Havia aspectos das novas instalações do Externato Ramalho Ortigão que não estavam concluídos quando foi inaugurado, em 1960/61. Os recreios, por exemplo, não estavam pavimentados. Aqui e ali, amontoavam-se alguns restos dos materiais usados na construção. O terreiro ficava, quando chovia, pouco transitável e os contínuos procuravam evitar que a rapaziada se aventurasse pelas veredas de lama, entre charcos e pedras. Com pouco êxito.
Uma das áreas que mais que mais interesse suscitava era a barreira sobre a qual fora erguido o muro do lado norte do pátio dos rapazes. Não tendo sido ainda regularizada, servia de rampa de saltos, escorrega e outras acrobacias que a imaginação e as capacidades atléticas ditavam. Foi ai que me fixei. Descobri um bom motivo para intervir numa brincadeira cujas regras dominava (como se verá, nada tinha dos jogos usuais do meio urbano) e assim forjar o meu primeiro grupo de sociabilidade.
Num dos pontos em que a barreira se apresentava com uma concavidade, alguém iniciara uma escavação que rapidamente abandonara. Apliquei nesse local todo o meu engenho de pequeno construtor e, com a ajuda de um grupo reduzido, fui escavando uma galeria. Trouxe de casa, escondidos na pasta, os instrumentos que me pareceramm adequados: um sacho de jardim, uma espátula, um martelo de pedreiro e aproveitava os furos no horário para avançar naquela tarefa. A gruta era conhecida de poucos e a entrada ficava disfarçada, sempre que tínhamos de interromper os trabalhos. Os instrumentos eram resguardados no interior, de um dia para o outro. Que objectivo me animava naquela empreitada? Não me recordo bem, mas não é de supor que se tratasse de um refúgio. A verdade é que, quando a autoridade académica descobriu a galeria e ordenou que parássemos, lá dentro cabiam já, convenientemente enlatados, três miúdos de onze anos.
Foi lenta e difícil a aprendizagem dos jogos urbanos e do tipo de destreza que eles exigiam. Para mim revelou-se sobretudo muito complexo o contacto com os jogos de grupo, pois os entretenimentos que estavam ao meu alcance na aldeia eram basicamente solitários. Por outro lado, eu só sabia utilizar os brinquedos feitos por mim. Sabia, por exemplo, fazer um batoque de pau de salgueiro, extraindo o interior do pequeno tronco, que projectava uma pequena rolha de cortiça à distância, e diversos brinquedos engraçados compostos a partir de cana verde ou seca. Sabia escolher uma haste de vime para fazer um arco e atirava razoavelmente flechas feitas de varetas de chapéu de chuva. Sabia fazer e manejar fundas para atirar seixos, e compor armadilhas de vime ou cana para apanhar pássaros vivos. Sabia conduzir com um pau um aro improvisado e com ele saltar obstáculos complexos, sem perder a direcção. Sabia calcular as doses da argamassa de pedreiro e assentar tijolo, ou erguer um canteiro em pedra e rebocá-lo. Sabia deitar o pião, mas não sabia jogar ao ringue, ao berlinde, à cabra cega, saltar ao eixo. Tive que aprender isso tudo quando cheguei à cidade.
João Bonifácio Serra
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Nota: Texto publicado na Gazeta das Caldas e incluído na compilação de crónicas de 50/60 "Continuação", de João Bonifácio Serra. A página do autor pode ser consultada em http://www.cidadeimaginaria.org/
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