Madame Nicole ao lado...faz-me lembrar cenas dum filme do Gene Wilder, Woman In Red!!!
Obrigado aos autores de tão engraçados artigos!
Um beijinho. Até muito breve
Isabel Caixinha
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Júlia R disse:
Este senhor Dr. Serafim cada vez me surpreende mais! É uma "caixinha de surpresas "!!!!! Chego á triste conclusão que só ao fim de 45 anos comecei a conhecer o Dr. Serafim.... para mim tinha sido um excelente professor,pessoa óptima e muito simpático! Agora aparece-me também como um contador de histórias de bastidores "verdadeiras", com um sentido de humor nunca dantes conhecido(por mim).
Ai a D.Dora! Se alguma vez me passava pela cabeça que aquele andar tipico, aos saltinhos, se devia á dificil tarefa de poupar as capas dos sapatos....mas talvez também para que o seu andar se tornasse mais silencioso,não seria? Estou a imaginá-la sentada com os seus pézinhos descalços, delicadinhos, esperando ansiosamente que a hora passasse. Faço uma pergunta:foi no Verão ou Inverno?Coitada,se foi no Inverno ficou gelada....ou alguém se lembrou de ir desencantar uma mantinha?Brincando,brincando se vão revelando a bondade e o coração das pessoas,e aqui está a prova.
Não digo mais nada,apenas que li, reli, sorri, ri, "gargalhei"... e pensei: este blog, estes colegas, estes Amigos, e todos os que passaram pelo ERO são realmente fantásticos. E que mais estará ainda por desvendar?Aguardamos.
Um Abraço. Júlia R
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Ana Carvalho disse:
Realmente mais uma vez o Dr. Serafim vem confirmar aquilo que eu já desconfiava há muito tempo, ele tem um enorme sentido de humor e um talento para a escrita. Só agora percebi porque a D. Dora andava aos saltinhos...e a cena com a Madame Nicole deve ter sido hilariante... devia ser muito dificil assistir a estas e outras cenas e depois vir dar aulas com um ar sério e fingir que nada se tinha passado na sala dos professores.
Obrigado Dr. Serafim, pelas gargalhadas que dei enquanto estava a ler o seu texto. Tambem não quero deixar de dar os parabéns à São e à Isabel pelo texto e a caricatura da D. Esperança, como sempre estão fantásticas. PP
4 comentários:
Brillhante! Brilhante esta estória contada pelo Dr. Serafim!
Neste momento estou na escola, num momento de pausa, na sala dos professores. Posso dizer que, com as minhas gargalhadas a ler a cena dos sapatos da Mme Nicole, cinco ou seis colegas apareceram junto de mim, admirados com tão boa disposição logo pela manhã.
O Dr Serafim sempre teve um sentido de humor fantástico. Obrigada Dr.Serafim.
Não sou vosso colega ERO mas fui colega de Escola do Dr. Serafim,a quem aqui dou os parabéns pelo talento literário.
Aproveito para um aviso à Belão:os olhos e ouvidos da ministra andam aí,vivemos tempos perigosos para se permitir declarar assim que tem momentos de pausa na sua actividade...LS
É particularmente significativo este testemunho do Dr. Serafim! A D. Dora era uma daquelas pessoas que se dedicou ao Colégio como poucas e que sofreu, também como poucos, quando se deu o seu fim, como é natural!
É fantástica esta história! Uma vez mais a realidade supera largamente a ficção! É quase impossível imaginar a Madame Nicole calçar, quanto mais andar, ainda que cambaleante, os sapatos da D. Dora.
Este blogue é um achado!
Afinal o lugar da D. Dora em Fátima era na colunata, bem bom!
- Isabel Xavier -
Caro Serafim,
esta é uma estória imperdível de hilariante! … só você! ...e eu fico com saudades do seu humor-amor de traços fortes e multicores, dessa sua química existencial que sempre fascina os que têm a sorte de o conhecer de perto.
‘Ouvi-o’ falar com orgulho do seu orientador de estágio pedagógico, Rómulo de Carvalho, e esta sua fotografia da Dona Dora recorda-me insistentemente um texto do seu mestre: "A descoberta da fotografia é uma das realizações mais extraordinárias que o génio do Homem tem conseguido. Por meio dela eternizamos o que é passageiro, tornamos a ver o que já passou, continuamos vivos depois de mortos. Pega-se na pequena caixa preta, dirige-se para a pessoa que se estima, para o objecto que nos agrada ou a paisagem que nos encanta, move-se uma pequena alavanca e está o milagre realizado."
Rómulo de Carvalho, in "História da Fotografia", Ciência para gente nova - nº 2, Atlântida - Coimbra, 1960
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