Esta é mais uma página do Diário de um aluno do Externato Ramalho Ortigão. Esteve guardado num sótão muito húmido, tem a capa desfeita e o ano ilegível. Foi-me enviado há alguns dias e grande parte das folhas estão coladas umas às outras, muito amarelecidas e com a tinta esborratada. Estou a tentar transcrever as mais aproveitáveis e que tenham, simultâneamente, referências a locais de encontro e acontecimentos desse tempo. Os nomes dos locais foram fáceis de perceber, penso que estão correctos, os das pessoas não estou tão seguro. Valeu a pena o esforço? Vocês me dirão.
Carnaval
Hoje é quarta-feira de cinzas… E sabia-me realmente a boca a cinzas quando acordei, bestialmente cedo, com o barulho da enceradora. Penso que mandar a Maria encerar o chão hoje de manhã foi a maneira de a minha Mãe me castigar por me ter deitado tarde todos estes dias. Mas nesta época não é possível deitar cedo. Não há tempo para nada, nem para dormir! Nem consegui escrever este diário, que há uma semana não vê uma palavra.
Sexta-Feira fomos ao Ferro Velho mas estava fraco, só a malta do costume. No Casino só há baile de Sábado a Terça, alguém se lembrou de ir a Óbidos. Alguns mascarados passeavam-se entre a Biquinha e a Estalagem, mas o ambiente também era chocho. Metemos, a meias, dez paus de gasolina no Mini. Toda a gente protestou, quase três litros para ir a Óbidos e voltar? O dono do carro é que se ficou a rir. Ele está na tropa, e a fazer umas cadeiras no colégio. É por ser mais velho que já tem carro. Aproveitei para falar da guerra em África, um assunto quase proibido. O Fernando Serra é contra, não quer ir, mas fala do assunto com cuidado. Este medo da tropa e da guerra está na cabeça de todos os rapazes da minha idade, mas quase nunca se toca nele. Os meus pais já me falaram de malta nova que vai estudar para França, Suécia, Holanda, etc. Já percebi que pensam se será o que devem fazer comigo, mas avisaram-me para não tocar neste assunto com ninguém.
No Sábado fui ao "assalto" a casa dos Coutos. É realmente a melhor festa particular de Carnaval que eu conheço nas Caldas. Toda a gente levou qualquer coisa, principalmente bebidas. A minha Mãe deu-me uns croquetes, que coloquei numa mesa ao canto da garagem, junto dos restantes comes e bebes. Como sou mais novo do que a maioria dos outros “assaltantes”, andavam-me sempre a chatear para não beber. Fico lixado com estas proibições baseadas na idade, sinto-me uma pessoa igual aos mais velhos. Mas a festa foi bem animada e a música boa, passaram algumas brasileiradas mas também Beatles e Rolling Stones, até o “Pictures of Lilly” dos The Who. Adoro esta canção e acabei por dançar e por me divertir. As luzes até diminuíram mais tarde durante “Whiter Shade of Pale” e “Nights In White Satin”. Infelizmente não tinha par…
Depois picámos o ponto no Casino, que estava cheio e divertido. Acabámos nos Bombeiros (chamam-lhe o “Casino da Mangueira”). Passava das quatro da manhã, havia muitas serpentinas no chão que faziam tropeçar os já cambaleantes dançarinos. Percebia-se que tinham estado penduradas, como decoração, no início da noite. Havia pouca malta da nossa idade, pareciam todos mais velhos. Bebemos um copo e saímos. As bebidas eram bem mais baratas do que estamos habituados.
O Domingo foi fracativo, estive outra vez no Ferro-Velho. Alguns mascarados e mascaradas com mais lata metiam-se connosco e tentavam cravar uns copos. Alguns parvos bebiam Vodka com Martini, uma rápida bebedeira assegurada (já caí nessa, lembro-me do estado em que cheguei a casa. Os meus pais, infelizmente, também não se esqueceram…). Ainda fomos à Azenha mas estava a acabar, segunda-feira é dia de trabalho e quem trabalha abalou cedo. Até a Zaira já estava fechada quando lá chegámos. O patrão César só arrisca a multa por não encerrar a horas quando tem garantidos bifes e garrafas de vinho dos clientes com narta, os nossos pais. Não por uns pregos e umas imperiais dos filhos tesos. Passámos no Teixeira, esperámos pela saída do primeiro pão quente mas, com a Zaira fechada, não pudemos lá ir como habitualmente. Acabámos no Marinto que, embora já de porta fechada, lá nos serviu.
Segunda-Feira foi dia de Casino. Cheio, animado, com muitas máscaras, mas também toilettes. Alguns miúdos e velhos, porque ao Casino as famílias vão todas juntas. Conhecia quase toda a gente (até os mascarados), dancei com algumas miúdas da minha idade. Nunca mais de duas músicas, senão “parece namoro”. Os meus pais e os delas dançaram ao nosso lado as eternas músicas brasileiras “de Carnaval”. Foram conversar, sentados nas mesas que rodeiam a pista de dança, quando o conjunto atacou umas músicas rock. A pronúncia do vocalista é uma desgraça, se a Inês o ouvisse dava-lhe nega! Alguns dos mais novos (e dos mais velhos) cabeceavam e dormitavam nas salas de jogo, nesse dia transformadas em antecâmaras do salão de baile. Alguns queques de S. Martinho passeavam-se com um ar enjoado. Meia-dúzia de caras desconhecidas revelaram-se quase sempre primos ou amigos de alguém. Os mais quadrados, meia dúzia de homens e casais mais velhos, deixam-se ficar pelo bar. Eles bebem Whisky e Gin, elas Marie Brizard ou Martini. Entre as duas e as três da manhã as máscaras foram tiradas e discutiu-se quem foi enganado, quem enganou quem (conta-se que há meia dúzia de anos um médico caldense tentou engatar a mulher mascarada, que ele julgava em casa com uma dor de cabeça. A história já é célebre, mas será verdadeira?).
Aproveitámos esse momento para sair à socapa e fomos ao Lisbonense, também obrigatório neste dia (a minha Mãe vai aos arames quando sabe que lá vou). O ambiente era diferente: mais máscaras, mais barulho e tudo mais apertado. O tecto parecia mais baixo, havia mais fumo. A banda tinha mais metais, ouviam-se marchas portuguesas. Não parecia haver gente mais nova do que eu e não conhecia quase ninguém. Encontrei a Rita, amiga da namorada de um colega meu. Andam as duas na Escola Comercial. É curioso como há tão poucos namoros destes, entre malta do Colégio e da Escola. E o Mário, que lá vai muito porque o Pai é professor, garante que as miúdas são giríssimas. E muitas!
Dancei com a Rita, que me disse que estava com uns tios e primos. Os pais trabalham na Secla e não têm pachorra nem disposição para estas coisas. Fomos ao bar onde provei um cup terrível, com um sabor a anis ou amêndoa amarga muito intenso. Parecia fazer muito sucesso entre os restantes clientes. Vi pela primeira vez pedir Brandy com gelo e água. Preferi uma Sagres, a Rita uma Laranjina C.
Voltámos à sala para dançar. Aparentemente aqui ninguém fica com macaquinhos no sótão por dançarmos várias músicas com o mesmo par. A Luísa ficaria, claro, mas está fora das Caldas. E, sendo ela do Colégio e a Rita da Escola, não se vão encontrar nem conversar.
Já clareava o Sol quando o baile acabou, mas eu sabia que podia dormir. Os meus pais deitaram-se às cinco da manhã, ninguém se levantou antes do meio-dia. Nestes dias feriados vamos sempre ao Restaurante dos Capristanos (ficamos empanturrados só com os hors d’oeuvre) ou à Pensão Portugal (o melhor Bacalhau à Brás da Península Ibérica).
A noite de Terça-Feira é tradicionalmente o “Baile Trapalhão”. Toda a gente se mascarou com o que tinha mais à mão. Até eu. Proibidas neste dia as máscaras a preceito, de princesa ou arlequim, abundavam saltimbancos, vagabundos, cowboys maltrapilhos e palhaços pobres. Alguns pareciam vestir sacos de roupa suja! É um baile muito animado no Casino, mas com menos gente do que no Sábado ou na Segunda-feira. Mais tarde saímos e, como estávamos todos mascarados, deixaram-nos entrar sem pagar nos Pimpões e Columbófila. Claro que tivemos que mostrar primeiro aos porteiros quem éramos. Lá dentro, mesmo mascarados, parece que todos descobriram que éramos “intrusos”. Eram bailes claramente familiares, em que todos se conheciam. Estavam mais animados e cheios os Pimpões.
No fim da noite descemos ao Lisbonense para a tradicional Volta à Rainha. No final do Baile os músicos da orquestra pegaram cada um num instrumento e, encabeçados pelo trompetista ou saxofonista (não me lembro bem…), foram seguidos por todos os foliões do Lisbonense. Ou, pelo menos, por aqueles que estavam em condições de andar! Foi um gozo do caneco. Muitos trabalhadores já tomavam o mata-bicho, ali no Café Rosa, e olhavam-nos com ar reprovador.
Foi o final perfeito para mais um Carnaval. Apesar da enceradora às dez da manhã, foi bestial! Nem quero acreditar que amanhã tenho Ciências logo às oito e meia da manhã. E a professora deve estar com os azeites, não acredito que se tenha divertido nestes dias…
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COMENTÁRIOS
2008-04-06
António disse:
Podia quase ser o meu diário ... só que eu não escrevi nenhum ... tenho agora pena (…) além de que eu não conhecia assim tanta gente no Casino.(...) e entre janeiro e o Carnaval ...não havia nada ?
2008-04-06
Isabel disse:
Quem escreveu este Diário possivelmente estaria no final da adolescência a ver pela forma consciente como escrevia! É sempre giro saber como as situações foram vividas pelo ponto de vista dos rapazes. Só desejo que haja mais folhas legíveis nesse diário, muitas mais!
António disse:
Podia quase ser o meu diário ... só que eu não escrevi nenhum ... tenho agora pena (…) além de que eu não conhecia assim tanta gente no Casino.(...) e entre janeiro e o Carnaval ...não havia nada ?
2008-04-06
Isabel disse:
Quem escreveu este Diário possivelmente estaria no final da adolescência a ver pela forma consciente como escrevia! É sempre giro saber como as situações foram vividas pelo ponto de vista dos rapazes. Só desejo que haja mais folhas legíveis nesse diário, muitas mais!
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2008-04-07
João Santos disse:
(…) mas claro que me deu prazer ler. Só não foi explicado (ou eu não percebi) porque é que não tem o nome do autor?
João Santos disse:
(…) mas claro que me deu prazer ler. Só não foi explicado (ou eu não percebi) porque é que não tem o nome do autor?
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2008-04-07
Isabel Silva disse:
Mesmo q o diario esteja estragado não se pode saber a data e de qem o escreveu? Gostava de saber a ver se conheço, estive no colégio até 68 mas ja n fiz ai 7º ano. Bjos a todos.
Isabel Silva disse:
Mesmo q o diario esteja estragado não se pode saber a data e de qem o escreveu? Gostava de saber a ver se conheço, estive no colégio até 68 mas ja n fiz ai 7º ano. Bjos a todos.
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2008-04-07
A minha reacção ao Diário (Conceição Caixinha):
Deviam ter sido muito divertidos esses dias de carnaval! Meu Deus o que eu perdi pois tenho que admitir com uma certa mágoa que só me lembro de ter ouvido contar...porque os meus pais não me permitiam tomar parte neste tipo de festividades! Pensei que me tinha compensado mais tarde...mas ao ler o diário do nosso enigmático colega tenho que concluir que a compensação não foi proporcional!! Continuo intrigada com o motivo da escolha pelo anonimato do autor! Será que é ministro?!
A minha reacção ao Diário (Conceição Caixinha):
Deviam ter sido muito divertidos esses dias de carnaval! Meu Deus o que eu perdi pois tenho que admitir com uma certa mágoa que só me lembro de ter ouvido contar...porque os meus pais não me permitiam tomar parte neste tipo de festividades! Pensei que me tinha compensado mais tarde...mas ao ler o diário do nosso enigmático colega tenho que concluir que a compensação não foi proporcional!! Continuo intrigada com o motivo da escolha pelo anonimato do autor! Será que é ministro?!
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2008-04-07
Ex.Alunos.Ero disse.
O autor não é exactamente anónimo. É um aluno do ERO, que está incontactável após problemas familiares (que conheço mal e não quero comentar). A sua irmã, que me entregou o diário (ou parte dele, não se percebe bem), só permite a revelação do nome com autorização do próprio. Pode ser que ele leia e se identifique. Mas penso que as vivências, os acontecimentos, os hábitos e os amigos o denunciarão, pelo menos perante os colegas de turma.
Ex.Alunos.Ero disse.
O autor não é exactamente anónimo. É um aluno do ERO, que está incontactável após problemas familiares (que conheço mal e não quero comentar). A sua irmã, que me entregou o diário (ou parte dele, não se percebe bem), só permite a revelação do nome com autorização do próprio. Pode ser que ele leia e se identifique. Mas penso que as vivências, os acontecimentos, os hábitos e os amigos o denunciarão, pelo menos perante os colegas de turma.
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2008-04-09
Jorge disse:
Não havia assim tantos rapazes na alinea F , já que tinha ciências, que fossem ao casino e a casa dos Castros (não me lembro de nenhuns Coutos) a saltar de uns para outros, nesses anos .....e essa história do anonimato está mal contada ....
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2008-04-12
Ana Nascimento disse:
Tenho lido as páginas do diário com muito agrado, até porque não era muito vulgar que um rapaz o tivesse, normalmente éramos nós raparigas que escrevíamos. Está muito giro, revi-me na descrição da ronda pelos bailes de Carnaval…..
Realmente estou intrigada …de quem será ?
Olha Jorge concordo contigo…. Não existiam Coutos mas sim os manos Castro…. As festas na Garagem deles eram sempre divertidas, a avó a D. Felismina era uma querida que adorava ter os amigos dos netos à sua volta….sem dúvida que também foi um dos pontos de encontro da juventude das Caldas.
Muitas tardes de sábado passei nessa garagem ensinando a dançar os “piquenos” do grupo da minha irmã Luisa…. será que ele é um deles? Também não consigo descobrir…lá teremos que continuar a aguardar que ele saia do anonimato.
Ana
Realmente estou intrigada …de quem será ?
Olha Jorge concordo contigo…. Não existiam Coutos mas sim os manos Castro…. As festas na Garagem deles eram sempre divertidas, a avó a D. Felismina era uma querida que adorava ter os amigos dos netos à sua volta….sem dúvida que também foi um dos pontos de encontro da juventude das Caldas.
Muitas tardes de sábado passei nessa garagem ensinando a dançar os “piquenos” do grupo da minha irmã Luisa…. será que ele é um deles? Também não consigo descobrir…lá teremos que continuar a aguardar que ele saia do anonimato.
Ana
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15-04-2008
Rui Hipólito disse:
Fico com a ideia que o “especialista” dos anos 60 é o autor, cá para mim foi o “Mijinhas” que escreveu este diário... .
Rui Hipólito disse:
Fico com a ideia que o “especialista” dos anos 60 é o autor, cá para mim foi o “Mijinhas” que escreveu este diário... .
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15-04-2005
Luisa disse:
Esta Luisa não é nenhuma Luisa!!! Os nomes foram concerteza trocados (o J.J. não responde, já perguntei).....rapaz da alínea F que acabou o Colégio em 1968 ou 1969 que escreveu um diário não pode haver assim muitos... a rapaziada desse tempo se pensar um bocado descobre de certeza!!!
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