ALMOÇO / CONVÍVIO

ALMOÇO / CONVÍVIO

Os futuros almoços/encontros realizar-se-ão no primeiro Sábado do mês de Outubro . Esta decisão permitirá a todos conhecerem a data com o máximo de antecedência . .
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Os Locais do João Bonifácio Serra

Pontos de encontro 1965/1966

Se os pontos de encontro são sempre pontos de encontro com o mundo à nossa volta, escolho na memória que guardo dos anos 1965/66, alguns dos lugares que nos ajudaram a crescer.

O Central e a Zaira


Ao velho Rossio quinhentista, as duas ou três gerações precedentes trouxeram comércio e serviços modernos. Começaram por mandar calcetar o tabuleiro central e ordenar a venda de géneros. Na Praça renovada, instalaram os estabelecimentos da civilização: barbearias e cabeleireiros, bancos e farmácias, lojas de roupas e de utensílios de casa, mercearias e pastelarias, ferramentas e instrumentos agrícolas, papelarias e livrarias. E cafés.

Os cafés não se distribuíram igualmente pelos lados da Praça. A maior concentração deu-se sempre a sudoeste (o Lusitano e a Flor de Liz) e a noroeste (Bocage, Invicta, Zaira). Como se a abertura ao sol da manhã fosse condição de favor indispensável.
Nesse sentido, o Central constitui excepção. Mas a proximidade com o antigo Terreirinho (Largo Dr. José Barbosa) permitiu-lhe abrir duas frentes e, deste modo, contrariar a “maldição” do lado ensombrado.

Cada café procurava fidelizar os seus clientes, manter os seus empregados e estabilizar os serviços adjacentes (engraxadores, armazenamento provisório de compras). Por vezes registavam-se migrações de clientes e transferências de empregados. Havia também grupos (raros) que circulavam entre cafés: de manhã num, depois de almoço noutro, ao fim da tarde e à noite noutro ainda.

Na Praça das Caldas da Rainha, em meados dos anos 60, dois cafés emergiam, como pólos de tal modo distintos que a circulação entre ambos se tornava quase impossível: o Central e a Zaira. Situados em lados diferentes, eram também os mais afastados entre si, por uma diagonal que rondaria a centena de metros. De resto, ambientes, decoração, além da topografia, tudo os contrapunha. Subia-se um degrau para entrar no Central, descia-se um degrau para entrar na Zaira. Em vez do amplo corredor em dois planos da Zaira, o salão do central era quase quadrado e num só plano. Em vez de espelhos, o elemento decorativo que era a marca da Zaira, o Central exibia cavalos esgrafitados por um Julio Pomar dos anos 50. A Zaira criara um espaço separado, intimista, propício ao encontro e ao reconhecimento dos grupos de frequentadores. O Central era, em contrapartida, uma varanda aberta sobre a praça, cujos sons, cores e personagens se podiam sentir e observar através das janelas altas rasgadas em duas das paredes do café.

Duas identidades tão marcadas forçoso seria que se traduzissem em estereótipos sociais e até ideológicos. Os frequentadores fiéis de cada um dos cafés teriam certamente consciência da etiquetagem a que se sujeitavam por parte dos seus homólogos. Alguns dos visitantes regulares da cidade, instruídos nos meandros desta marcação social dos territórios, divertiam-se perturbando esta “coexistência fria”: de manhã liam o jornal do Central, desdenhando a Zaira, e à tarde tomavam a bica na Zaira, desmerecendo o Central. Alguns grupos juvenis também transgrediam a fronteira imaginária entre os dois espaços. Como sempre acontece nestes casos, queriam o melhor de ambos. Não estavam dispostos a abdicar dos pastéis de nata da Zaira nem dos duelos de xadrez do Central. Tinham curiosidade pelo ambiente “feminino” que se espalhava pela Zaira e admiração pelo ambiente “masculino” que se cultivava no Central. Sentiam-se atraídos pela sofisticação urbana que se vivia na Zaira, mas não eram indiferentes às raízes populares que sustentavam o Central.


A Tália


Se a Rua das Montras era o eixo central da nossa cidade, por onde corria o que de mais moderno o engenho caldense sabia fazer, a Tália era o centro da Rua das Montras. Na rua de passeios estreitos, por onde o trânsito circulava em dois sentidos, nós apinhávamo-nos à porta, no fim das aulas, atraídos ao local por um chamamento secreto e irresistível. Não havia maneira de trocar um livro ou um caderno que não fosse na Tália, não havia processo de marcar um encontro ou de combinar uma acção que não fosse na Tália, não havia modo de fechar o dia sem passar pela Tália.

Havia um sem número de razões para ir à Tália. Porque ali havia os livros e todos os outros materiais de papelaria que a escola exigia, sem dúvida. E porque ali havia os discos que se podiam ouvir e eventualmente comprar, pois claro. Porque ali havia prateleiras e gavetas repletas de outros objectos mais decorativos ou funcionais, que talvez um dia, no ensejo de um aniversário ou de um natal, pudessem vir a ser nossos. Porque dali se podia observar, a certas horas, o que de novo a cidade pudesse ter para nos oferecer. Se algum felizardo mudava de carro, ali passaria. Se alguém conseguia namorada, certo era que ali a mostraria. Um qualquer sinal de mudança, no olhar, no andar, na atitude, só verdadeiramente existiria quando ali fosse notado.

Acima de tudo, a Tália era a nossa janela. Através dela, respirávamos o ar da cidade cosmopolita, percebíamos os sons e as cores, as evocações da cidade viva. A Tália devolvia-nos, em imagem, a ambição da juventude.

Passávamos o dia no colégio, entre rotinas, algumas absurdas, matérias por vezes sem sentido, professores, alguns, parados no tempo. Mas tudo isso podia ser superado se fossemos à Tália.

Íamos à Tália para termos a certeza de que estávamos realmente perto do mundo.

J. B. Serra

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COMENTÁRIOS

Penso que nenhum dos que aguardava "Os Locais do João Serra" ficou certamente desiludido com as inesperadas escolhas da Zaira, do Central e da Tália.

Curiosamente, e em meia dúzia de parágrafos do primeiro texto, ficamos a saber tudo sobre os dois cafés, os seus frequentadores,o seu ambiente característico, só não ficamos a saber qual dos dois o autor frequentava e preferia. Sentia-se mais próximo da feminilidade sofisticada da Zaira ou da masculinidade popular do Central? Mas eu nem lhe pergunto, porque o João responderia certamente que ia muito ao Lusitano…ou à Flor de Lis…

Eu era um incondicional da Zaira mas frequentava também a cave do Central, em busca do bilhar e de aprender algum xadrez. Saboreando as “bocas” com que se picavam alguns adversários eternos de bilhar e damas. E também alguns silêncios, horas de silêncio e imobilidade, de alguns xadrezistas, e mirones, como se a vida para eles só existisse nas peças do tabuleiro.

O meu Word não reconheceu "esgrafitados" e eu preparei-me, na minha ignorância que aqui confesso, para saudar um neologismo. Aqui fica a informação, caso não seja eu o único ignorante: ESGRAFITO- Decoração que se coloca sobre peças cruas, engobadas e ainda húmidas, desenhando sobre o engobe e deixando aparecer a cor da argila do corpo da peça. Também conhecida como sgraffito.

Num tempo sem Internet nem centros comerciais estiveram todos os colaboradores destes “Locais”, o João incluído, de acordo que a Tália era o centro das Caldas, o local de todos os encontros e todos os desejos (de consumo, claro). E a disponibilidade com que havia, por exemplo, livros e discos na Tália, para compradores ou meros “cherinhas”, é uma prova de que espaços como a FNAC, por exemplo, se limitaram a copiar conceitos que o Sr. Nogueira e a D. Rosa já praticavam há cinquenta anos! (Fico a pensar se ainda hoje se usará este termo, “cheirinhas”?)

A data está lá, 1965/1966, é o último ano lectivo da turma do João nas Caldas. Podem (re)conhecer a turma em
EXCURSÕES DE FINALISTAS 1 - CEUTA,1966 e
O BARCO DO AMOR .

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