ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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A SUPER

Lembrada esta semana no nosso Blog a "Super" merece sem dúvida ser integrada na série "Professores e Personalidades". Grande professora de História, não tanto de Filosofia já que as dúvidas e interrogações sem resposta lhe eram estranhas e incómodas. Os apontamentos de que o Zequinha fala no texto abaixo, publicado no livro "Álbum de Figuras Caldenses 1990/1991" de Vasco Trancoso, eram bem o exemplo disso, um amontoado de certezas e afirmações categóricas para nós decorarmos, uma sui generis noção de Filosofia. Curiosamente aconteceu comigo o mesmo que com ele, tive sempre 14 como nota, antes e depois de saber antecipadamente os testes...
Acrescento, apenas porque ele o não recorda, que a Dra Deolinda colaborou em 1987 comigo e com o Pereira da Silva ( o "Sr das Cassetes", como ela lhe chamava nas aulas) num programa da Rádio Margem onde, aos Sábados à tarde , mostrava, falando da nossa região, aquilo de que realmente gostava e sabia: História.
É com saudade desse convívio que deixo aqui a sua recordação.
A minha “Super” amiga


Licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras de Coimbra em 1945, tendo defendido como tese “ A acção da Rainha D. Leonor na Vida Portuguesa”.
Especializada como Bibliotecária Arquivista em 1947, investigou na Torre do Tombo até 1952.
Colaborou com artigos de investigação sobre o concelho das Caldas da Rainha no “Boletim dos Bibliotecários”.
Exerceu a docência em disciplinas de História e Filosofia como Professora Efectiva do Ensino Secundário.
Havia para muitos da minha geração, os que prosseguindo estudos se aventuravam pelos segundo e terceiro ciclos do ensino secundário, técnico ou liceal, um obstáculo que uma quase lenda fazia deslizar pelo tempo e que se dava pelo nome simples de Doutora Deolinda ou mais comummente de “Super”. O seu campo de minas era para todos a História e para alguns a Filosofia. Aí se dariam os confrontos em que mortos e feridos a “chumbo” coleccionariam os eventos que dariam continuidade à lenda passando-a a vindouros.
Filha única, Deolinda Ribeiro estaria por certo destinada à continuação duma casa de lavoura se fosse homem. Sendo mulher quis assumir esse e o seu verdadeiro destino: o da inquietação perante os factos e os seus porquês. Ambos cumpriu.
Aqui reside o carácter extraordinário desta mulher, impregnada de terra e de saber, cuja força à natureza deve e à natureza sempre quis pagar, dedicando-se-lhe no trato e amanho com o mesmo entusiasmo que às coisas da sua real vocação, os estudos e investigação histórica, toda a vida dedicou. A sua forma de estar na vida, com simplicidade e rigor aprendeu-a, por certo, nas muitas horas passadas ao cheiro da terra aberta para as sementes e no segredo de como nascem as coisas, na ordem que a mão lhes dá e no favor da natureza.
Conheci-lhe o segredo de duas paixões: D. João II e os automóveis. Estes eram o seu calcanhar de Aquiles e uma “deixa” bem metida em qualquer aula permitiam-nos, uns cinco ou dez minutos de conversa outra que não de História ou Filosofia. O seu Cortina branco era um modelo que naquele tempo tinha fama de “bomba” e o Tomás Baptista, grande entusiasta e especialista dos desportos motorizados, era por norma o interlocutor mais activo espevitando-lhe o entusiasmo.
Estes faits-divers tinham particular interesse e eficácia por altura da Teoria do Conhecimento, capítulo da Filosofia que Deolinda Ribeiro ministrava “por conta própria”através duns famosos apontamentos (famosos no distrito e mesmo em Santarém), só que os apontamentos eram ditados à velocidade do dizer e o castigo durava um período inteiro. Memoráveis aulas para os antebraços que, sacrificados , pelo menos no meu caso, impunham ao meu cérebro, por reflexo condicionado, obviamente, a proibição quase absoluta de se debruçar sobre tais e assim transmitidas matérias.
A Dra. Deolinda tinha uma didáctica muito sua e baseada, quase sempre, numa sinopse introdutória que funcionava como esqueleto da dissertação que salpicava com o seu vasto conhecimento dos episódios paralelos e com os quais afastava a monotonia em que, pelo menos nas matérias filosóficas, facilmente se poderia cair. Natureza e método conjugavam-se, porém, na maneira como interpretava e impunha a disciplina, assunto em que o seu lema me parece sempre ter sido “as coisas como são, sempre foram e serão”.
A minha irreverência desses anos sempre me antagonizou à Deolinda Ribeiro de uma forma intensa mas leal, existindo até um episodio, que só agora ela ficará a conhecer, que o pode retratar. A partir de determinada altura do 7º ano, salvo erro, descobrimos que as revisões antes dos pontos eram feitas com algumas perguntas apontadas num caderninho que ela guardava na sua pasta de cabedal. As sextas feiras a aula de Filosofia era de duas horas seguidas, logo depois do almoço. Durante o intervalo, os professores iam até a sua sala e nós descíamos ao pátio, sendo interdita a permanência nos corredores. Iludida a “segurança” (a cargo dos contínuos Ulisses e Zé Caixinha) um grupo “comando” e voluntário em que eu estava obviamente incluído, resolveu consultar o misterioso caderninho. O espanto e alegria anularam o tremer das pernas que o risco justificava. Em caligrafia bem conhecida o que ali se achava reproduzido era o texto integral do próprio teste.
A Filosofia passava a ter para nós um novo aliciante. Conjugando um bom comportamento nas aulas com a demonstração de um renovado interesse pelas questões postas na aula, facilmente se justificariam os resultados que doravante iriam aparecer, pelo menos em quanto a indiscrição não viesse a ser descoberta e o esquema pudesse funcionar. Funcionou duas ou três vezes que me lembre. Nunca consegui com ele beneficiar e nas entregas dos pontos, à minha vez o anuncio continuou a ser o mesmo de sempre : “Senhor Pereira da Silva… 10!!! Ó homem já era altura de começares a estudar alguma coisa”. É que para mim o difícil era não querer as questões ao contrário do que eram postas e as nossas discussões acabavam, por vezes, com o meu pedido, em antecipação ao seu veredicto, abandono da sala, alias sempre concedido.
Foi sem dúvida este capital de lealdade e respeito mútuo construído durante os anos em que nos aturámos que se transformou no prazer que ambos sentimos quando, anos passados, nos reencontrámos como colegas de ofício na Bordalo Pinheiro. E foi no convívio do trabalho, e fora dele, que construímos uma grande amizade que me levou a descoberta e ao reconhecimento dos “porquês” da sua pedagogia e da sua didáctica. Com a experiência de uns bons anos de ensino já me deram sou obrigado a reconhecer que a minha “Super” amiga tinha razão!!!
E a emoção que todos sentimos aquando da sua despedida foi uma justa homenagem a carreira de uma exemplar e à vida de uma mulher simples que sempre soube manter os princípios como superiores guardiães da sua integridade moral e intelectual. E nesta sua lição eu não cabulei.

José Manuel Pereira da Silva

Desenho e texto extraídos do livro de Vasco Trancoso
"ÁLBUM DE FIGURAS CALDENSES 1990/1991" , editado em 1992

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Esta é uma "repescagem", este post apareceu pela primeira vez no Blog em Dezembro de 2007, mas pensei que fazia todo o sentido integrá-lo na actual série.

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Comentários:

João Ramos Franco disse...
“E nesta sua lição eu não cabulei.” Após o que li, teria piada dizeres que tinhas cabulado. Desculpa a brincadeira, gostei do que escreveste, a carga humana da visão passado/presente, tem para mim, um sentido muito especial…
Um abraço João Ramos Franco
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18 Dezembro, 2007
Miguel B M disse:
Foi com muita saudade que li o artigo sobre a Super. É pena ela já não poder lê-lo pois certamente ficaria uma fã do blogue e certamente uma assídua colaboradora. Eu era muito seu amigo e até foi por causa dela que uma vez fui corrido de uma aula de Física. Era habitual ela fazer uma perscrutação digital à sua cavidade nasal. Quando encontrava um corpo estranho mirava-o e remirava-o, avaliava as suas características físicas (consistência, viscosidade, densidade, elasticidade) e depois decidia degluti-lo ou deitá-lo para um lenço enrodilhado que sempre a acompanhava. Era para esse mesmo lenço que ela impulsionava estrepitosamente um volumoso escarro ( atenção para que não haja dúvidas, este termo é técnico em termos de pneumologia ).Ora eu tinha como desiderato imitar nas aulas esse mesmo impulso .Como os serviços de inteligência da turma já tinham alertado o corpo docente para este facto, ainda eu estava a começar e já o Jaime Serafim me estava a expulsar sem a mínima hesitação pois obviamente já sabia o que se passava e quem era o prevaricador. Este comentário serve ainda para confirmar não só o que o ZCFaria muito bem escreveu mas também para reforçar aquilo que eu próprio disse acerca desse mesmo artigo. Miguel B M

2 comentários:

João Ramos Franco disse...

“E nesta sua lição eu não cabulei.” Após o que li, teria piada, dizeres que tinhas cabulado. Desculpa a brincadeira, gostei do que escreveste, a carga humana da visão passado/presente, tem para mim, um sentido muito especial…
Um abraço
João Ramos Franco

Inês disse...

Textos assim tão especiais ficam mais perto se os post-autores constarem de uma lista na barra lateral do blog :)

O José M Pereira da Silva é imperdível!