ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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SALAZAR NO CAFÉ LUSITANO

A primeira mesa a vagar era a dos bancários. Seguiam-se-lhe as dos restantes empregados, primeiro os da função pública, depois os do comércio, pela ordem do horário de regresso ao trabalho. Pelas três da tarde, terminava o período mais agitado da vida diária do café. Era então o tempo dos frequentadores ocasionais, dos solitários, dos pequenos grupos de reformados. Durante as duas ou três horas seguintes, o Lusitano era deles. Imenso corredor de paredes escuras cortadas a meio por uma faixa de espelho, o café adormecia então num silêncio apenas interrompido por um “pst!” ou por um “Zé!” de maior intimidade.

Ali se situava a minha mesa de leitura e de estudo, enquanto aguardava pela hora de regresso a casa. Ali deixava e recolhia recados e bagagens. Ali conhecia outra gente, de outras gerações. Ficava no topo ocidental da praça, partilhando esse lado com a pastelaria Flor de Liz e os grandes Armazéns do Chiado.

Cerca das três e meia da tarde chegavam os meus mais assíduos companheiros. O primeiro a chegar, trajando invariavelmente de preto, fazia-se acompanhar de um cãozito. Era o Sr. Carlos Silva. Tirava do bolso um papel de embrulho e desdobrava-o cuidadosamente em cima de uma cadeira perto de si. Terminados os preparativos, o cão aninhava-se na cadeira. Chegavam mais tarde os outros dois parceiros. Usava monóculo um, de nariz adunco e ombros arqueados. Era o Sr. José Pereira. Tinha o terceiro feições menos coradas, olhos azuis, gestos por vezes bruscos. Era o Sr. Rui Forsado.

De que falavam? Não me recordo de lhes ter escutado palavra. Absorvidos nos seus temas de conversa, jamais deram sinais de que notavam a minha presença observadora. Dessa convivência feita de mútua ignorância guardo porém a memória de um momento excepcional.

Ao fundo do café havia uma televisão. Era ligada sempre que alguma transmissão o justificava, e, naquele dia, decorria em Lisboa uma manifestação de apoio ao regime do Estado Novo. O Sr. José pôs o aparelho a funcionar, já o grupo estava reunido. O locutor, em directo, exaltava a força que se desprendia da concentração humana espontânea. Os meus companheiros deitaram olhares furtivos ao ecrã e mudaram ostensivamente para uma mesa mais afastada. Chegou depois o momento do Presidente do Concelho se dirigir à multidão. Quando Salazar começou a discursar, o grupo fez movimentos de desagrado mais veementes. Mas o ditador, absolutamente impassível, prosseguiu. Rui Forsado ergueu-se de repente e aproximou-se do aparelho. – “Infame!” – gritou, apontando o dedo acusador. Salazar não respondeu. Carlos Silva levantou-se. O cãozito deixou de imediato a cadeira. José Pereira ajeitou o monóculo e levantou-se também. Saíram todos.

Eu estava atónito. Aqueles homens não suportavam Salazar. Eu não podia compreender. Em minha casa, Salazar não se discutia. O meu tio-avô costumava dizer que Salazar era um santo. Aos treze anos, eu acabava de ter o meu primeiro encontro com a Oposição.
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João Bonifácio Serra
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NOTA: Esta crónica foi publicada originalmente na
Gazeta das Caldas e consta na recolha "CONTINUAÇÃO".
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1 comentário:

Anónimo disse...

Quem sabe assim se despertem mais memórias...sobrinha-neta do "Sr.Rui Forsado";assino....Micah Forsado :)))